Capitu traiu Bentinho em "Dom Casmurro"? — Gama Revista
É ciúme?
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Otelo e Desdêmona por Muñoz Degrain, 1881/ Wikimedia Commons

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Reportagem

Capitu traiu Bentinho?

Sem resposta, questão em torno da traição de personagem de “Dom Casmurro” ainda gera debates e subestima ciúme doentio de Bentinho

Leonardo Neiva 09 de Outubro de 2022
Otelo e Desdêmona por Muñoz Degrain, 1881/ Wikimedia Commons

Capitu traiu Bentinho?

Sem resposta, questão em torno da traição de personagem de “Dom Casmurro” ainda gera debates e subestima ciúme doentio de Bentinho

Leonardo Neiva 09 de Outubro de 2022

“Bentinho era surtado, então era coisa da cabeça dele”, diz um usuário numa postagem do Twitter. “E essa coisa não era chifre”, completa. Pouco tempo antes, outro havia afirmado categoricamente e em letras maiúsculas: “Capitu traiu Bentinho SIM”. Em meio a essas duas declarações, uma terceira pessoa inclui entre suas “perguntas cujas respostas determinam o caráter de alguém” justamente o dilema: “Capitu traiu Bentinho?”.

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Basta uma pesquisa rápida a qualquer momento na rede social para entender o quanto o debate centrado nos personagens do livro “Dom Casmurro” (Penguin, 2016), de Machado de Assis (1839-1908), passou a integrar a cultura popular brasileira. Afirmações como essas, defendendo um lado ou outro — ou mesmo relacionando o posicionamento do leitor a uma questão moral — se tornaram tão comuns que não são precisas nem grandes revelações ou novidades para acender uma discussão inflamada em torno do tema, com alguns chegando a analisar palavra por palavra da obra em busca de provas.

Ignorando a pergunta central, que a maioria dos especialistas acredita ser impossível responder devido à dualidade da narrativa de Machado, fato é que, no livro, o protagonista Bentinho surge desde cedo como um ciumento de primeira. E isso quem diz é o próprio personagem.

Independentemente de Capitu tê-lo traído ou não, ele tinha um delírio de ciúme

O sentimento aparece de forma clara ainda na juventude de Bento Santiago, quando, pouco antes de partir para o seminário, faz uma pergunta aparentemente inocente ao amigo da família José Dias: “Capitu como vai?”. A resposta é que ela “tem andado alegre” e que “enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela…” É nesse ponto que Bentinho pela primeira vez admite o ciúme que lhe corrói as entranhas. “Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia tão nela, dela e para ela, que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade.”

Há outros momentos que também indicam a presença exagerada do sentimento no livro. Como no capítulo em que Bentinho capta o olhar de um homem para Capitu, quando lhe morde “o segundo dente de ciúme”. Já bem mais tarde, com ambos casados, o protagonista dá para ter ciúme até do mar, para o qual a esposa volta seus “olhos de ressaca”, e no qual presta mais atenção do que no próprio marido.

“Independentemente de Capitu tê-lo traído ou não, ele tinha um delírio de ciúme”, afirma Elie Cheniaux, professor de psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O especialista, que se debruçou sobre o tema do ponto de vista psicológico, explica que o delírio é uma ideia geralmente falsa — que em raríssimos casos pode coincidir com a realidade — em que uma pessoa se convence de algo sem ter um paralelo direto com a realidade.

Ou seja, apesar de as pistas sobre uma relação extraconjugal de Capitu com Escobar, melhor amigo de Bentinho, serem difusas, o personagem tinha certeza absoluta da traição. “Existe uma desproporção entre as informações de que ele dispunha e essa certeza”, afirma Cheniaux, que lembra que o livro é narrado em primeira pessoa, pelo ponto de vista exclusivo do protagonista

Apesar de todo esse debate, nem sempre os leitores de “Dom Casmurro” tiveram dúvida sobre a traição de Capitu. Por seis longas décadas, aliás, a personagem foi tratada como adúltera e seu caso com Escobar como fato consumado.

Otelo e Desdêmona por Muñoz Degrain, 1881, é um retrato do drama Otelo de William Shakespeare: influência para o personagem Bentinho, de Dom Casmurro  Wikimedia Commons

Uma ponta de Iago

Quem primeiro botou a pulga atrás da orelha do leitor machadiano foi a crítica e escritora americana Helen Caldwell (1904-1987), tradutora do autor para a língua inglesa. Em “O Otelo Brasileiro de Machado de Assis” (Ateliê Editorial, 2022), publicado em 1960, a autora parte para o outro extremo da questão, atribuindo inocência a Capitu, vítima do ciúme exagerado de Bentinho.

