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Reportagem

Velhice fora do armário

Solidão, invisibilidade e resistência marcam a trajetória  de idosos LGBTQIA+, em um país que envelhece em ritmo acelerado, mas ainda supervaloriza a juventude

Dolores Orosco 22 de Junho de 2025

Velhice fora do armário

Dolores Orosco 22 de Junho de 2025

Solidão, invisibilidade e resistência marcam a trajetória  de idosos LGBTQIA+, em um país que envelhece em ritmo acelerado, mas ainda supervaloriza a juventude

O recepcionista gaúcho Jorge Luiz Madruga gosta de curtir e paquerar na noite do Centro, desde que chegou a São Paulo, 50 anos atrás. Assistir às performances de drag queens no Cabaret da Cecília e se jogar na pista eletrônica do club Jerome está entre seus programas favoritos. Mas de uns tempos pra cá, ele tem percebido olhares de reprovação e até já ouviu comentários preconceituosos. Não pelo fato de ser um homem preto e gay, já que os redutos LGBTQI+ costumam ser mais diversos. É que Madruga tem 72 anos – e a bandeira do arco-íris hasteada na porta da balada não garante que a velhice é bem-vinda ali.

Jorge Madruga  Arquivo Pessoal

“Eu ainda adoro sair pra tomar um drink, dançar e beijar na boca. Mas sei que, hoje, ao me aproximar de alguém, corro o risco de ser julgado ou ofendido”, conta o recepcionista, viúvo há 20 anos. “Certa vez, numa festa, um rapaz veio conversar comigo e ouvi o amigo dele dizer: ‘você vai pegar essa bicha velha?’. Como se uma pessoa idosa não tivesse o direito de transar .”

O desabafo de Madruga é sintomático de uma sociedade que supervaloriza a juventude e se recusa a aceitar que nunca foi tão velha. O último Censo Demográfico do IBGE, divulgado em 2023, apontou que o atual percentual de idosos no Brasil é o maior desde o primeiro levantamento realizado no país, em 1872: cerca de 11% dos cidadãos têm mais de 65. Até 2030, segundo o Ministério da Saúde, os brasileiros nessa faixa etária terão ultrapassado os de 0 a 14.

Essas pesquisas não incluem orientação sexual, mas é possível assegurar que, para os idosos LGBTQI+, enfrentar a rigidez do etarismo social e ocupar os espaços pode ser uma tarefa ainda mais cruel. O geriatra Milton Crenitte, diretor do Centro Internacional de Longevidade Brasil, cita o isolamento como um dos principais dramas do envelhecimento dessa população. “Idosos LGBTQI+ têm mais chances de não serem casados, não terem filhos, nem mesmo alguém para ligar em caso de emergência. Muitos deles foram obrigados a romper com suas famílias biológicas para poderem ser quem são”, diz o geriatra. “A solidão é um fator de risco para a saúde mental. Pode levar à depressão, ao abuso de substâncias e até ao suicídio.”

Além da rejeição familiar, a solidão LGBTQI+ na maturidade também pode estar associada ao chamado “estresse de população minorizada”, como explica o psiquiatra Saulo Vito Ciasca, editor do livro “Saúde LGBTQIA+: Práticas de Cuidado Transdisciplinar” (Editora Manole, 2021). “Vivências pautadas por estigmas, discriminação e violências fazem o indivíduo internalizar o preconceito. A pessoa passa a acreditar que é mesmo inferior e isso terá consequências como a não-confiança no outro e no entorno, o que traz maior dificuldade em formar laços afetivos ao longo da vida”, afirma Ciasca.

