A Constituição de 88 e a democracia brasileira — Gama Revista
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Reportagem

Da euforia à crise: a Constituição de 88 e a jovem democracia brasileira

Mais de três décadas depois, a Constituição e a democracia vão do sonho à desesperança e sofrem a maior ameaça desde o fim da ditadura

Leonardo Neiva 02 de Outubro de 2022

Da euforia à crise: a Constituição de 88 e a jovem democracia brasileira

Leonardo Neiva 02 de Outubro de 2022
Domínio público

Mais de três décadas depois, a Constituição e a democracia vão do sonho à desesperança e sofrem a maior ameaça desde o fim da ditadura

“Chegamos. Graças a Deus, ao povo e à sociedade brasileira, chegamos.” Com essa frase repleta de alívio, no dia 22 de setembro de 1988, o deputado e presidente da Assembleia Nacional Constituinte Ulysses Guimarães anunciou a aprovação do texto final da Constituição, a sétima da história do país. Meses após José Sarney assumir a Presidência do país, com a morte de Tancredo Neves, a criação do documento se tornou um dos principais símbolos da redemocratização que se seguiu a um período de mais de 20 anos de governo militar. Foi ele que deu o principal suporte às eleições presidenciais de 1989, que levaram o presidente Fernando Collor ao poder. Também foi usada como base em seu processo de impeachment, ocorrido em 1992.

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“A Constituição de 1988 é o ponto culminante de um processo de redemocratização que se inicia anos antes”, avalia o advogado constitucionalista Cláudio de Souza Neto. Mais especificamente em 1985, com o fim oficial da ditadura. Após mais de um ano de deliberações, a “constituição cidadã”, como ficou conhecida, foi aprovada com um total de 250 artigos, tornando-se ainda no berço uma das constituições mais extensas do mundo.

Uma euforia com a conclusão do processo de retorno à democracia também marcou a promulgação da Constituição de 1988 — simbolizada pelo “ambiente de quermesse” e “clima de coquetel” da cerimônia de comemoração realizada em setembro, como descrita em reportagem da Folha de S.Paulo. Em meio à concretização daquilo que era um sonho para muitos brasileiros, os constituintes liderados por Ulysses Guimarães trataram de enfatizar as novidades positivas do documento, afirma o professor de história contemporânea da UFF Daniel Aarão Reis. Particularmente os direitos políticos e sociais, que trouxeram inovações importantes em relação às Constituições anteriores.

Apesar de vindo de um período autoritário, a construção do documento foi bastante democrática, com uma considerável participação popular e dos mais diversos grupos que compunham a sociedade brasileira. “Foi uma Constituinte muito aberta à presença de grupos de pressão organizados, do povo em geral, do movimento indígena, negros, de professores, setores públicos e militates. Todo mundo teve oportunidade de levar sua tese para a Constituinte”, afirma Neto, autor do livro “Democracia em Crise no Brasil” (Contracorrente, 2020).

Cada comissão elaborou um documento setorial, o que acabou fazendo com que vários temas da cidadania fossem integrados ao documento

O desenvolvimento do documento, assim como todo o processo de redemocratização, gerou grande mobilização do movimento negro da época, aponta o historiador Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe. “O movimento negro se rearticula e ganha mais capilaridade, participando de todos os debates, desde as Diretas Já até a transição para o primeiro governo civil.”

Entre as conquistas do ativismo negro, estiveram o reconhecimento das terras de comunidades dos quilombos e a determinação do racismo como crime inafiançável e imprescritível — até então, era considerada uma contravenção penal, crime de menor gravidade punido com multa e prisão em regime aberto ou semi-aberto.

Para que houvesse essa participação coletiva em sua criação, foi preciso que o processo legislativo acontecesse de forma diferente do habitual, conta Neto. Se antes as assembleias constituintes se debruçavam sobre documentos previamente elaborados por juristas, dessa vez foi preciso começar do zero, em várias comissões e subcomissões.

Segundo o constitucionalista, essa forma de organização permitiu que um Congresso essencialmente conservador criasse um documento de conteúdo tão progressista. “Cada comissão elaborou um documento setorial, depois sistematizado para constar no documento final. Essa fragmentação acabou fazendo com que vários temas da cidadania fossem integrados ao documento, como a questão indígena, cultural, econômica e do trabalho.”

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O avanço dos movimentos sociais

Para o movimento negro brasileiro, a Constituição significou um novo pacto social, trazendo consigo uma expectativa de conquista de novos direitos, diz Domingues. Simbolicamente, o documento saiu no ano do Centenário da Abolição, quando houve uma movimentação significativa de entidades no país. “A palavra de ordem era não só a denúncia do mito da democracia racial, mas exigir que o Estado brasileiro adotasse medidas para promover a igualdade racial.”

