Fabrício Corsaletti, vencedor do Jabuti, fala sobre poesia — Gama Revista
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Ilustração: Isabela Durão. Foto: Renato Parada

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Conversas

Fabrício Corsaletti: "Eu lido com a vida escrevendo poesia"

Autor venceu a categoria livro do ano no último Jabuti com os sonetos de “Engenheiro Fantasma”, onde imagina um Bob Dylan versão portenha

Leonardo Neiva 21 de Abril de 2024

Fabrício Corsaletti: “Eu lido com a vida escrevendo poesia”

Leonardo Neiva 21 de Abril de 2024
Ilustração: Isabela Durão. Foto: Renato Parada

Autor venceu a categoria livro do ano no último Jabuti com os sonetos de “Engenheiro Fantasma”, onde imagina um Bob Dylan versão portenha

Quando perguntado no Questionário Proust da Gama sobre a pessoa viva que mais admira, Fabrício Corsaletti não hesitou: Bob Dylan. E, no fim, foi justamente por se colocar na pele e voz do cantor e compositor de hits atemporais, como “Blowin’ in the Wind” e “Like a Rolling Stone”, que o escritor paulista acabou subindo ao palco do último Jabuti, mais conhecida cerimônia literária do Brasil, para receber a principal premiação da noite: a de livro do ano, por “Engenheiro Fantasma” (Companhia das Letras, 2022).

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Fabrício Corsaletti
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A obra reimagina em 56 sonetos uma existência completamente ficcional de Dylan durante uma longa temporada na Argentina. Embora aponte, em entrevista a Gama, que nunca escreve pensando em prêmios, Corsaletti admite que a vitória ajuda a atrair uma atenção importante para a obra. Também conta que não esperava ser premiado, ainda mais na categoria que engloba todos os livros do evento. “Quando subi no palco, minha surpresa maior foi ter ganho o livro do ano. Nunca imaginei.”

Nascido na cidadezinha de Santo Anastácio, no interior de São Paulo, o escritor não teve seu primeiro contato com a poesia pelos livros ou autores clássicos, mas pelas músicas que o pai tocava no violão. “Eu achava fascinantes as rimas. Minha primeira experiência com a poesia vem da música popular brasileira”, conta. Outra lembrança são as obras de escritores como Jorge Amado e García Márquez que a mãe lia, e que despertaram no jovem Corsaletti a curiosidade pela literatura. “Era uma coisa prazerosa aquele silêncio dela”, relembra.

Até hoje, ele já publicou mais de 20 livros, entre crônicas, romance, contos, obras infantis e poesia. Não esconde, no entanto, a preferência pelo último da lista, gênero que começou a escrever aos 15 anos, desde que entrou em contato pela primeira vez com Cecília Meirelles, Drummond e Bandeira. A exemplo do premiado “Engenheiro Fantasma”, outras de suas obras, como o único romance “Golpe de Ar” (Editora 34, 2009) e o volume de crônicas poéticas “Quadras Paulistanas” (Companhia das Letras, 2013), têm como personagem central a geografia dos lugares onde o autor viveu.

No caso de “Engenheiro Fantasma”, foi um sonho que inspirou Corsaletti a imaginar uma versão alternativa de Bob Dylan vivendo pelas ruas de Buenos Aires, nas quais o próprio autor já perambulou muitas e muitas vezes. “Tenho uma Buenos Aires e um Bob Dylan imaginários. Foi a fusão dessas duas coisas no sonho que detonou no livro”, explica. Além da obra recente, o autor também inclui entre seus trabalhos mais emblemáticos “Seu Nome”, único “poema hit” de sua carreira, que na época escreveu para a namorada. “Muita gente leu, teve uma grande repercussão. E foi muito trabalhoso, levei uma semana ininterruptamente escrevendo esse poema. Então tenho orgulho dele”, afirma.

O autor, que considera ser impossível ganhar a vida apenas como poeta no Brasil, hoje vive principalmente de dar aulas de contos e crônicas, assim como no passado já tirou o ganha-pão na atuação como editor e jornalista. A poesia em si ele prefere não ensinar, para não expor demais a intimidade. Provando sua trajetória prolífica como escritor, deve publicar em breve mais um volume de crônicas, outro livro infantil, traduções de García Lorca e do poeta chileno Enrique Lihn, além de já estar trabalhando num novo volume de poemas. E vem botando para funcionar a veia musical ao atuar na escrita de letras para um álbum em parceria com a cantora e compositora Lulina.