Vivências pautadas por estigmas, discriminação e violências fazem o indivíduo internalizar o preconceito, o que traz maior dificuldade em formar laços afetivos ao longo da vida

É preciso considerar ainda os marcadores sociais que diferem esses idosos dentro da própria comunidade. Um gay branco e rico que vive no Centro enfrentará dificuldades distintas de uma pessoa travesti, negra e periférica na terceira idade. Ciasca destaca como exemplo a busca por um “perfeccionismo compensatório” que acontece mais entre grupos homossexuais masculinos. “Um homem que foi muito atacado na infância por conta de comportamentos ditos afeminados pode passar a crer que, para existir no mundo, ele precisa ser o melhor em algo. Pode ser perseguindo um ideal de corpo perfeito ou uma vida considerada feliz”, explica o psiquiatra. “Só que, com a velhice, tudo isso vai se esvaindo. E se o indivíduo não criou conexões reais, ele pode se ver solitário no final da vida.”

Já para a letra T da sigla, a velhice chega com uma certa dose de alívio, mas ainda com suas camadas de sofrimento. Segundo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil lidera, pelo 16º ano consecutivo, os índices globais de assassinatos dessa população. Foram 122 homicídios em 2024, a maioria contra pessoas com menos de 35 anos. Para além da angústia causada pela incerteza da própria vida, conseguir envelhecer inclui encarar barreiras de acesso, sendo à saúde uma das principais delas. “Não há representatividade nas salas de espera, nos formulários e banheiros dos hospitais. É comum que pessoas trans sofram violências, como não serem tratadas por seu nome social pelas equipes médicas”, exemplifica Crenitte. “E tudo isso justamente quando essas pessoas mais precisam de ajuda nos cuidados com problemas físicos e cognitivos.”

Imagine o quão doloroso é chegar aos 50 anos e ter que voltar àquela sensação da infância e da adolescência, de não poder viver e se aceitar no próprio corpo

A psicóloga Andreone Teles Medrado, que lança na Flip 2025 o livro “Ensaios Sobre o Colonialismo: Higienização, Corpos, Fé e Subjetividades em Disputa” (Editora Telha, 2025), afirma que não é raro que travestis e outras pessoas trans passem a “destransicionar” quando começam a envelhecer. “Algumas param a hormonização, deixam a barba crescer, tiram o peito. Não por desejo, mas por pressão social para conseguir um trabalho digno, ter um tratamento mais respeitoso nos consultórios, correr menos riscos de agressão nas ruas numa idade em que a vulnerabilidade é maior”, diz Medrado. “Imagine o quão doloroso é chegar aos 50 anos e ter que voltar àquela sensação da infância e da adolescência, de não poder viver e se aceitar no próprio corpo. Mas agora sabendo que esse sentimento tem nome.”

A pele que habito

A artista pernambucana Aivan Siqueira, 59, conta que sempre foi um “gayzão assumindo”, mas só se entendeu aos 36 como “pessoa trans” – ela não gosta da definição “mulher trans”, apesar de preferir ser tratada no feminino. Aos 19, perdeu seu único elo familiar, a mãe, com quem nunca se abriu sobre sua orientação sexual. “Mas ela me deixou uma carta linda, na qual dizia que eu poderia ser o que quisesse, que me amaria de qualquer jeito”, recorda.

Dos 30 aos 40, Siqueira viveu com o único parceiro que ouviu um “eu te amo” de sua boca, mas garante que não pretende se envolver para valer com mais ninguém. “Já fui uma romântica, tinha muitas ilusões em relação ao amor. Hoje me dou por satisfeita com um sexo casual carinhoso”. A artista atua, canta, produz e “faz de um tudo” em grupos de teatro LGBT, como o Grupo Mexa, onde tem a sensação de pertencimento. “Nunca me senti solitária, tenho poucos e verdadeiros amigos. Eles moram perto e têm a chave do meu apartamento, caso haja alguma emergência e eu precise de ajuda.”

Aivan Siqueira  Arquivo Pessoal

Mais recentemente, Siqueira começou a se preocupar com a possibilidade de ter uma vida mais longa. “Fico me perguntando como será morar sozinha se eu viver até os 80. Por isso cuido muito bem da minha saúde e, como sou religiosa, peço a Deus para chegar lá em boas condições físicas e mentais. Tenho fé e só sigo em frente.”

