Trecho de Livro: Minha Liberdade Não te Serve, de Mariana Felix — Gama Revista

Trecho de livro

Minha Liberdade Não te Serve

Livro que reúne os versos de maior impacto da poeta slammer Mariana Felix nas redes sociais é um grito contundente contra a opressão

Leonardo Neiva 15 de Dezembro de 2023

Sucesso notável em redes como Instagram e TikTok, onde reúne centenas de milhares de seguidores, a escritora e poeta slammer paulistana Mariana Felix vem construindo um público fiel ao falar sobre lutas tradicionalmente femininas, violências, amores, desilusões e pluralidade. Não à toa, seu quinto livro, adequadamente entitulado “Minha Liberdade Não te Serve” (WMF Martins Fontes, 2023), inteiramente composto de poesias, se divide em quatro seções principais: cantigas de luta, desamor, autocuidade e bem-querença.

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Reunindo algumas de suas poesias de maior sucesso nas redes, além de 15 outras inéditas, a obra deixa claro por que Felix é hoje um dos principais nomes na cena do slam — tradicional competição de poesia falada que vem ganhando popularidade no Brasil nas últimas décadas — em São Paulo e no país. Os versos diretos, contundentes e impactantes em sua completa franqueza sobre as dores e alegrias da existência feminina e negra explicam a recepção entusiasmada que sua poesia tem recebido.

Ao abordar de maneira sensível, mas nada romantizada, questões como relacionamentos, sexo por escolha, amor por sorte e o empoderamento no cotidiano das mulheres comuns, a poeta passa claros recados de luta contra o machismo, o racismo e todos os tipos de opressão que se escondem na desigualdade das relações cotidianas. E, se a obra reúne as poesias mais potentes de Felix, aquelas que viralizaram nas mídias sociais, é porque as palavras ressoaram em meio a um público constantemente marginalizado e invisibilizado, que se reflete no desafiador grito por liberdade que dá nome ao livro.


Revolución

Ser mulher não é sobre sangrar
É sobre se partir da condição sujeita
Onde tudo tem jeito certo de agir
Meu silêncio diz quem sou eu
Observo bem os olhares que me tocam
Dentro do elevador
Eles me invadem feito uma guerra
Mas esse corpo-território é meu
Tire suas mãos de minhas pernas
Carrego comigo palavras flecha
A ancestralidade me cerca
Me protege em meio às quedas
Quantos estupros na cama?
Chorei mares e rios
Na mesma água que me banha
Que me salva
Cura a você mesma, mulher
Não é sobre usar saias
Parte dessa lógica que não te pertence
Quem a escreveu quer te devorar com os próprios dentes
Te fatiar aos poucos enquanto nossos gritos de socorro permanecem ocos
Ainda vão dizer que são gritos loucos
Mulher, me ouça, não fique nem mais um pouco
Parta dessa casa que se diz morada, mas que te grita o quanto você é ingrata
Eles não nos conhecem
Insistem em ver pecado até nas nossas preces
Ninguém nunca mais me obriga a tirar a roupa
Senão feito Naia te arranco o pau com a boca
Não me teste ou morra
Que hoje eu vim anunciar
Nós vamos partir e ninguém vai nos contrariar
As que não entenderem nós vamos levar
Depois em roda de diálogo vamos explicar
Mas para os homens não vamos nem desenhar
Vamos atear fogo na cidade de quem ficar
Vocês vão saber o que é sofrer por simplesmente querer estar
Quantos de vocês nos abusaram dentro do nosso próprio lar
Não vai ter chave que tranque
Não vai ter soco que impeça
Cada mulher que partir essa noite estará liberta
Resgataremos uma por uma
A poesia é cura
vive la liberté des femmes
long live women’s freedom
viva la libertà delle donne

Nós vamos partir e eles não vão saber nem para onde

Meu silêncio diz quem sou eu/
Observo bem os olhares que me tocam/
Dentro do elevador/
Eles me invadem feito uma guerra