“Praticamente três gerações — pelo menos de críticos — julgaram Capitu culpada. Permitam-nos reabrir o caso”, escreve na obra, onde destaca os paralelos do livro com a peça de Shakespeare. Em determinado momento da obra, o próprio Bentinho vai ao teatro acompanhar uma montagem de “Otelo”. Ao sair, considera que, enquanto na peça Desdêmona era inocente, Capitu seria culpada. Para Caldwell, a grande diferença entre as narrativas é que Bentinho trazia dentro de si as duas faces do conflito, guardando no próprio espírito seu Iago particular — aquele que no texto shakespeariano colocava em dúvida a fidelidade da esposa de Otelo.

Em consonância com a frase de Caldwell sobre o julgamento popular de Capitu, Cheniaux lembra que Dom Casmurro era advogado. “Ele sabia argumentar, então acusou Capitu de forma eficiente. Tanto que, nas primeiras décadas, não havia o menor questionamento. As pessoas liam o livro como uma história de adultério.”

Essa tendência da crítica e dos leitores, que demorou a se dissipar, pode ser vista como reflexo da estrutura patriarcal brasileira, segundo Rogério dos Santos, professor de literatura da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul) e pesquisador da obra de Machado. “Por sermos uma sociedade machista, em que a mulher é tratada como cidadã de segunda classe, naturalizamos essa visão”, afirma.

A reabertura do julgamento de Capitu também coincide com a Segunda Onda Feminista, entre as décadas de 1960 e 1980, em que a jornada das mulheres por igualdade e pelo fim da discriminação ajudou a firmar o movimento no cenário mundial. Cheniaux vê como natural que, num primeiro momento, Capitu tenha sido vilanizada, da mesma forma que Eva foi quem induziu Adão a comer a maçã proibida. “Quando aparece a Caldwell, que era feminista, ela já entra no extremo oposto.”

Além do viés machista, no entanto, o psiquiatra também aponta uma certa ingenuidade dos leitores e cronistas da época, que acabaram por perpetuar uma visão simplista do livro. “Eles não leram as entrelinhas, aceitaram passivamente o que Bentinho queria dizer.”

E bem, e o resto?

Embora tenha se tornado o exemplo mais famoso, “Dom Casmurro” não é a primeira vez em que Machado trata de ciúme e traição em sua obra. Dois anos antes de publicar “Ressurreição” (Lafonte, 2019), seu primeiro romance, escreveu um poema em que comparava o ciúme a “um verme asqueroso e feio” que “morde, sangra, rasga” o coração. Logo depois, no seu livro de estreia, Machado cria um amor que só não se transforma em casamento devido às desconfianças do protagonista, que se mostram infundadas.

As narrativas, antes de condenar, lançam sempre a dúvida: quem, de fato, traiu quem?

Escrito no período de noivado do próprio autor, o livro aponta o poder da fantasia masculina para destruir relacionamentos. É o que revela o escritor Silviano Santiago no romance “Machado” (Companhia das Letras, 2016), vencedor do Prêmio Jabuti de 2017, no qual recria os últimos anos de vida do autor. “Tendo à sua frente as fantasias caprichosas e sedutoras maquinadas pelo caráter dissimulado da mulher, as pedras soltas da imaginação literária masculina constroem incertezas e dúvidas. Constroem artimanhas furtivas que visam a debilitar a decisão de matrimônio”, descreve Santiago.

Em entrevista a Gama, o escritor destaca que as abordagens de Machado para o ciúme não convidam a simplificações. Pelo contrário, são textos complexos, em que os grandes temas raramente são abordados de forma direta. “Ele não está narrando a mulher como possessão [em ‘Dom Casmurro’], e sim um triângulo amoroso, o grande tema do século 19. Mas é um autor muito crítico da burguesia e, dentro de uma visão burguesa, a mulher é propriedade do homem, porque a sociedade é patriarcal. Por isso Machado requer um leitor que reflita.”

De acordo com o escritor Gustavo Bernardo Krause, ciúme e traição são temas recorrentes na obra machadiana e ajudam a reforçar o caráter cético da filosofia do escritor. “As narrativas, antes de condenar, lançam sempre a dúvida: quem, de fato, traiu quem?”, aponta o autor de “O Problema do Realismo de Machado de Assis” (Rocco, 2012).

Amigos próximos

Com o passar do tempo, outra dúvida que se infiltrou entre os estudiosos da literatura de Machado foi o objeto de ciúme de Bentinho. Se de cara parece que sempre foi focado em Capitu, algumas passagens do livro dão abertura para uma interpretação diferente: a de que o personagem nutre sentimentos pelo melhor amigo Escobar.

“Quando a obra foi escrita, não era permitido colocar um desejo sexual por outro homem no livro, então esse aspecto estaria nas entrelinhas”, especula o professor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, José Alexandre Crippa. “Em alguns momentos, parece que Bentinho projeta sua angústia em Capitu, já que, na cabeça dele, à esposa seria permitido ter uma relação com Escobar. A ele, não.”

