Como vivem os poetas do Instagram?
Com centenas de milhares de seguidores, poetas fazem sucesso na rede, mas enfrentam desafio de capitalizar essa atenção para viver da arte
Para a escritora e poeta do slam Mariana Felix, 39, nem a poesia nem o Instagram foram as primeiras paradas no percurso. “Quando comecei, eu tinha um site bem precário em que postava crônicas, mas não divulgava o link em lugar nenhum”, lembra a autora de “Minha Liberdade Não te Serve” (WMF Martins Fontes, 2023) e de outros quatro livros do gênero.
MAIS SOBRE O ASSUNTO
Minha Liberdade Não te Serve
Slam, poesia e um tempo de urgências
CV: Renan Costa Lima
O primeiro contato mais direto com a poesia aconteceu em 2014, num sarau do Movimento Aliança da Praça, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. Foi quando se apaixonou de fato pelo gênero, deixando o blog de lado para produzir poemas em vídeo que passou a publicar no Facebook. No mesmo ano, ela se viu como a única mulher em seu primeiro slam — competição de poesia falada.
“Participei meio obrigada, porque só tinham homens inscritos”, lembra Felix. “Foi muito empoderador para minha trajetória, a primeira vez que fui ouvida com consciência e atenção, e também a primeira que fui aplaudida.” Com o tempo, os vídeos poéticos que postava na rede passaram a atrair milhares e, em alguns casos, milhões de visualizações, enquanto ela rodava o Brasil em batalhas de slam. Com a ajuda de uma amiga, fez uma fanpage, passou a publicar vídeos também no YouTube e no Twitter e criou um perfil no Instagram (@soumarifelix).
Hoje, ela se destaca entre os muitos que fazem sucesso com poesia na rede, onde reúne 117 mil seguidores, postando versos curtos sobre temas como sexo, relacionamentos, machismo, racismo, política e saúde mental. Sempre, ela frisa, de uma perspectiva intensamente feminina.
Reprodução/Instagram @soumarifelix
Embora haja perfis de todos os tipos, as mulheres parecem surgir com mais frequência entre os poetas presentes no Instagram. A publicitária Cristina Rioto, 32, por exemplo, aproveitou a pandemia para reunir num projeto único os textos esparsos que escrevia. “Eu tinha vários insights e às vezes não estava em casa, sem nenhum caderninho para anotar. Acabava escrevendo na caixa de saída do email e deixava ali”, conta.
Assim nasceu o @caixadesaida, perfil onde compartilha com seus mais de 200 mil seguidores textos que chama de “pílulas poéticas”, sempre com uma caixa de mensagem de fundo. “Para minha surpresa, cresceu super rápido”, lembra Rioto. “Foi num momento em que a gente carecia de contato com as pessoas, com muito afeto para endereçar que até hoje a gente ainda não sabe nomear. Todo mundo na tela, carente e consumindo muita coisa digital.”
O que se escreve
Além de contar no início com um volume robusto de produção — anos de poesias curtas retidas em sua caixa de saída —, devido à experiência em agências de publicidade, Rioto sabia da importância da divulgação e da periodicidade para desenvolver um público amplo e fiel. Também considera que o tamanho dos textos — geralmente não mais do que três ou quatro versos — é perfeito para o ambiente repleto de estímulos da rede social, evitando que o usuário precisasse gastar muito tempo ou esforço lendo.
Reprodução/Instagram @caixadesaida
Hoje, para se inspirar, ela busca quebrar a rotina. “Tento sair das telas, andar na rua, ouvir música. Esse estado contemplativo, que é um desafio, acaba me ajudando a abrir espaço para alguma palavra chegar”, afirma. A prática e o trabalho constante também são essenciais. “Sentar e me demorar em alguns insights que anoto e vou ajustando, aparando as arestas de alguns textos, são coisas que me estimulam.”
Tento sair das telas, andar na rua, ouvir música. Esse estado contemplativo, que é um desafio, acaba me ajudando a abrir espaço para alguma palavra chegar
Os temas, por sua vez, são universais: sentimentos como o amor, afeto, saudade, além de reflexões cotidianas. “O que machuca/é tudo aquilo/que a gente poderia ter/sido”, escreve numa das publicações mais recentes.
Na visão de Felix, a variedade de assuntos é um dos motivos por que tantas pessoas se identificam com aquilo que escreve. O olhar da autora também acaba definindo seu público. “Meu público é muito nichado. São mulheres que parecem comigo na cor, na classe social, nas histórias das relações que tiveram, na visão política”, aponta.
A escrita de autoras mulheres no cenário da poesia atual, segundo ela, traz uma perspectiva feminina historicamente negada. “Durante muitos anos, na nossa literatura, a maioria dos escritores eram homens, que escreviam sobre o que as mulheres sentiam”, afirma a autora. “Mas a gente não se identifica com essas obras. Não acho que um homem seja capaz de descrever com plenitude o sentimento de uma mulher.”