Foi com essa movimentação que o governo Sarney criou no mesmo ano a Fundação Palmares, primeira instituição federal com o intuito de promover a cultura negra no país. A partir da Constituição, diz o historiador, a visibilidade do movimento negro foi crescendo e novos direitos, assim como políticas afirmativas, ganharam espaço gradativamente nas discussões sociais e ações políticas.

Em 2001, o governo Fernando Henrique Cardoso abriu diálogo direto com representantes do movimento negro para a participação brasileira na Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, na África do Sul. Entre o final do governo FHC e o início do governo Lula, segundo Domingues, também começaram a ser adotadas as primeiras políticas afirmativas pela igualdade racial. Além da criação da Secretaria Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) no início do mandato petista, nos anos seguintes surgiram leis como a 10.639, que instituiu o ensino da cultura afro na educação básica, e, em 2012, já no governo Dilma, a aprovação da lei de cotas para as universidades públicas federais.

Dentre os diversos outros temas que aborda, a Constituição também “tem um apreço especial pela liberdade de expressão”, aponta a diretora-executiva do Instituto Palavra Aberta, Patricia Blanco. O documento declara livre a liberdade de expressão, atividade intelectual e jornalística, vedando qualquer tipo de censura. “Ele dá um tratamento à liberdade de expressão de uma importância fantástica, seguindo a Declaração dos Direitos Humanos, reconhecendo-a como um direito fundamental.”

A Carta também trouxe outras regras importantes para a sociedade brasileira e minorias, como a demarcação das terras e proteção à cultura indígena. Além disso, instituiu as bases para a criação do SUS (Sistema Único de Saúde), totalmente financiado pelo Estado, e questões como o investimento científico e a proteção do meio ambiente no país. Isso tudo além dos direitos básicos para todo brasileiro, como educação, saúde, trabalho e lazer — e cuja conta foi aumentando conforme a redação desse artigo foi revista com o passar dos anos.

A Constituição antes e depois

No entanto, toda a euforia em torno do sonho democrático também ocultou um detalhe importante: a Constituição mantinha intactas estruturas econômicas e sociais da ditadura, afirma Reis, autor de “Ditadura e Democracia no Brasil” (Zahar, 2014). O modelo econômico focado nas empreiteiras e no agronegócio, a centralização excessiva de poderes no Estado e o fortalecimento das polícias militares foram heranças que permaneceram. Além disso, ela foi alvo de diversas críticas nos anos seguintes. Da esquerda, por não ter avançado o suficiente em questões como a reforma agrária e a jornada de trabalho; da direita, pelo viés estatista que o documento incorporava.

Construída tendo como base diversos grupos de pressão, incluindo os próprios militares, a Constituição virou uma espécie de cabide para salvaguardar interesses variados. Por isso o documento acabou ficando tão extenso e excessivamente detalhado, segundo o advogado Cláudio de Souza Neto. “Daí resulta uma consequência muito inconveniente: a necessidade de alterar a Constituição para implementar um programa de governo. Não deveria ser assim”, aponta.

Até porque alterar a Constituição não é tarefa fácil. Ao contrário de leis ordinárias, que requerem maioria simples para aprovação no Congresso, emendas constitucionais precisam da aprovação de três quintos de cada Casa Legislativa. De acordo com o constitucionalista, o mais adequado seria que constassem apenas as dimensões gerais das principais instituições nacionais, sem tantos detalhes.

“Para implementar seus programas, os governos acabam tendo que formar maiorias de três quintos, o que incrementa a necessidade do chamado presidencialismo de coalizão.” Ou seja, o sistema favorece alianças e comprometimentos para que o governo consiga de fato implementar suas políticas públicas.

A Constituição previa uma revisão de seu texto cinco anos depois de aprovada, que ocorreu em 1993. No entanto, devido às crises política e social que o país enfrentava, seu impacto foi reduzido e o processo considerado um fracasso. As décadas seguintes foram mais pródigas em emendas. Mesmo com as dificuldades institucionais, hoje são 125 — 11 delas aprovadas só no primeiro semestre de 2022. Apesar da grande quantidade de alterações, Neto reforça que a maioria ocorreu no campo econômico, com a implementação de planos de governo neoliberais como os de Collor e FHC, que contrariavam a tendência estatista e intervencionista do documento, herdada da ditadura militar.

