Qual livro de poesia te marcou? Poetas indicam obras favoritas — Gama Revista
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Qual livro de poesia te marcou?

Ditadura, reflexões sobre os nossos tempos, palavras que causam uma doce melancolia, combinações nonsense, autores clássicos e contemporâneos: poetas contam qual foi a obra poética mais marcante que já leram

Ana Elisa Faria 21 de Abril de 2024

Qual livro de poesia te marcou?

Ana Elisa Faria 21 de Abril de 2024

Ditadura, reflexões sobre os nossos tempos, palavras que causam uma doce melancolia, combinações nonsense, autores clássicos e contemporâneos: poetas contam qual foi a obra poética mais marcante que já leram

De variados tipos, em verso ou prosa, escrita de diversas formas, sobre temas banais, urgentes, do passado ou do presente, a poesia vive um momento profícuo no Brasil. Para conhecer o que leem, as inspirações e o que gostam nesse gênero literário, perguntamos a nove poetas contemporâneos qual obra poética marcou a vida de cada um.

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Ditadura, reflexões sobre os nossos tempos, luta anticolonial, palavras que causam uma doce melancolia, combinações nonsense, múltiplas possibilidades de construção, autores clássicos e contemporâneos: tem de tudo nos livros citados por escritores e escritoras de poesia consultados pela Gama.


Adelaide Ivánova indica “A Continuação do Fim do Mundo” (&etc, 1995), de Adília Lopes

 Foto: Adelaide Ivánova

“É muito difícil escolher apenas um livro. Sendo assim, eu só consigo pensar em Adília Lopes. Ter contato com o trabalho dela significou para mim um giro na minha forma de escrever porque muito me libertou da obrigação do fazer poético com um requifife de palavras, que eu já não tinha muito, mas eu tinha uma síndrome da impostora, digamos assim, por não ser mais parnasiana. E acho que a Adília tem uma forma muito bonita de apresentar problemas existenciais e psíquicos, além de problemas da ordem da linguagem de uma maneira profundamente complexa e, ao mesmo tempo, super simples. Um dos livros dela mais importantes para mim se chama ‘A Continuação do Fim do Mundo’. Ele está cheio de post-its, marcado de cima a baixo, sobretudo um poema que não tem título, cujo primeiro verso diz: ‘o lar da terceira idade’. E aí ela vai falando do lar da terceira idade, que se seguiu às doenças, que se seguiram aos maus empregos, que se seguiram ao desemprego. Ela vai fazendo essas costuras muito pertinentes do que é viver nos nossos tempos, nos tempos de neoliberalismo e de dissolução das nossas relações e das nossas instituições. Enfim, Adília é muito importante para mim. Mas acho que poesia também é muito importante para tudo, o tempo todo.” Adelaide Ivánova, fotógrafa e poeta, autora de “Asma” (Nós, 2024).


Alice Sant’Anna indica “26 Poetas Hoje” (Companhia de Bolso, 2021), de Heloisa Teixeira

 Foto: Alexandre Sant’Anna

“Um livro que me marcou foi a antologia ’26 Poetas Hoje’, organizada por Heloisa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda) em 1976. Recebido na época com desdém por boa parte da crítica, a coletânea rapidamente virou um clássico e passou a ser estudada nas universidades e devorada pelos leitores de poesia. Helô conseguiu reunir ali o espírito do seu tempo: cada poeta tem seu estilo, sua dicção e seus temas, mas todos têm como pano de fundo o mesmo Brasil da ditadura. Foi a primeira vez que Ana Cristina Cesar saiu em livro. Foi também o momento de apresentação e/ou consagração de nomes que hoje são muito lidos e reverenciados, mas muitos deles ainda eram novidade: Waly Salomão, Francisco Alvim, Chacal, Cacaso, Torquato Neto, Roberto Piva, entre outros. Cacaso, por sinal, cunhou a ideia de um ‘poemão’, que é como se todos os poetas, cada um ao seu modo, estivessem escrevendo o que viria a ser o mesmo poema. A antologia pode ser lida com essa atmosfera, como se fosse um coro, uma orquestra: cada poeta tem seu próprio timbre, sua assinatura, mas o conjunto de algum jeito soa harmonioso, como se fosse um convite para lermos mais poesia. Li ’26 Poetas Hoje’ na adolescência e posso dizer que esse livro mudou minha vida para sempre.” Alice Sant’Anna, editora e poeta, autora de “Pé do Ouvido” (Companhia das Letras, 2016).