O escritor também une aos seus talentos a pintura, tendo realizado uma série de quadros expostos junto com o lançamento de seu livro “La Ley del Deseo y Otras Películas” (Corsário Satã, 2023), de poemas inspirados nos filmes de Almodóvar. No papo com Gama, Corsaletti aborda ainda seu intenso processo de escrita, o estado atual da poesia no Brasil e a complexa tarefa de se desapegar dos erros antigos para produzir novos.

Vestir um personagem é muito libertador. Me vi falando coisas que nem sabia se pensava ou não, mas que soavam bem nos poemas

  • G |No seu discurso no Jabuti, você disse que estava surpreso com a premiação. Quais eram as suas expectativas? O prêmio teve algum significado especial pra você?

    Fabrício Corsaletti |

    Já escrevi tantos livros e tinha ganho um prêmio uma vez, o prêmio Bravo!. Então não tinha muita expectativa, mas também não penso muito em prêmio. É algo que não tem nada a ver com a minha profissão. Eu escrevo o que quero ou tenho que escrever. Nunca penso se o livro é bom, se vai ganhar prêmio ou não. Quando foi para a final, achei super legal que ia chamar atenção para o livro. O mais legal dos prêmios é isso. Mas a concorrência era muito alta, tinha Paulo Henriques Britto, Claudia Roquette-Pinto, livros muito bons. Ali era uma loteria mesmo, não achei que ia ganhar. Quando subi no palco, minha surpresa maior foi ter ganho o livro do ano. Nunca imaginei. Aí fiquei muito contente. Significa que concorri também com outras atividades e categorias.

  • G |Dos últimos quatro livros do ano eleitos pelo Jabuti, três são de poesia. Você enxerga uma maior valorização pela crítica ou por especialistas do gênero hoje no Brasil? E em termos de leitores e público geral?

    FC |

    Nos últimos anos, acho que a poesia ganhou mais visibilidade. Tem muito mais livros sendo publicados. Quando cheguei a São Paulo, a oferta de poesia era muito pequena. Hoje é uma quantidade enlouquecedora. O público de poesia sempre foi pequeno e provavelmente sempre vai ser, mas é um pouco maior do que 20 anos atrás. Existem iniciativas novas que mudaram esse cenário, editoras pequenas publicando muita poesia, autores independentes, as redes sociais, a cena dos saraus na cidade, que é um jeito de divulgar os trabalhos dos poetas. As grandes editoras também, como a Fósforo, que tem a coleção Círculo de Poemas, uma super iniciativa de publicar dois livros de poesia por mês, e o catálogo da Companhia das Letras, que é muito grande em poesia. Tanto nas grandes quanto nas pequenas editoras, tem muita coisa acontecendo. Antes não era assim.

  • G |Hoje temos uma geração muito forte de poetas. Na sua visão, que aspectos marcam essa geração?

    FC |

    Não saberia responder. Às vezes, leio coisas super antigas, que não têm nada a ver com o cenário atual. O que eu percebo é uma diversidade. Mas não diversidade de raça e gênero, embora também, mas muito mais estética. As pessoas estão escrevendo de maneiras muito diferentes entre si. É impossível ver uma linha só da poesia contemporânea, são muitas correntes.

  • G |Você já admitiu no nosso Questionário Proust que o Bob Dylan é a pessoa viva que você mais admira. Como foi escrever se colocando na pele de um de seus heróis em “Engenheiro Fantasma”?

    FC |

    Tiveram duas coisas muito legais nisso. A primeira é que, durante os nove dias em que escrevi esse livro, eu fui uma versão do Bob Dylan. Então foi muito prazeroso e instigante. A outra é que foi como usar uma máscara, fingir ser outra pessoa. Assim como um ator, vestir um personagem é muito libertador. Me vi falando coisas que nem sabia se pensava ou não, mas que soavam bem nos poemas. Me senti muito livre, foi o grande momento da minha vida de escritor. Considero o meu melhor livro.

  • G |Logo no prólogo, você descreve um sonho em que encontra Dylan perambulando por Buenos Aires. A inspiração para a obra veio mesmo daí?

    FC |

    O que falo no prólogo aconteceu exatamente daquele jeito. Tive o sonho mesmo e no dia seguinte comecei a escrever. A experiência durou nove dias. Mas com certeza não teria escrito se não tivesse passado 20 anos da minha vida ouvindo e estudando Bob Dylan e se não conhecesse Buenos Aires, onde fui muitas vezes e inclusive morei. Então tenho uma Buenos Aires e um Bob Dylan imaginários. Foi a fusão dessas duas coisas no sonho que detonou no livro. Nunca tinha passado nada parecido pela minha cabeça, escrever do ponto de vista do Dylan ou em sonetos. Era algo que não estava nos meus planos.