Nunca me senti solitária, tenho poucos e verdadeiros amigos. Eles moram perto e têm a chave do meu apartamento, caso haja alguma emergência e eu precise de ajuda

Esse questionamento sobre como será a velhice foi o que motivou o fotógrafo carioca Rafael Medina, 43, a criar a mostra “O mais profundo é a pele”, em cartaz no Museu da Diversidade Sexual, em São Paulo, até 31 de agosto. Nela, 25 pessoas LBTQI+ acima dos 60, aparecem retratadas nuas, após conversas francas sobre amor, sexo, representatividade e longevidade.

“Sempre me incomodou esse apagamento dos corpos 60+ na comunidade. Entre homens gays como eu, a obsessão pela juventude e corpo sarado, é imensa. Lembro que aos 32 anos, já me chamavam de ‘ ‘cacura’ nas boates aqui do Brasil”, conta Medina. “Até que, durante uma residência artística que fui fazer em Berlim, vinte anos atrás, notei que os gays mais velhos socializavam mais nos espaços com grupos de amigos, paqueravam…”

Primero, Medina clicou um primeiro ensaio com o tema com nove homens alemães, todos da terceira idade. Depois, de volta ao Brasil após uma década, ampliou o leque e fotografou também mulheres lésbicas, pessoas trans e travestis. “Abri as inscrições online para o ensaio e fiquei surpreso com o número grande de candidaturas. Claro que os gays se inscreveram bem mais que as pessoas trans, mas é nítido que existe uma mudança em curso. A velhice LGBTQI+ está saindo do armário”, opina o fotógrafo.

A velhice LGBTQI+ está saindo do armário

Medina cita como indicadores o fato de os velhos das décadas de 1980 e 90 terem passado pelos traumas da epidemia de HIV/Aids e a ditadura. “A afirmação de sexualidade era muito mais difícil para essa geração, o momento histórico era completamente outro. Hoje existe um lugar de mais confiança, orgulho e sentimento de comunidade”, pontua o fotógrafo. “As grandes questões que vejo nessa turma 60+ de agora é a perspectiva da solidão e da finitude. Mas até nesse sentido fui surpreendido por relatos positivos de alguns dos personagens do ensaio.”

Um deles foi o da museóloga alagoana Carmen Lúcia Almeida Dantas, 80, casada há 12 com a jornalista Cintia Ribeiro, 57. Ela está em sua terceira união – a primeira foi com o pai de seus dois filhos e a seguinte, com outra mulher. “Nunca me senti solitária e nem digo isso só pelo fato de ter uma companheira e ainda gostar de transar. Mas ao longo de minha vida sempre estive envolvida com a militância LGBTQI+ onde criei conexões de amizades muito fortes. Hoje tenho amigas não só da minha idade, como também mais jovens, que me atualizam e me fazem até rever conceitos que já registrei em meus trabalhos acadêmicos no passado”, conta Dantas. “Além disso, há 45 anos tenho um bloco de Carnaval, onde sou bem ativa.”

Carmen Dantas e Cintia Ribeiro  Arquivo Pesoal

Redes de conectividade comunitária e de amizade, como as que Dantas mantém, são essenciais para o bem-estar na terceira idade na comunidade LGBTQI+. “Elas ajudam a combater o ideal heteronormativo de envelhecimento, que supõe que a vida só valeu à pena se estamos casados e cercados de netos”, diz Medrado. “Precisamos de novas noções de família, que não sejam centradas apenas em corpos que procriam, de casal afetivo-sexual e de laço sanguíneo. Não podemos perder de vista a importância dos vínculos de presença, atenção e cuidados que vão acompanhando a pessoa com a idade, transando ou não”, finaliza a psicóloga.

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