Bruna Mitrano indica “Araras Vermelhas” (Companhia das Letras, 2022), de Cida Pedrosa

 Foto: Thais Alvarenga

“Sei do risco de escolher um livro recente, e assumo. ‘Araras Vermelhas’ me marcou e tem me marcado, porque sempre volto a ele. É um livro que fala de um episódio estrategicamente apagado da história do nosso país: a Guerrilha do Araguaia, que ocorreu na região do Bico do Papagaio, durante o período mais violento da ditadura militar no Brasil. Cida Pedrosa não nos poupa do horror, pesa a mão na linguagem, usa o recurso da repetição para mostrar o que não devemos esquecer. Ela dá nomes e conta a história daquelas e daqueles que tiveram suas identidades reduzidas a uma foto em preto e branco num quadro de desaparecidos. E faz isso com uma sensibilidade e uma habilidade assustadoras. A autora polvilha um texto denso com ternura (que é diferente de delicadeza, não há delicadeza ali) e beleza. ‘Araras Vermelhas’ é uma epopeia com formato muito original e que exalta os feitos não dos representantes da nação, mas dos que de fato lutaram por ela, isto é, dos que lutaram pela liberdade. O livro parte de uma pesquisa cuidadosa, feita com aquelas e aqueles que viveram, ou com familiares dos que viveram, o terror, e carregam suas marcas. É isso que me atrai no livro, ele assume a perspectiva de quem experimentou, de quem sentiu na carne. A história do nosso país é cheia de lacunas, principalmente quando se trata da região Norte. Eu pouco sabia sobre o tema, que na verdade foi um massacre, e tive o privilégio de conhecê-lo por meio dessa obra-prima da poesia contemporânea. Além disso, ler Cida Pedrosa é sempre um aprendizado sobre as múltiplas possibilidades da construção poética.” Bruna Mitrano, professora e poeta, autora de “Ninguém Quis Ver” (Companhia das Letras, 2023).


Edimilson de Almeida Pereira indica “Angola, Angolê, Angolema” (Sá da Costa, 1976), de Arlindo Barbeitos

 Foto: Carlos Mendonça

“O livro é ‘Angola, Angolê, Angolema’, de Arlindo Barbeitos, nascido em Ícolo e Bengo, província de Luanda, em 24 de dezembro de 1940, e falecido na capital de Angola em 31 de março de 2021. O poeta angolano, com formação em antropologia, sociologia e etnologia, publicou essa coletânea em 1976, pela editora Sá da Costa, de Lisboa. Ao ler o livro, em 1984, encontrei referências estéticas e teóricas que enriqueceram meu aprendizado da lírica de Manuel Bandeira, Drummond e João Cabral de Melo Neto; do experimentalismo da poesia concreta; do despojamento da poesia marginal e do engajamento político-social da literatura negra tal como se desenvolvia no Brasil e no Caribe. Já na altura dos 20 anos, meu interesse pelo entrecruzamento entre antropologia e literatura havia se pronunciado. Daí porque o percurso de Barbeitos e a construção de ‘Angola, Angolê, Angolema’ se tornaram um dos meus referenciais de formação ética e estética. Prova disso é que meu livro de estreia, ‘Dormundo’ (Edições D’Lira, 1985), contém duas epígrafes: uma de Clarice Lispector, outra de Barbeitos. ‘Angola, Angolê, Angolema’ é um livro com pouco mais de 50 poemas concisos, escritos em letras minúsculas e sem pontuação. Essa economia formal é o contraponto de um procedimento crítico que supera os estereótipos atribuídos ao continente africano para abordar a luta anticolonial, o desvelamento das heranças culturais e o diálogo intercultural. Sem deixar de ‘ver e analisar a realidade’, Barbeitos molda uma poética que extrai do confronto/diálogo entre matrizes culturais africanas, europeias e orientais os elementos de sua alquimia verbal, sonora e visual. Em linhas gerais, ‘Angola, Angolê, Angolema’ é um livro-fonte que me permite dizer, nas palavras do próprio Arlindo Barbeitos, que ‘na minha poesia o mais importante é o que não está escrito’.” Edimilson de Almeida Pereira, poeta, ensaísta e professor, autor de “Melro” (Editora 34, 2022).


Elisa Lucinda indica “Oráculos de Maio” (Record, 2007), de Adélia Prado

 Foto: Jonathan Estrela

“Muitos livros marcaram a minha alma, mas tem um livrinho, pequenininho, da Adélia Prado que eu amo. Chama-se ‘Oráculos de Maio’. Eu gosto do nome também, porque acho que a poesia é oracular, ela funciona como uma carta divinatória para a nossa vida. É um livro pequeno, que tem aquela essência de ‘é nos pequenos frascos que estão os melhores perfumes’. Para mim, é um livro cheio de poema bom, são todos maravilhosos. É um livro muito importante que mexeu com o meu coração.” Elisa Lucinda, atriz, cantora, escritora e poeta, autora de “Vozes Guardadas” (Record, 2016).


Fabrício Carpinejar indica “Trabalhar Cansa” (7Letras, 2009), de Cesare Pavese

 Foto: Diego Lopes

‘Trabalhar Cansa’ é um livro que já foi editado no Brasil, mas eu li uma edição portuguesa da [editora] Cotovia. O italiano Cesare Pavese é um autor marcante para mim porque ele tem uma doce melancolia. E eu gosto muito também do diário dele, ‘O Ofício de Viver’ (Relógio d’ Água, 2004), porque o diário é a poesia mais radical, porque você escreve com uma liberdade inigualável. A liberdade de quem não vai ser lido. Você não depende de ninguém, você fala aquilo que é a sua mais extrema franqueza. O diário é um requinte da confissão. Nesse sentido, eu acredito que a poesia tem muito dessa confissão quase insuportável. Por isso que versos doem. Por isso que você pode ler um verso e servir para toda a sua existência. Um livro de poesia, um simples livro de poesia, um mero livro de poesia é em si mesmo uma biblioteca. Eu quis fazer essa aproximação entre poesia e diário porque a poesia não segue influência nenhuma, a não ser da iluminação, do seu momento, da emoção. A poesia não tem patrão.” Fabrício Carpinejar, escritor e poeta, autor de “Todas as Mulheres” (Bertrand Brasil, 2015).


