Trecho: Bruxas, de Mona Chollet — Gama Revista

Trecho de livro

Bruxas

Da perseguição a um símbolo de força feminina, jornalista Mona Chollet, editora-chefe do Le Monde Diplomatique, explora legado contemporâneo da caça às bruxas

Leonardo Neiva 29 de Julho de 2022

Em 2016, a cidade de Bruges, na Bélgica, organizou uma exposição com obras do pintor flamengo Pieter Bruegel, o Velho. Entre seus muitos quadros famosos, a mostra exibia especificamente aqueles sobre bruxas, temática na qual Bruegel foi um dos artistas pioneiros. Aproveitando o assunto, os organizadores também listaram num painel os nomes das dezenas de mulheres da cidade que foram queimadas como bruxas em praça pública. Em entrevista à TV, o diretor do museu comentou que muitos moradores só descobriram que tinham uma antepassada bruxa ao visitar a exposição. “E ele dizia isso sorrindo, como se o fato de ter em sua árvore genealógica uma inocente massacrada com base em alegações delirantes fosse uma pequena anedota boa para contar aos amigos”, narra a jornalista e escritora suíça Mona Chollet, editora-chefe do Le Monde Diplomatique.

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No texto introdutório de seu livro “Bruxas” (Âyiné, 2022), em que apresenta o caso, Chollet questiona: “de que outro crime de massa, mesmo antigo, é possível falar assim, com um sorriso nos lábios?” A autora se refere ao caráter anedótico, quase divertido, com que a queima de bruxas é lembrada atualmente — mas que acaba ignorando o sofrimento de milhares de pessoas inocentes mortas, principalmente mulheres. “Quando, no lugar de ‘bruxas’, escolhemos ler ‘mulheres’, temos uma compreensão melhor das crueldades infligidas pela Igreja a essa parcela da humanidade”, disse Matilda Joslyn Gage, uma das primeiras vozes feministas a reivindicar o título de bruxa para si, como lembra Chollet em sua obra.

Além de explorar a violência e o legado da caça às bruxas na Europa e nos EUA, o livro aponta como a prática ajudou a moldar o mundo que conhecemos hoje, assim como o preconceito que persiste em relação às mulheres. Em “Bruxas”, que se tornou um best-seller na França, onde vendeu mais de 370 mil cópias, a escritora afirma ainda que as mulheres e o feminismo hoje passam a encarnar o termo — de forma literal ou não — nas lutas cotidianas e em sua eterna batalha contra a opressão, numa busca ainda em curso pela liberdade sobre si e seu próprio corpo.


Do mágico de Oz a Starhawk

Ao se apoderar da história das mulheres acusadas de bruxaria, as feministas ocidentais ao mesmo tempo perpetuaram a sua subversão — tenha sido ela deliberada ou não — e reivindicaram, provocativas, a força aterradora que os juízes lhes atribuíam. “Somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”, diz um célebre slogan; ou, na Itália dos anos 1970: “Tremam, tremam, as bruxas voltaram!” (Tremate, tremate, le streghe son tornate!). Elas também exigiram justiça, lutando contra o tratamento leviano e edulcorado dessa história. Em 1985, a cidade alemã Gelnhausen transformou em atração turística sua “Torre das bruxas”, o edifício em que as acusadas de bruxaria outrora foram emparedadas vivas. Na manhã da abertura ao público, manifestantes vestidas de branco desfilaram ao redor do edifício ostentando cartazes com os nomes das vítimas. Esses esforços de sensibilização, de onde quer que procedam, algumas vezes dão resultado: em 2008, o cantão de Glaris reabilitou oficialmente Anna Göldi, graças à obstinação de seu biógrafo, e lhe dedicou um museu. Friburgo, Colônia e Nieuwpoort, na Bélgica, também o fizeram. A Noruega inaugurou, em 2013, o memorial de Steilneset, fruto de uma colaboração do arquiteto Peter Zumthor e da artista Louise Bourgeois, que homenageia, no lugar exato em que foram queimadas, as noventa e uma pessoas executadas no condado setentrional de Finamarca.

A primeira feminista a desenterrar a história das bruxas e a reivindicar para si mesma este título foi a norte-americana Matilda Joslyn Gage (1826-1898), que militava pelo direito ao voto das mulheres, mas também pelo direito dos ameríndios e pela abolição da escravidão — ela foi condenada por ter ajudado escravos a fugir. No livro Femme, Église et État [Mulher, Igreja e Estado], de 1893, ela oferece uma leitura feminista das caças às bruxas: “Quando, no lugar de ‘bruxas’, escolhemos ler ‘mulheres’, temos uma compreensão melhor das crueldades infligidas pela Igreja a essa parcela da humanidade”. Ela inspirou a personagem de Glinda no Mágico de Oz, escrito por Lyman Frank Baum, de quem ela era sogra. Ao adaptar esse romance ao cinema, em 1939, Victor Fleming deu origem à primeira “bruxa do bem” da cultura popular.

