Trecho de Livro: A Depressão É a Perda de uma Ilusão — Gama Revista

Trecho de livro

A Depressão É a Perda de uma Ilusão

Célebre psicanalista e escritor argentino J.-D. Nasio explora em novo livro as origens e tratamentos para a depressão, o mal da desilusão

Leonardo Neiva 27 de Maio de 2022

Um dos psiquiatras e psicanalistas mais célebres e lidos do mundo, com uma extensa obra escrita, o argentino Juan-David Nasio tem uma proposta: assim como prega o título de seu novo livro, a depressão nada mais é do que a perda de uma ilusão, geralmente construída na infância. “Sim, o deprimido está triste não só por ter perdido o que tinha, mas sobretudo por ter perdido o que era, e eu diria mesmo por ter perdido a ilusão que lhe dava força para ser o que era”, assevera em um trecho da primeira das cinco lições que compõem a obra, a respeito do que é depressão.

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Um dos maiores especialistas na psicanálise de Lacan – com quem inclusive chegou a trabalhar –, em “A Depressão É a Perda de uma Ilusão” (Zahar, 2022), o profissional se propõe a aprofundar a teoria e o atendimento à doença. Partindo de alguns casos reais que atendeu – como o da professora de matemática idosa Francisca, que na verdade tinha medo de se curar e ser obrigada a navegar as desconhecidas águas do bem-estar –, o autor propõe novas abordagens e até sugestões práticas de como diferenciar a tristeza normal da depressiva.

Insistente na importância de tratar não apenas o mal que aflige hoje, mas suas raízes no passado, Nasio enfatiza os efeitos de traumas sofridos ainda na infância para o desenvolvimento da doença, que é sempre grave. Em uma obra que pode auxiliar tanto profissionais experientes da área quanto leigos, o psicanalista desdobra também de forma direta e bastante didática o que dá para fazer para detectar vulnerabilidades e agir de forma preventiva contra o mal do século 21, ou simplesmente a patologia da desilusão.


Dois pontos de vista sobre a depressão: Descritivo e psicanalítico

Vamos agora investigar o que é a depressão. Podemos defini-la a partir de dois pontos de vista diferentes e complementares: um ponto de vista descritivo e outro psicanalítico. Do ponto de vista descritivo, a depressão é um conjunto de sintomas observáveis, sendo o mais importante deles um humor anormalmente triste. Assim, a fórmula consagrada que encontrarão na maioria das obras sobre a questão afirma que a depressão é um distúrbio do humor ou, se preferirem, um transtorno do estado emocional. É uma definição particularmente restritiva, pois se limita a caracterizar a depressão pelo que ela nos mostra: um humor triste. Com efeito, o ponto de vista descritivo se restringe a constatar a hipertrofia da tristeza, sem procurar saber qual é sua causa. Aqui, a depressão é simplesmente o que percebemos.

E, em sentido oposto, há o ponto de vista psicanalítico, tal como o entendo, que define a depressão precisamente com base nas causas que a provocam. Aqui, a depressão é de fato o que percebemos, mas sobretudo aquilo que supomos haver por trás do que percebemos. E o que supomos? O que eu suponho? Suponho as causas ocultas que estariam na origem do humor anormalmente triste da pessoa sentada à minha frente. E então, vendo a expressão amargurada em seu rosto e ouvindo-a se queixar dos outros e de si mesma, fico pensando que sua tristeza foi provocada por uma perda, a perda não só de um objeto amado e externo, mas talvez de um objeto interno, de algo dentro de si mesma, algo de si mesma — em uma palavra, de uma ilusão. Sim, o deprimido está triste não só por ter perdido o que tinha, mas sobretudo por ter perdido o que era, e eu diria mesmo por ter perdido a ilusão que lhe dava força para ser o que era.

Suponho, assim, que aquele que me fala está triste por ter perdido uma ilusão. Que ilusão? A ilusão de ser onipotente e invulnerável à infelicidade. É como se, desde a infância, muito antes da depressão, o deprimido de hoje vivesse fechado numa bolha de ilusão narcísica que o fazia sentir-se todo-poderoso e o apartava da realidade: “Enquanto eu sonhar que sou forte, sinto-me forte e nenhuma desgraça pode me acontecer”. Essa é a ilusão, a miragem infantil que o deprimido perdeu.