Venham com pelos, desejos e pensamentos livres
Querem nos matar
Mas dentro da gente a liberdade persiste
Permaneça viva!
É com esse mantra que você vai alimentar sua filha
Tragam seus meninos
Longe dos misóginos vamos construir um mundo lindo
É sobre partir mesmo querendo ficar
Não se sinta sozinha
Dentro de si mesma é o seu lugar
Não desiste!!
Porque la revolución es ser una mujer libre
Chore a dor do parto
O pai Brasil insiste em ter filhos bastardos nascidos do abuso
Indígenas estarão conosco
Aldeiaremos nosso futuro
Sem misoginia
Não serão nossas bucetas nem a ausência delas
Que vão determinar como viveremos nossas vidas
Decreto hoje:
Toda mulher partida
Será inteira nesta mesma vida

Baseado em escrotos reais

Deu saudade, né?!
Me procurou…
Andou dizendo que sou mais linda que qualquer flor
Eu logo pensei:
“Olha quem está por aqui
O rapaz dos olhos verdes que vivia a me iludir”
E eu sempre servia para o que me cabia
Você me mandando nude
E eu te mandando poesia
Olha que fria!
No dia das mulheres compartilhou link de site de pornografia
Disse que por lá
Nós nunca éramos esquecidas
Fazia piada machista
E ria
Na minha cara e na das outras meninas
Eu me perguntava:
“Como pode tanta misoginia?”
A mãe? Era Rainha
As outras? Tudo puta, vadia
As irmãs? Princesinhas
Namorada? Só se for loira e magrinha
E eu? Logo pretinha
Sonhando em chamar de meu
Um gordofóbico racista!

A mãe? Era Rainha/
As outras? Tudo puta, vadia/
As irmãs? Princesinhas/
Namorada? Só se for loira e magrinha

Foi-se o tempo em que eu era iludida
Foram as minhas iguais
Na roda de poesia
Que me ensinaram a ser minha!
Você até fingiu que não me lia
Chegou devagar…
Sondando a neguinha
Para ver se eu ainda era a mesma que você comia
Que se lambuzava e depois cuspia.
Hoje devolvo a sua indigestão
Em cada uma das minhas rimas!
Eu mendigando carinho
Você caralho adentro
Exigindo de quatro
E eu no quarto passando veneno
Eu não me esqueço!
Ficou guardado na memória
De um corpo que não é mais escravo das suas histórias!
Amizade colorida? Para quem?
Se seu sentimento era todo preto e branco
Regado a desdém
E me afastei
Nenhum macho mais fez comigo
O que eu permiti que você fizesse, meu bem!
Os que têm medo de mim
Estão certos!
Porque eu não aceito meia conversa
Nem ser tratada feito objeto
Sabe aquelas pretinhas bem folgadas?
Que se acham lindas, maravilhosas e não aceitam ser maltratadas?
Então, eu sou uma das que lideram esse bonde
De mulheres exigentes que não dão mole para homens!
Os troféus que guardo lá em casa
Só me lembram o tanto você é nojento
O quanto eu sempre fui crônica e você história sem enredo
Mas agora você me segue, acha graça
No direct até tenta me dar uma cantada
E eu? Vou rir da sua cara!
Lembrar bem de quando você me humilhava!
De quando a branca era a sua escolha nata
E eu não passava da preta pobre que você não andava de mãos dadas
E você ainda tem a cara de pau de reclamar que não te respondo
Que é para eu cuidar do meu ego
Senão vai ser grande o tombo
Com meus dois pés no chão
Vou te dar um recado!
Seu misógino, mal-amado
Deixei de reproduzir na cama esse seu filme barato!
Não sou sua atriz pornô
Sou preta e escritora

Foi-se o tempo em que eu era iludida/
Foram as minhas iguais/
Na roda de poesia/
Que me ensinaram a ser minha!

Produto

  • Minha Liberdade Não te Serve
  • Mariana Felix
  • WMF Martins Fontes
  • 156 páginas

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