Quando, no lugar de ‘bruxas’, escolhemos ler ‘mulheres’, temos uma compreensão melhor das crueldades infligidas pela Igreja a essa parcela da humanidade

Depois, em 1968, no dia de Halloween, em Nova York, surgiu o movimento Women’s International Terrorist Conspiracy from Hell (WITCH), cujas integrantes desfilaram em Wall Street e dançaram a sarabanda, de mãos dadas, vestidas com capa preta na frente da Bolsa de Valores. “De olhos fechados, cabeça baixa, as mulheres cantaram um canto berbere (sagrado para as bruxas argelinas) e proclamaram a queda iminente de várias ações. Algumas horas depois, o mercado fechou em queda de um ponto e meio e, no dia seguinte, caiu cinco pontos”, relatou uma delas, Robin Morgan, alguns anos depois. Ela ressaltava, porém, a sua total ignorância, na época, sobre a história das bruxas: “Na Bolsa, nós pedimos uma reunião com Satã — um equívoco do qual, com o passar do tempo, fico constrangida: foi a Igreja católica que inventou Satã e que depois acusou as bruxas de serem satanistas. Nesse sentido, e em tantos outros, nós mordemos a isca patriarcal. Fomos completamente estúpidas. Mas éramos estúpidas com estilo”. É verdade: as fotos do evento dão testemunho. Na França, a segunda onda do feminismo viu em especial a criação da revista Sorcières [Bruxas], publicada em Paris entre 1976 e 1981, sob a direção de Xavière Gauthier, com a qual colaboraram Hélène Cixous, Marguerite Duras, Luce Irigaray, Julia Kristeva, Nancy Huston e também Annie Lecrerc. É preciso mencionar também a belíssima música de Anne Sylvester, que, além de canções para crianças, é autora de um importante repertório feminista: Une sorcière comme les autres [Uma bruxa como as outras], escrita em 1975.

Em 1979 era publicado nos Estados Unidos A dança cósmica das feiticeiras, o primeiro livro de Starhawk. Ele se tornaria uma obra de referência sobre o culto neopagão da deusa. O nome da bruxa californiana — nascida Miriam Simons em 1951 — só vai atingir os ouvidos europeus em 1999, ano da memorável participação de Starhawk e seus amigos nas manifestações contra a reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle, que marcaram o nascimento do altermundialismo. Em 2003, o editor Philippe Pignare e a filósofa Isabelle Stengers publicam a primeira tradução francesa de um de seus livros: Femmes, magie et politique [Mulheres, magia e política], de 1982. Ao anunciar, em um grupo de discussão, o artigo que eu lhe dedicara, lembro ter despertado os sarcasmos furiosos de outro membro do grupo, um autor de romances policiais que não poupou palavras bastante duras para me transmitir o bode que lhe causava a noção de “bruxaria neopagã”. Quinze anos depois, sua opinião talvez não tenha mudado, mas a referência perdeu muito de sua inconveniência. Hoje em dia, as bruxas estão em toda parte. Nos Estados Unidos, elas participam do movimento Black Lives Matter, contra os assassinatos racistas cometidos pela polícia, lançam feitiços a Donald Trump, protestam contra os supremacistas brancos ou contra o questionamento do direito ao aborto. Em Portland (Oregon) e outros lugares, grupos ressuscitam o WITCH. Na França, em 2015, Isabelle Cambourakis batizou de “Bruxas” a coleção feminista que criou em sua editora. Ela começou publicando novamente o Mulheres, magia e política, que teve muito mais eco do que na primeira vez — especialmente porque acabara de ser publicado o Calibã e a bruxa, da Silvia Federici. E durante as manifestações de setembro de 2017 contra os cortes nos direitos trabalhistas apareceu, em Paris e Toulouse, um Bloco Witch feminista e anarquista, que desfilou com chapéus pontiagudos e um cartaz “Macron no caldeirão”.