As pessoas vão consumindo meus livros conforme têm um contato direto com a minha vida. Faço essa divulgação entregando meu cotidiano, minhas vivências, os lugares para onde viajo
Atualmente, a grande maioria das suas vendas de livros vem da rede social, diz Felix, o que inclui desde os volumes independentes até o mais recente, publicado por uma editora de alcance nacional, a WMF Martins Fontes. “As pessoas vão consumindo meus livros conforme têm um contato direto com a minha vida. Faço essa divulgação entregando meu cotidiano, minhas vivências, os lugares para onde viajo.”
Os números positivos de vendas, ao menos para a realidade editorial brasileira, significam que ela consegue viver exclusivamente da poesia? Mais ou menos. Além de escritora, Felix também atua como produtora cultural e, desde 2020, está na política — hoje, ela é pré-candidata a vereadora em São Paulo pelo PSOL. “Consigo viver com um mínimo de dignidade, morando, me cuidando, me alimentando, essas coisas básicas. Vivo do engajamento político, poético e da produção cultural.”
Dá para viver de poesia no Brasil?
“Não sei se você fez essa pergunta para todo mundo, mas, se alguém disse que dá, quero muito ouvir”, responde o poeta Fabrício Garcia, 29. Se não ficou claro, não, ele não acha possível. “A maioria dos poetas tem um trabalho formal e escreve também. A pessoa precisa vir de um lugar com grana para manter isso sem um trabalho paralelo”, declara.
A questão é complexa, ainda mais num país onde 84% da população adulta não comprou nenhum livro em 2023, segundo a pesquisa “Panorama do Consumo de Livros”, da Câmara Brasileira do Livro.
Formado em jornalismo, Garcia trabalha como redator numa agência publicitária, assim como Rioto. Ele publica seus textos na rede, onde tem 111 mil seguidores (@fabriciogvrcia), desde 2019, tratando com leveza temas como amor e identidade (“às vezes/me pergunto como seria/se eu não fosse eu”). No isolamento da pandemia, começou também a escrever sobre o cotidiano doméstico, abordando atos simples como cozinhar ou objetos corriqueiros, a exemplo do escorredor de louça e o capacho da porta.
Além disso, também vende bandeirinhas e plaquinhas com seus poemas, para decorar o ambiente doméstico, e ministra oficinas de escrita desde 2022. “É uma fonte de renda possível. [As oficinas são] um caminho diferente para partilhar com as pessoas e escrever em conjunto, porque escrever às vezes é meio solitário”, afirma o poeta, que já tem dois zines publicados, além do livro “Ursos Polares Também Morrem Afogados” (Gralha, 2022).
A maioria dos poetas tem um trabalho formal e escreve também. A pessoa precisa vir de um lugar com grana para manter isso sem um trabalho paralelo
Rioto até sonha em viver da escrita autoral — com o @caixadesaida, já fez collab com uma marca de roupa, publicou um livro e também lecionou em oficinas de poesia —, mas teme que, caso o perfil se torne a principal fonte de renda, mudem também seu prazer e comprometimento com a escrita. “Tem a parte autora e a parte redatora”, explica. “O perfil não foi feito pensando na parte comercial, foi um livre expressar. Quando você deposita tudo ali, essa criação passa a caminhar em outro tempo.”
No passado, Garcia chegou a se incomodar com o preconceito por ser um poeta que publica seus textos no Instagram. Hoje, no entanto, enxerga como o principal caminho para ser lido e divulgado, a ponto de nomes reconhecidos como Ana Martins Marques e Marília Garcia também usarem a rede para promover suas obras.
“Sempre separo na minha cabeça meu trabalho como redator e o de poesia na internet, porque são coisas muito diferentes”, conta o artista. “Mas, se pudesse, ficaria só com a poesia e as oficinas, que têm muito mais a ver comigo.”
Reprodução/Instagram @fabriciogvrcia
Poema concreto
A artista visual, escritora e cineasta Verena Smit, 40, usa o Instagram como ferramenta de trabalho praticamente desde que a rede nasceu. Criado como uma espécie de diário fotográfico sempre em preto e branco, seu perfil (@verenasmit) foi mudando conforme ela passou a integrar o texto e a poesia à sua arte, até então muito mais visual.
Hoje, publica com frequência por lá fotografias de textos datilografados, cuja maior marca são os jogos de palavras e o uso do inglês, inspirado pelo período de graduação em Nova York. “As palavras sempre estiveram presentes, mas nunca prestei muita atenção nelas. A imagem me seduzia muito mais. Nunca tinha pensado que o texto poderia ser uma imagem também”, analisa.
Aquilo que ela produz costuma refletir sua vida e pensamentos: notícias, questões políticas, sociais e afetivas. “A pessoa não precisa saber da minha vida, mas, se ler minhas palavras, consegue entender”, afirma. Por exemplo: seus poemas hoje têm tratado bastante de maternidade.