Essa ideia de perfeição é uma maluquice

  • G |Seu romance “Golpe de Ar” também é centrado num poeta vivendo em Buenos Aires. Como as obras espelham essa sua vivência na cidade?

    FC |

    Sou muito inspirado por lugares. Mas não foi nada programado, aconteceu. Depois que já tinha escrito vários livros em que os lugares eram personagens importantes, percebi que gostava de escrever sobre isso. Escrevi livros sobre minha cidade natal [Santo Anastácio, no interior de São Paulo], o “Golpe de Ar” e o “Engenheiro Fantasma” sobre Buenos Aires, depois um de poemas que se passam todos em Bodocó (PE), os livros de crônica são quase inteiramente sobre São Paulo. Então São Paulo, Buenos Aires, Santo Anastácio, Bodocó e São Sebastião das Três Orelhas são cidades sobre as quais escrevi para valer.

  • G |Qual o seu processo de escrita? Tem algum ritual?

    FC |

    Eu saio bastante, ando muito pela cidade, mas gosto de ficar em casa também. Quase nunca fecho o computador, sempre tem algum arquivo de poesia ou prosa aberto e todo dia mexo um pouco nele. Quando estou escrevendo uma coisa mais específica, acordo quatro ou cinco da manhã e escrevo durante duas, três horas. Nunca fico três dias sem escrever nada, não faço isso há muitos anos. Então todo dia trabalho um pouco. Quero manter a cabeça ligada nesses textos. Quando saio do computador, vou caminhar, ver minha namorada ou vou a uma festa, continuo trabalhando neles. Às vezes, fora de casa, lembro de uma frase e encontro uma solução.

  • G |Para você, qual a parte mais difícil de escrever?

    FC |

    Não tenho esse negócio de bloqueio criativo não. Faz uns 15 anos que não sei o que é isso. A única coisa que não gosto é quando um texto trava e não tenho nenhuma ideia de para onde ele vai. Aí o texto escrito se cristaliza, como se ele estivesse acabado e eu não conseguisse mais acessar. É uma coisa que me irrita profundamente. Às vezes preciso jogar fora um poema de que gosto e que poderia ter sido bom. Mas começar a escrever eu adoro, desenvolver em geral é moleza, uma coisa puxando a outra, e finalizar é algo de que gosto também. Já trabalhei muito com texto dos outros, como revisor e preparador em editora. Chega uma hora em que viro editor do meu próprio texto. Gosto muito de acertar detalhes, mostrar para amigos. Me divirto em todas as etapas, só não quando o texto trava.

  • G |Você costuma produzir bastante e de forma bem eclética. Já publicou mais de 20 livros, entre poesia, romance, contos, crônicas, livro infantil…. O que te faz embarcar num projeto literário?

    FC |

    É sempre um acidente, uma coisa circunstancial que me leva a ter uma ideia sobre um projeto. Não tem um planejamento. Adoraria escrever outro romance, mas nunca mais surgiu uma ideia. Crônicas escrevi por encomenda e acabei ficando nove anos com uma coluna na Folha. Livros infantis fui escrevendo para dar de presente para o filho de uma namorada, da minha sobrinha, de amigos. Todos eu escrevi porque quis, porque gostei de escrever. O que não é circunstancial são os livros de poesia. Isso faço desde que tenho 15 anos. A maioria do que escrevo vai para o lixo, mas escrevo. Eu lido com a vida escrevendo poesia. Não consigo passar três meses sem fazer um poema.

  • G |Existem diferenças importantes ao escrever poesia para crianças?

    FC |

    Para crianças, tomo alguns cuidados que não tomo com adultos. Primeiro, clareza absoluta. Não pode ter muita ambiguidade, a criança tem que entender o que está acontecendo. E frases sempre na ordem direta. Sintaticamente e logicamente, o conteúdo tem que estar muito claro. Só escrevi para crianças poemas com rimas, que tomo o cuidado de tornar engraçadas, surpreendentes, nada banais. E tento colocar humor, mesmo quando trato de coisas sérias, como a morte. A vida já vai ser tão chata quando elas crescerem, vamos deixar que se divirtam. Ficaria muito decepcionado se uma criança falasse que achou meu livro chato.

  • G |E você, lia poemas quando criança? De onde vem o interesse pela escrita?