Elas participam do movimento Black Lives Matter, contra os assassinatos racistas cometidos pela polícia, lançam feitiços a Donald Trump, protestam (…) contra o questionamento do direito ao aborto

Os misóginos também se mostraram, como em outros tempos, obcecados pela figura da bruxa. “O feminismo encoraja as mulheres a deixarem seus maridos, a matarem seus filhos, a praticarem bruxaria, a destruirem o capitalismo e a se tornarem lésbicas”, protestava, já em 1992, o evangélico da televisão Pat Robertson, numa fala que ficou célebre (suscitando em muitos a reação: “Onde eu entro nessa?”). Durante a campanha presidencial de 2016 nos Estados Unidos, a raiva que foi manifestada com relação a Hillary Clinton superou de longe as críticas, mesmo as mais virulentas, que poderiam legitimamente ser feitas a ela. A candidata democrata foi associada ao “Mal” e abundantemente comparada a uma bruxa, isto é, foi atacada por ser mulher, e não dirigente política. Depois de sua derrota, alguns desenterraram no YouTube a canção que comemora a morte da Bruxa Má do Oeste no Mágico de Oz: Ding Dong, the Witch Is Dead (Ding Dong, a bruxa está morta) — um ritornelo que já tinha reaparecido em 2013, quando a Margaret Thatcher morreu. Essa referência foi ostentada não apenas pelos eleitores de Donald Trump, mas também por alguns partidários do rival de Hillary Clinton nas primárias do partido. No site oficial de Bernie Sanders, um deles anunciava uma coleta de fundos chamada Bern the Witch (um jogo de palavras com Burn the Witch, “Queimem a Bruxa”, com Bern, de Bernie, no lugar de burn), um anúncio que a equipe da campanha do senador do Vermont retirou logo que foi informada. Na série de piadas péssimas, o editorialista conservador Rush Limbaught atacou: She’s a witch with a capital B (Ela é uma bruxa com um P maiúsculo). Sem dúvida, ele ignorava que no século XVII um protagonista no caso de Salem, em Massachusetts, já havia explorado essa consonância ao tratar uma das acusadoras, sua criada Sarah Churchill, de bitch witch (bruxa puta). Em reação, apareceram em meio às eleitoras democratas broches com os dizeres “As bruxas apoiam Hillary” ou “As harpias apoiam Hillary”.

Nos últimos anos aconteceu uma virada notável na maneira como as feministas francesas entendem a figura da bruxa. Na apresentação de Mulheres, magia e política, os editores escreveram: “Na França, aqueles que fazem política adquiriram o hábito de desconfiar de tudo o que diz respeito à espiritualidade, que rapidamente acusam de extrema direita. Magia e política não combinam, e, se mulheres decidem se chamar de bruxas, fazem-no eliminando o que consideram superstição e antigas crenças, e retendo apenas a perseguição de que foram vítimas pelos poderes patriarcais”. Essa constatação não é mais tão verdadeira hoje em dia. Na França e nos Estados Unidos, jovens feministas, mas também homens gays e trans, reivindicam tranquilamente o recurso à magia. Entre o verão de 2017 e a primavera de 2018, a jornalista e autora Jack Parker editou Witch, Please, “a newsletter das bruxas modernas”, que tinha muitos milhares de inscritos. Ela difundia ali fotos de seu altar e de seu grimório pessoais, entrevistas com outras bruxas, bem como conselhos de rituais relacionados com a posição dos astros e as fases da lua.

Na França e nos Estados Unidos, jovens feministas, mas também homens gays e trans, reivindicam tranquilamente o recurso à magia

Essas novas adeptas não seguem nenhuma liturgia comum: “A bruxaria sendo uma prática, ela não tem necessidade de ser acompanhada de um culto religioso, mas pode perfeitamente combinar-se com ele”, explica Mael, uma bruxa francesa. Não há aqui incompatibilidade de base. Encontramos assim bruxas das grandes religiões monoteístas (cristãs, muçulmanas, judias), bruxas ateias, bruxas agnósticas, mas também bruxas das religiões pagãs e neopagãs (politeístas, wiccanas, helenistas etc.). Starhawk — que adere ao conjunto bastante vasto da Wicca, a religião neopagã — também preconiza a invenção de rituais em função das necessidades. Conta, por exemplo, como nasceu o ritual por meio do qual ela e seus amigos festejam o solstício de inverno, fazendo uma fogueira alta na praia, e em seguida mergulhando nas ondas do mar, com os braços para cima, com cantos e vociferações de júbilo: “Durante um dos primeiros solstícios que celebramos, fomos à praia ver o sol se pôr antes do nosso ritual da noite. Uma mulher disse: ‘Vamos tirar nossas roupas e pular na água! Vamos, quero ver!’. Lembro ter lhe respondido: ‘Você é louca’, mas mesmo assim o fizemos. Depois de alguns anos, tivemos a ideia de acender uma fogueira, para conjurar a hipotermia, e assim nasceu uma tradição. (Faça alguma coisa uma vez, e é uma experiência. Faça-a duas vezes, e é uma tradição)”.

Produto

  • Bruxas – A força invencível das mulheres
  • Mona Chollet
  • Âyiné
  • 296 páginas

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