A pessoa não precisa saber da minha vida, mas, se ler minhas palavras, consegue entender
A artista, que já expôs suas obras pelo Brasil e em países como EUA e Portugal, usa a rede como galeria, forma de divulgação e portfolio, contemplando trabalhos como o Poesia Concreto, intervenção artística que realizou no centro de São Paulo. “Hoje falo que, se quiser conhecer meu trabalho, vai no Instagram.” Apesar dos inevitáveis altos e baixo, há um bom tempo considera ser uma das poucas pessoas que conseguem viver da arte no país — e, ela frisa, sempre com ajuda da rede. “Às vezes tenho minhas crises e quero sair. Mas descobri que não preciso, porque é um lugar onde também cabe meu trabalho.”
Reprodução / Instagram @verenasmit
Quando decidiu largar o cargo na agência de publicidade onde trabalhava para se dedicar à veia poética e criativa, Camila Lordelo, 42, nem imaginava que isso acabaria se mostrando uma oportunidade de negócios. A motivação surgiu após ela produzir, por conta própria, um colar com um poema que tinha escrito. “As meninas da agência todas quiseram. Nessa experiência de criar um objeto, me senti por inteiro”, relembra.
“Cinco meses depois de criar esse colar, tomei uma cachaça e a coragem de pedir demissão”, conta a artista e empreendedora, hoje à frente da @euliricas. A marca produz acessórios, peças de roupa e decoração que ostentam versos e palavras escritas por Lordelo. O projeto, segundo ela, foi também uma forma de fugir da lógica editorial, em que a grande maioria dos poetas não encontram base suficiente para se dedicar 100% à arte. “Entendi isso como um formato. Queria colocar a literatura no mundo, mas também gostava muito de criar coisas”, explica.
Pelo Instagram, a artista divulga poesias, objetos e também vídeos de seus processos de criação, que ajudam a engajar os seguidores e clientes. Os colares são até hoje campeões de venda, segundo ela pelo tamanho, praticidade e possibilidade de conexão. Embora o público da Eulíricas seja 99% feminino, este ano a marca pretende lançar uma coleção voltada para os homens, visando “convidá-los ao despertar dessa sensibilidade masculina”.
Lordelo diz que seus poemas são simples, tratando geralmente de amor e afeto, e muitas vezes atraem pessoas que não estão acostumadas a ler poesia. “Mas tem um convite mais profundo do acesso à própria sensibilidade”, afirma. Embora tenha deixado oficialmente a publicidade, ela segue trabalhando através da empresa com marcas como Natura e Nestlé, só que agora propondo sempre ações por meio da arte. “A publicidade fundou um mundo em que não existem coisas erradas. Mas o mundo é humano, e esse é o lugar da poesia, resgatar esse humano.”
Reprodução/Instagram @euliricas
Quem não é visto não é lembrado
Sobre o Instagram, Fabrício Garcia confessa ter sentimentos conflitantes. “Eu amo e odeio, sendo muito sincero”, afirma o poeta. “Queria me desligar de tudo, mas meu trabalho ficou muito atrelado à rede social. É minha ferramenta para chegar nas pessoas, mostrar que estou vivo, produzindo, escrevendo. E quem não é visto não é lembrado.”
O excesso de conteúdo e a necessidade de estar sempre produzindo, ele diz, por vezes causam uma saturação da rede. Para Cristina Rioto, isso se traduz numa ansiedade por precisar aparecer o tempo todo, “quase na contramão do que significa uma produção literária mais aprofundada”. E, se por um lado a rede pode aproximar da poesia pessoas que não tinham o hábito de ler, também acaba gerando leituras superficiais. “Acho difícil ter essa presença, uma cabeça que consegue ignorar notificações para focar num texto.”
Acho difícil ter essa presença, uma cabeça que consegue ignorar notificações para focar num texto
Mas o modelo do Instagram também tem seus pontos positivos. Na visão de Mariana Felix, a poesia na rede em parte reflete o que vem acontecendo no slam, com uma maior presença e protagonismo femininos ao longo da última década. Além disso, considera que a rede aproxima muito mais os poetas dos leitores.
“A diferença é a acessibilidade. Antes era uma coisa muito distante”, relata a escritora. “Hoje o poeta pega ônibus e metrô. Ele saiu desse pedestal, se tornou mais popular. E isso dá acesso à leitura, escrita, compreensão de texto, diminuição do analfabetismo funcional e empoderamento da população preta e periférica. O artista não tem que ser endeusado, mas estar no meio do povo.”
Mesmo com as inevitáveis crises inerentes às redes sociais, Verena Smit hoje entende que o Instagram é um ambiente profundamente democrático.
“É muito sobre marcas, sobre vender, mas, quando você pega uma pílula, uma poesia, parece que dá uma leveza. Não só para quem escreve, mas para os artistas em geral, virou um canal importante de venda, de reconhecimento, de democratizar e sair da bolha da galeria de arte.”