 Foto: Jennifer Glass

Giovanni Venturini indica “Eu Findo Mundo (DoBurro, 2013), de Bobby Baq
“Um livro que me marcou muito foi ‘Eu Findo Mundo’, do Bobby Baq, um poeta contemporâneo e meu amigo também. Conheci o trabalho dele através desse livro e me marcou porque são poemas curtos que dizem muito e têm uma imensidão dentro de poucos versos. Ao mesmo tempo, eles são individuais e têm seus significados fechados neles mesmos. O livro como um todo tem uma dramaturgia e uma trajetória em que todos os poemas contam uma história e mostram um caminho, então eles são muito bem amarrados entre si e, ao mesmo tempo, têm significados individuais também. Essa obra me aproximou desse artista e poeta incrível e possibilitou que eu conhecesse outros livros dele, como ‘Nébula’ (Riacho, 2016), que traz poemas e colagens, ‘Nódoa’ (Riacho, 2018) e ‘Nímia (Riacho, 2023)'”. Giovanni Venturini, ator, roteirista e poeta, autor de “Anão Ser” (Independente, 2016).


Laura Liuzzi indica “De Cor” (Nova Fronteira, 1988), de Armando Freitas Filho

 Foto: Divulgação

“Livros podem nos marcar de diferentes maneiras. Tem aqueles que impelem a escrever, como são os da Marília Garcia pra mim. Tem também os que parecem insuperáveis, como é ‘Alguma Poesia’, do Drummond. E tem uns que marcam pelo espanto. Foi o caso de ‘De Cor’, de Armando Freitas Filho. Jamais me esqueço do dia em que li, no banco traseiro do carro dos meus pais, o verso ‘Xerox, tigre, terror’. Primeiro ri, como uma criança que se diverte com o nonsense. Mas, depois, quis entender. E aqui estou até hoje. Diante do tigre, do terror, da xerox infinita, nunca definitiva. Segui pelos outros poemas do livro, e era como se o queixo caísse cada vez mais. Furasse o chão. Aos poucos ficava claro que é isso o que me fascina: o que me tira do trilho, que não me deixa em total segurança. Com a poesia do Armando eu fui percebendo a força súbita de atração das palavras. Mesmo quando estranhas entre si, no poema se irmanam magicamente. Podemos até ficar sem entender, mas o tigre salta do papel e marca para sempre. Laura Liuzzi, poeta, autora de “Calcanhar” (7Letras, 2010).


Sony Ferseck indica “Panton Pia’ (Museu do Índio, 2018), de Devair Fiorotti e Terêncio Luiz Silva

 Foto: Reprodução/Instagram @sony.ferseck

“Sempre li muitos livros de poesia. Aprendi a ler cedo com a minha mãe, aos quatro anos. Adorava ler Vinicius de Moraes, dos poemas infantis até os mais adultos, João Cabral de Melo Neto, Elisa Lucinda, muitos outros e muitas outras. Mas o livro de poesias que mudou minha vida não era um livro e a poesia não era bem poesia, era uma canção. Era uma pessoa. Começou com dona Letícia Barbosa, uma idosa Makuxi que durante uma entrevista ao projeto Panton Pia’, coordenado pelo encantado Devair Fiorotti, cantou. Depois, no mesmo projeto, ouvi a poesia que mudou minha vida toda: ‘Uweyupe wei tapi’se uipi sîrîrî paapa uipi sîrîrî paapa tiwiyupe wei tapi’se tiwiyupe wei tapi’se tiwiyupe wei tapi’se kesera’ uyepî paapa’, que, em português, diz: ‘Estou vindo agarrado na luz do sol venho agora meu deus ela vem agarrada na luz do sol a maniva está vindo meu deus venho agarrado na luz do sol a maniva está vindo’. Essa música hoje faz parte de um livro em português-Makuxi que reúne 79 cantos indígenas e suas 79 partituras chamado ‘Panton Pia’ – Eremukon do circum-Roraima’, de Devair Fiorotti e Terêncio Luiz Silva, do qual pude participar da edição, revisão e nos trâmites para que 500 exemplares chegassem a Roraima e pudessem ser distribuídos a escolas indígenas, para que crianças e jovens possam aprender a língua originária e conhecer mais da sabedoria de suas culturas. Naquele momento, mais do que ler um livro que mudou minha vida, me senti lida por um livro.” Sony Ferseck, poeta, autora de “Weiyamî: Mulheres que Fazem Sol” (Wei Editora, 2022).