Quando a obra foi escrita, não era permitido colocar um desejo sexual por outro homem no livro, esse aspecto estaria nas entrelinhas

Um exemplo da altíssima estima que o protagonista tinha pelo amigo surge no capítulo que conclui o livro, onde Bentinho diz que “minha primeira amiga e o meu maior amigo (…) quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me”. Cheniaux aponta que, no trecho, o protagonista faz questão de colocar Escobar acima de Capitu, como o maior de todos.

Há também outros momentos, a exemplo daquele pouco depois que os dois se conhecem, na época do seminário. “Os padres gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres”, narra Bentinho. “Uma possível explicação psicanalítica é que Bentinho queria trair Capitu com Escobar, e projetou esses desejos sexuais em Capitu”, diz o psiquiatra. “Assim, não seria ele o traidor, mas ela quem o teria traído.”

Os autos

O professor Rogério dos Santos lembra ainda hoje de uma aula em que a professora resolveu separar a classe em duas partes: entre os alunos que eram contra e a favor Capitu. “Era como se Capitu estivesse sentada num tribunal”. Segundo Santos, a discussão do tema pelo viés da culpa ou inocência da personagem segue igual. Por outro lado, ninguém parece disposto a julgar as crueldades que Bentinho faz em nome do ciúme. “Ele exila a paixão de sua vida na Europa e praticamente celebra a morte do próprio filho [que suspeita ser de Escobar]. Pelo que faz no romance, esse julgamento deveria ser sobre ele.”

É também por meio de uma questão típica dos tribunais que o advogado Miguel Matos julga ter encontrado a resposta definitiva para o dilema. No livro “Código de Machado de Assis” (Migalhas, 2021), ele aponta o capítulo “Embargos de terceiro” como chave. Segundo Matos, o termo significa disputa pela posse. Ali, Machado o teria utilizado como metáfora da briga entre Bentinho e Escobar pelo domínio de Capitu. A análise abarca também o conto “A Mão e a Luva”, onde o autor usa a expressão com esse mesmo sentido. “Ele conhecia o linguajar jurídico e o utilizava de maneira irônica. O conto fazia uma metáfora sobre a presença de um terceiro numa relação amorosa. Então por que incluir a mesma expressão no título de um capítulo de ‘Dom Casmurro’? Nada na obra de Machado é por acaso.”

Para Krause, além da qualidade da escrita de Machado, a discussão em torno de “Dom Casmurro” nunca vai deixar de existir por tratar de um dos temas mais caros e dolorosos para nós. “Quem não traiu ou foi traído alguma vez na vida? Considero a traição uma espécie de metonímia de todos os temas, porque ela muda de valor dependendo da perspectiva de quem a observa ou o vivencia.”

O ciúme à brasileira tem um componente de posse, de colocar a mulher no seu devido lugar, de castração feminina

Ao defender de forma intensa Bentinho ou Capitu, muitas vezes a pessoa não está só colocando para fora uma perspectiva, mas exprimindo um desejo reprimido, considera José Crippa. “Se ficar do lado do Bentinho, pode ser que ela tenha medo de ser traída ou até sinta vontade de trair. A perspectiva é ampla, e daí a beleza das infinitas possibilidades do livro”, diz o psiquiatra.

Ciúme do mar

Para Santiago, embora o autor não adote um discurso politizado, leituras atuais dos textos machadianos que incluem críticas ao machismo estão de acordo com as relações que sempre estiveram explícitas em “Dom Casmurro”. “O livro apresenta um grande advogado de acusação de Capitu e de defesa dele mesmo. É como ler uma peça retórica de um ciumento”, declara. Considera também que Machado estava mais preocupado com o indivíduo Bentinho do que com a traição em si. Só que esse ponto teria sido soterrado por leituras em geral sentimentais. “Estamos num momento de grandes afirmações e polarizações. E, se são afirmações, vão ter grandes negativas. A sociedade brasileira é muito intuitiva, ela fareja e acredita naquilo.”

Assim como aponta a usuária do Twitter no início do texto, hoje a resposta de uma pessoa ao dilema da traição de Capitu é usada até como teste de caráter ou posicionamento ideológico. “Pode servir como uma armadilha para identificar reacionários”, considera Santos. “Se você adere à parte idílica e bela, do primeiro amor da infância, acaba perdoando e naturalizando a violência à qual Capitu é submetida. Machado vem fazendo esse teste com os leitores há mais de 100 anos.”

O interesse da narrativa para o pesquisador está menos na resposta a essa pergunta impossível do que no que o livro releva sobre o “ciúme à brasileira”, que seria diferente do encontrado na literatura universal. “Ele tem um componente de posse, de colocar a mulher no seu devido lugar, de castração feminina”, diz.

De uma forma ou de outra, o professor afirma que Machado continua pautando discussões atuais e ensinando seus leitores a pensarem o Brasil. “Traiu ou não traiu? Dá para fazer um paralelo até com a polarização política que vivemos.”