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Bloco de notas

Dez poemas novos

Uma seleção de poemas lançados em livros recentes que inspiram e trazem um breve panorama da produção atual

Dez poemas novos

21 de Abril de 2024

Uma seleção de poemas lançados em livros recentes que inspiram e trazem um breve panorama da produção atual

  • Microcontos sobre a solidão
    de mulheres negras

    Uma amiga passou seis anos sem beijar durante a
    adolescência
    Outra transou pela primeira vez aos 27 anos
    Outra dormiu de conchinha com o cara de quem havia
    acabado de levar um fora
    Outra foi tratada como cachorro pela primeira mulher
    que amou
    Outras tantas foram pioneiras em suas vidas artísticas
    e acadêmicas, mas morreram pobres e esquecidas
    Outra (…)
    Outra, outra, outra, outra e outra
    E tantas dessas outras sou eu
    E tantas dessas somos nós umas nas outras

    “Desamada: Um Corpo À Espera Do Amor” (Rosa dos Tempos, 2023), de Midria 

  • gravata

    para meu pai

    imagina sair pra trabalhar
    todo dia
    com um nó na garganta?
    “Todo O Resto É Muito Cedo” (Bazar do Tempo, lançamento 2024), de Luiza Mussnich

  • Eu, o Poema

    Hoje — que hoje? Que o hoje,
    só seu, não é o mesmo que o meu.
    Eu, o poema, não vibro
    no ar, se ninguém me leu.
    Não deixa que o livro te engane:
    foi corpo o que me aconteceu,
    e se hoje eu, cantando, sou canto,
    seu corpo é que me reviveu:
    por este ectoplasma estranho
    de som, de inscrição, de sonho,
    seu corpo bate no meu.
    Hoje, quem diz o poema
    não sei se sou eu ou eu.

    “Coisa de Mamíferos” (Editora 34, 2023), de João Mostazo

  • príamo

    em português se diz destrua e não destroia
    nem no verbo na aniquilação total
    a cidade sobrevive
    não conseguimos te proteger
    testículos arremessados aos cães
    um ancião conta drops no semáforo
    sabíamos desde o começo
    a) eles falam a mesma língua
    b) definem o que é clássico
    c) os píncaros são altos demais pra voz humana

    “Também Guardamos Pedras Aqui” (Nós, 2021), de Luiza Romão

  • rodagem
    ogum vem ou não vem logo assim virá
    cedo ou tarde espalhar brasa de correr

    germinar refeição vir a ser forja
    matagal de outra cor nunca mais cresceu

    segredou ao vulcão pretovirgular
    quando vir matará preço de viver

    já banhei meus irmãos falta o céu quebrar
    rechamei pra lembrar guerrear valeu

    ogum vem ou não vem logo saberá

    “Pretovírgula” (Círculo de Poemas, 2023), de Lucas Litrento

  • Mary Jane Watson

     

    lembro que fiquei intrigada com o beijo do homem-aranha
    com a mary jane.
    embaixo da chuva e de cabeça pra baixo

    fiquei um tempão me perguntando a sensação
    e me imaginando dando aquele beijo…

    na mary jane.
    eu sentia vontade
    de dar beijos de cinema em garotas
    antes mesmo de me dar conta
    de que daria nelas
    beijos de qualquer coisa

    “Oxe, Baby” (Galera, 2021), de Elayne Baeta

  • Sem fingir algo a mais.
    Sem dizer que quer, sem querer.
    Sem despertar propositalmente expectativas
    que não pretende cumprir.
    Ser pouco, se só puder ser pouco.
    Ser muito, se realmente tiver muito para dar.
    É mais do que responsabilidade afetiva,
    é bondade.

    “Pra Você Que É Emocionado” (Academia, 2024), de Victor Fernandes

  • 1989

    infância é ganhar
    uma lu patinadora
    de natal e depois da ceia
    quitar a dívida
    no quarto de menina
    uma lâmina de luz lhe cortava o rosto
    e a língua na boca se movia
    bruna
    faz aquilo que o papai gosta.
    “Ninguém Quis Ver” (Companhia das Letras, 2023), de Bruna Mitrano

  • Quaresma

    No ano em que brinquei de ser católica
    lamentei que as semanas passassem tão devagar
    até o Sábado de Aleluia;
    o padeiro reclamando —
    ninguém mais compra pão —
    a adega do mercado cheia de vinho.
    Eu passava o dia faminta por algo mais que comida.

    Na volta para casa a menina de que eu gostava
    não abriu a boca nenhuma vez, o asfalto virando areia
    a estrada se estreitando, esburacada e suja.
    Dois corpos murmurando alto na noite silenciosa.

    A fome aguçou o desejo
    aos poucos a intenção virou cinzas na boca,
    então erguemos as mãos e nos tocamos brevemente,

    até que a ladainha materna
    numa rua não escura o suficiente
    mediu a distância entre nós.

    “A Costureira Descuidada” (Círculo de Poemas, 2023), de Tjawangwa Dema

  • toda cicatriz é um
    rastro de história

    perdemos: dente, roupas, melhores amigos,
    filmes, aulas, tudo. e que dádiva é saber perder.
    que dádiva é noticiar a presença de outro dente
    nascendo ao redor da boca, ao lado da cura,
    no infinito de tudo.

    “Textos Para Tocar Cicatrizes” (Globo, 2022), de Igor Pires