    FC |

    Não fui uma criança que leu muito. Eu não lembro de nenhum livro de poesia que tenha lido quando pequeno. O que lembro muito bem é da música. Meu pai toca violão, compõe, então tinha muita música em casa. E eu achava fascinantes as rimas. Sempre tive uma memória boa para decorar letras. Já escrevi umas 20. Dez pelo menos foram gravadas por bandas diferentes, de samba, rock… Neste momento, estou fazendo um disco com a Lulina. Vamos ver se até o fim do ano a gente faz um álbum inteiro. Mas, mesmo criança, já sabia várias. Então minha primeira experiência com a poesia vem da música popular brasileira. Minha mãe lia prosa, Jorge Amado, Dickens, García Márquez, ela adora esses grandes romancistas, até hoje lê bastante. Eu sempre via minha mãe lendo, era uma coisa prazerosa aquele silêncio dela. Lembro de ter vontade de ler o que ela lia. Mas fui descobrir a poesia mesmo com 15 anos, com poemas de apostila de escola, poesia moderna brasileira, Cecília Meirelles, Drummond e Bandeira.

Gosto muito de acertar detalhes, mostrar para amigos. Me divirto em todas as etapas, só não quando o texto trava

  • G |E dá para viver de poesia no Brasil?

    FC |

    A resposta mais rápida é que não, não dá. A mais longa é que eu não vivo de poesia nem de escrita. Meus livros vendem muito pouco. Se ganho algo, é dinheiro de cachaça, que recebo de vez em quando por direitos autorais. O que acontece é que, com alguma visibilidade, você é chamado para participar de eventos que às vezes pagam, às vezes não: feiras literárias, oficinas. Eu sou professor, vivo de dar aula. Já fui editor, já trabalhei em escola, em jornal.

  • G |Qual a sua relação com o ato de ensinar escrita?

    FC |

    Há 12 anos, dou aula de prosa, de crônica e conto. Quase não dou oficina de poesia. Eu analiso, leio contos de alunos e digo o que vi. Não ensino a escrever, fico meio de pé atrás com esse negócio. O que ensino, se é que ensino alguma coisa, é o que vejo nos textos, como leio aqueles textos. Meu trabalho é mais de editor, de entender o que a pessoa está querendo e ajudá-la a chegar naquele lugar. Se ela está indo por um caminho, pergunto se por esse outro não ficaria legal. É uma conversa como a que o editor tem com o autor, para ajudar a pessoa a ver o próprio texto.

  • G |Você não dá aula de poesia de propósito?

    FC |

    Sim. Não gosto de ficar falando de coisas gerais sobre poesia, gosto de escrever. Me sinto abrindo uma intimidade que não me interessa abrir. As poucas vezes em que dei oficina de poesia, me deu uma sensação de exposição excessiva. E sou muito mais leitor de prosa. Tenho o maior prazer em ficar falando de Tchekhov. Não me exponho em nada quando falo dos contos dele.

  • G |Tem algum dos seus livros de que gosta mais?

    FC |

    Gosto do “Engenheiro Fantasma” e do meu primeiro livro, que tem uma força própria. Gosto muito também do “Esquimó”, do “Perambule”, de crônicas. E a melhor prosa que escrevi foi o “Golpe de Ar”, que é muito superior tecnicamente aos meus outros livros do tipo. Mas não desgosto nem me arrependo de nenhum livro ou poema que publiquei. Se foi parar em livro, é porque acho que vale a pena preservar. Tem coisa que escrevi 20 anos atrás e nunca mais li. Senão, vira uma coisa egoica ficar relendo o próprio trabalho. É um processo tão complicado e intrincado entender o que te leva a escrever alguma coisa. Depois que escreve, não adianta voltar dez anos depois e dizer que não devia ter escrito daquele jeito. Naquela época, eu achava aquilo, então precisa ter algum respeito por todo o processo. Tem gente que fica a vida inteira reescrevendo e encontrando defeitos num livro. Deixa os defeitos para trás e vai escrever outras coisas, que virão com outros tipos de defeitos. Essa ideia de perfeição é uma maluquice. Não existe perfeição em nada.

  • G |Além do álbum com a Lulina, no que você está trabalhando hoje?

    FC |

    Estou fechando um livro de crônicas para entregar até outubro para a editora 34. No ano que vem, vou publicar três livros em um, um volume com dois livros de crônica já publicados mais um inédito. Este ano, sai uma tradução minha do García Lorca e estou traduzindo também o Enrique Lihn, um poeta chileno, para a editora Nós. Vou publicar um livro infantil pela 34 e estou trabalhando num livro de poemas que pretendo terminar até ano que vem. Então são cinco coisas.