Para o advogado, há inclusive emendas inconstitucionais, a exemplo da instituída durante o governo Temer, em 2016, que congelou o teto de gastos públicos por 20 anos, pois ela impõe limitações orçamentárias para as próximas gerações de brasileiros. “Vários elementos da ordem social econômica foram alterados, mas a espinha dorsal da Constituição, o estado democrático num sistema de direitos fundamentais, foi preservado na íntegra”, considera.

Democracia em risco

No último dia 7 de setembro, marcado por manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro, é emblemático que o STF (Supremo Tribunal Federal) tenha precisado reforçar sua segurança contra ataques. Dentro do clima de polarização que se instaurou no país ao longo dos últimos anos, manifestações contra a democracia e instituições estabelecidas pela Constituição, como o Supremo, passaram a fazer parte do cenário político — em alguns casos, vindas de autoridades como o próprio presidente. Para Neto, vivemos hoje o momento mais ameaçador aos direitos fundamentais e às instituições nessas mais de três décadas da conclusão do processo de redemocratização do Brasil.

Todos os povos têm memória, só que alguns optam pela memória do silêncio, decidem não pensar no assunto

O historiador Daniel Reis ressalta ainda que nosso desinteresse em lidar com o passado ditatorial pode ter ajudado a trazer o país ao momento que vivemos atualmente. Com a Lei da Anistia, de 1979, que na prática perdoou crimes políticos e eleitorais cometidos na ditadura, reinou uma atmosfera de conciliação, com uma Comissão Nacional da Verdade vindo surgir apenas em 2011.

“Existe um bordão que diz que o povo brasileiro não tem memória. Todos os povos têm memória, só que alguns optam pela memória do silêncio, decidem não pensar no assunto”, declara Reis. De acordo com o historiador, o fim do período ditatorial levou a extrema direita ao subterrâneo da política ao longo de mais de duas décadas, a ponto de muitos acreditarem que ela tinha deixado de existir. “Agora ela está de volta. Mesmo que o Bolsonaro seja derrotado nas eleições, é uma ilusão imaginar que o bolsonarismo vai acabar.” Para o pesquisador, a democracia precisa se reinventar e se democratizar mais, agindo para reparar problemas históricos como a desigualdade social, o racismo e a corrupção, que seguem gerando revolta popular.

A Constituição que vive em nós

Uma pesquisa recente da consultoria Quaest revelou que 38% dos brasileiros não sabem o que é a Constituição Federal e 43% conhecem muito pouco a sua importância — uma conta que tem como resultado impressionantes 81% de desconhecimento, aponta Patricia Blanco, do Palavra Aberta.

Para ela, é uma tendência que fragiliza inclusive a compreensão dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o que leva a ofensivas como as que vêm acontecendo contra o STF. “Num momento em que a liberdade de expressão é questionada, numa tentativa de apropriação indevida do conceito para a prática de toda sorte de crime e fake news, precisamos resgatar e fazer com que as pessoas conheçam a Constituição”, afirma Blanco. Em 2020 e 2021, o Brasil bateu recordes de casos de violência contra jornalistas e perdeu 58 posições no ranking global de liberdade de expressão desde 2015.

O fato de termos eleito um presidente tão incompatível com a democracia e com os direitos humanos deixa uma ferida que precisa ser curada

Escaladas autoritárias também nunca combinaram com o avanço de direitos sociais, afirma Petrônio Domingues. “Sempre que ascenderam ao poder governos ditatoriais, os direitos retrocederam ou foram banidos.” Segundo o historiador, o que acontece hoje com o movimento negro, que estaria passando por uma tentativa de silenciamento por parte do governo, é um sinal claro da crise democrática. Além da emblemática ascensão de Sérgio Camargo, forte opositor do movimento, à presidência da Fundação Palmares, a população negra sofre mais com a violência policial, tem representação restrita na política e ainda é grande maioria entre os mais pobres.

Apesar de a democracia e a Constituição brasileira enfrentarem uma “prova de fogo”, as instituições até agora vêm resistindo, barrando arroubos autoritários e ajudando a reconstruir um consenso democrático, na opinião de Neto. Segundo o advogado, o pior momento parece ter passado, mas a democracia sai sim enfraquecida. “O fato de termos eleito um presidente tão incompatível com a democracia e com os direitos humanos deixa uma ferida que precisa ser curada.”

Mas há uma luz no fim do túnel. Para ele, apesar do amplo desconhecimento das bases constitucionais, a maior parte dos brasileiros é tolerante, respeita as diferenças e acredita que as autoridades devem ser eleitas pelo voto popular. “A Constituição vive em nós. A pessoa pode nunca ter lido o texto constitucional e ainda assim aderir a ele porque concorda com esses valores fundamentais da democracia em um Estado de direito.”