Slam, poesia e um tempo de urgências — Gama Revista

Slam, poesia e um tempo de urgências

Pesquisador examina a autobiografia de Emerson Alcade, que traz ainda a história do slam no Brasil e revela a emergência e as contradições dessa cena artística periférica

Marcos Campos 16 de Janeiro de 2023

“Às vezes, a poesia salva muita gente, menos quem a escreveu”. Elaborações poéticas como essa circulam nas batalhas de slams adentro, periferias do Brasil afora. Em alguns casos, é difícil auferir a autoria do pensamento. Mas o que é “poesia” aqui? O uso das aspas cumpre uma função essencial. Não me refiro à palavra em si, de significado definido nos dicionários, de uso corrente ou ao que pode vir a ser delimitado por circuitos artísticos eruditos, mas, sim, às referências de mundo que essas verbalizações particulares e contextuais dão a ver.

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A “poesia” não é só texto, mas surge na fala como algo que vai além do verso escrito em uma folha de papel – ou, melhor dizendo, numa tela de smartphone. Enunciá-la desse modo é mais sobre o que ela faz, e não sobre o que ela é. Talvez outros dois versos, muito repetidos como máximas ético-poéticas das competições de poesia (as batalhas de slam) nos ajudem: “A gente vive o que a gente escreve, a gente escreve o que a gente vive” e “poesia é o que a gente vive, o resto é literatura”.

A gente vive o que a gente escreve, a gente escreve o que a gente vive

Se a poesia como um fazer artístico é, imediatamente, associada às profundezas da subjetividade da pessoa-poeta que escreve, quando slammers falam “poesia”, há uma torção dessa perspectiva. A “poesia” é sempre coletiva. Ela é uma forma de vida.

Esses versos, todavia, não operam em pura abstração ou devaneio. Há um saber prático, da vivência, que interpela e problematiza a todo momento como conduzir a vida em meio à incerteza. Esse saber se expressa numa constante oposição, no “entre”. Quase como uma recusa em se estabilizar em qualquer categoria, espaço-tempo, envolta na necessidade de manter, a contrapelo do mundo, a imaginação aberta a outras possibilidades.

Aspirações, percalços e ambiguidades dessa forma de vida são traçados no livro “Nos Corre da Poesia – Autobiografia de um Slammer” (Editora Selin Trovoar, 2022), de Emerson Alcalde. Perseguir o rap dos anos 1990, como feito com os Racionais MCs, é rastrear a constituição dos “periféricos”. Categoria essa que, segundo o sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea, funda novos sujeitos políticos. Por outro lado, a autobiografia de Alcade, poeta, escritor e ativista, apresenta outra categoria que permite ver uma distinta mudança dos tempos.

Para tanto, o título do livro não pode passar batido. Se o cuidado meticuloso com as palavras é parte do ofício em questão, por que, então, o cofundador do Slam da Guilhermina – primeiro slam de rua do país, realizado na estação do metrô Guilhermina-Esperança, na zona leste paulistana – narra sua vida como corre e não como luta, como os conhecidos “autoconstrutores” das periferias?

Reside aí o seu estatuto de leitura obrigatória. Desde sua vivência de mais de década entre os slams, e mais 30 anos pelas periferias paulistanas entre trampos, o autor nos mostra as bases do corre como experiência contemporânea e geracional no urbano. O fazer da sua vida se confunde não só com a história de uma das maiores inovações culturais do Brasil contemporâneo, mas também nos mostra as possibilidades e incertezas de vidas emergentes nas próprias periferias brasileiras.

Não à toa, Nivaldo Brito, que escreve a orelha do livro, faz referência a uma fala clássica, que remete às temporalidades vividas do progresso, das lutas daqueles que chegaram primeiro nesses espaços, da passagem do rural ao urbano, ao situar a posição de Emerson Alcalde na história cultural dos slams no país: “Quando eu cheguei, era tudo mato”. Há uma homologia possível aí. Mas aqui, a cidade e as possibilidades são outras.

Quando ele chegou ao Zona Autônoma da Palavra (ZAP), em 2008, esse era o primeiro slam brasileiro. De acordo com o mapeamento do livro, hoje há 266 no Brasil. Deixemos para lá a referência à destruição da floresta como imagem de pioneirismo e fiquemos com o aspecto processual desse imaginário. Falar dos “corre da poesia” também significa um pensamento temporal. O que não necessariamente se conecta a um destino social mais favorável para as pessoas desses territórios.

Entretanto, se o corre não vem junto do progresso, ele vem junto do quê? De edital a edital disputado, de livro a livro vendido, de viagem a viagem percorrida, de batalha a batalha produzida, Emerson Alcalde, que aparece como um verdadeiro mediador de diferenças (territoriais, de classe, culturais, geracionais; entre as aspirações individuais e coletivas) ao longo de sua biografia, em um mundo cujas relações entre a proximidade e a distância estão em permanente reconfiguração, nos mostra a persistência da busca pela realização de sonhos. A imaginação persiste, a despeito da crescente sensação da imposição sufocante do tempo das urgências.

A imaginação persiste, a despeito da crescente sensação da imposição sufocante do tempo das urgências

Ao mesmo tempo, Alcalde problematiza a ideia de que poetas devem sobreviver apenas da venda de zines, a partir de sua vivência da profissionalização do slam em contextos como no Canadá, discutindo uma série de tensões e contradições que atravessam o cotidiano dessa cena artística.

Uma das passagens mais emblemáticas é uma que vai de encontro a outro verso conhecido no circuito: “slam não é só uma competição”. Quase como uma jornada do herói, Alcalde expõe o fervor e a neurose com que entrou na competição para vencer e promover sua ascensão nas cenas nacional e internacional nos primeiros anos de sua participação, o tamanho da tristeza, do trauma, da ansiedade e do desgosto com o segundo lugar no campeonato internacional de slam em Paris, a ponto de quase abandonar esse circuito, em virtude da vergonha e da frustração de não ter vencido para, posteriormente, reposicionar-se e atuar na popularização do slam entre escolas públicas de São Paulo. Com esse novo projeto, ele recebeu o Prêmio Jabuti de Fomento à Leitura.

O gênero do livro cumpre o papel fundamental da autorrepresentação e do registro da memória social desse movimento artístico. Podemos seguir outras temporalidades e o processo de constituição do slam no país, para além do seu transbordo para a cena pública, quando ocorreu a viralização de vídeos produzidos pelo Slam Resistência a partir de 2016, na Praça Roosevelt, região central de São Paulo, já ocupado pela “juventude do corre”.

Atualmente, alguns desses jovens já atravessaram as fronteiras do que o próprio slam era capaz de oferecer quando Emerson, seus parceiros e parceiras, acenderam o lampião na praça ao lado da estação Guilhermina-Esperança e gritaram “Guilher-Minas, Guilher-Manos, 1, 2, 3, Slam Guilhermina!”.

Marcos Campos é pós-doutorando no International Postdoctoral Program do Cebrap, doutor em sociologia pela UERJ e pesquisador associado no Grupo CASA. No doutorado, estudou como jovens racializados, moradores de periferias e favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro constroem horizontes temporais, imaginam futuros e ganham a vida por meio da poesia marginal e das batalhas de slam