É como se, desde a infância, muito antes da depressão, o deprimido de hoje vivesse fechado numa bolha de ilusão narcísica que o fazia sentir-se todo-poderoso

A depressão é uma tristeza anormal provocada pela perda de uma ilusão

Vocês devem estar com a impressão de que avanço rápido demais, mas eu gostaria desde logo de fazê-los conhecer o essencial da minha interpretação do fenômeno depressivo. Para mim, a depressão, mais que um distúrbio do humor, ocorre quando uma ilusão infantil de onipotência narcísica resvala para uma desilusão devastadora de sentir que não se é mais nada. Assim, gostaria de lhes demonstrar que a depressão é antes de tudo uma patologia da desilusão. Será essa a ideia central destas lições, que desenvolverei à medida que avançar. Por enquanto, fiquemos com a proposição dinâmica de que a depressão é a reação à perda dolorosa de uma ilusão egocêntrica, a passagem de um estado emocional já frágil — o estado de um ser inflado por uma ilusão — a um estado emocional francamente doente: o estado do mesmo ser esvaziado de sua ilusão. Resumiremos então, numa frase, que a depressão é uma tristeza anormal provocada por uma amarga desilusão. Será nossa primeira e mais importante definição de depressão. Peço que guardem a palavra “desilusão”, pois ela designa o essencial: um movimento de queda. De fato, quanto mais alta tiver sido a ilusão narcísica, mais dura será a queda na desilusão.

Ora, esse desmoronamento da ilusão narcísica é vivenciado por aquele que entra em depressão como um choque emocional. Choque que pode decorrer da descoberta de uma infidelidade insuspeitada, de um luto repentino e muito doloroso, de uma imprevisível perda monetária ou de uma demissão arbitrária. Em todos esses casos sabemos identificar o choque emocional, mas outras vezes nos é difícil localizá-lo, particularmente quando não se trata de um acontecimento único, mas de um acúmulo de decepções e humilhações, por exemplo um funcionário constantemente afrontado pelo chefe.

Se me reporto à infância do paciente, contudo, devo acrescentar que, para entrar em depressão, foi necessário que ele sofresse não apenas um choque emocional recente, mas também um trauma psíquico infantil — abandono, maus-tratos ou abuso sexual — que provocou uma reação de neurose pós-traumática.

Temos então dois acontecimentos altamente perturbadores que se abateram sobre o eu do futuro deprimido. Para começar, um trauma psíquico ocorrido antes dos dezesseis anos e cujo violento impacto atingiu as fundações de um psiquismo ainda em formação. Depois, temos o choque emocional ocorrido mais tarde, na idade adulta, e cujo impacto levou o sujeito a perder a ilusão de onipotência que mal ou bem compensava a instabilidade nele instaurada pelo trauma psíquico infantil. Para explicar melhor, vejamos uma alegoria. Uma coisa é a poliomielite que paralisa as pernas de uma criança; outra coisa é, no adulto inválido, a perda da muleta que lhe dava mobilidade. Uma coisa é o dano à massa cinzenta da medula espinhal da criança — teríamos nesse caso o trauma psíquico; outra coisa é a perda da muleta, ou seja, a perda da ilusão que equilibrava o paralisado, perda que o faz cair — este seria então o choque emocional. O trauma psíquico prostra a criança, que para se reerguer se agarra a uma ilusão; e vinte anos depois o choque emocional desequilibra o adulto, que perde sua ilusão infantil e entra em depressão.

…vinte anos depois o choque emocional desequilibra o adulto, que perde sua ilusão infantil e entra em depressão

Acrescentarei aqui uma observação que certamente vai interessar ao clínico que há em cada um de vocês. Seja no trauma psíquico, seja no choque emocional, o impacto no sujeito pode se dar de uma só vez, de maneira súbita e maciça, ou em uma série de microimpactos que aos poucos geram um estado de hipersensibilidade a qualquer mínima frustração. Esse conceito de microimpactos que aqui proponho, sejam microtraumas na infância ou microchoques emocionais na idade adulta, foi desenvolvido por mim para responder ao problema que enfrentamos com certos pacientes deprimidos quando não conseguimos datar o incidente traumático infantil ou identificar o choque emocional recente. Seja numa criança traumatizada ou num adulto em choque, acabei por me dar conta de que um único impacto maciço ou o acúmulo de vários pequenos impactos que se somam podia produzir o mesmo abalo. Quando perguntamos ao analisando deprimido se não foi perturbado na infância por um evento particularmente doloroso, às vezes ele responde: “Não. Acho que não. Minha infância até que foi tranquila. Não me lembro de ter passado por momentos particularmente dolorosos”. Mas se insistimos em obter detalhes da relação com a mãe ou com o irmão mais velho, por exemplo, descobrimos que de fato não houve um incidente traumático preciso, mas um período sofrido na infância. Tomemos o caso de um menino maltratado durante anos por uma mãe solo e colérica. O menino não apanhava, mas foi submetido diariamente a gritos cortantes e desdenhosos que podem ser piores que pancadas: “Você não presta! É um covarde como seu pai! Nunca vai ser ninguém!”. Berros humilhantes de uma mãe que acabam ferindo a criança e privando-a de uma existência serena. Essa imagem de um dano progressivo que corrói o ser me lembra o suplício chinês da gota d’água que cai interminavelmente na cabeça do condenado, até deixá-lo louco. Em suma, sofra a criança o impacto traumático num único momento ou prolongado no tempo, o efeito é o mesmo: um dano aos alicerces do seu ser. E, paralelamente, sofra um adulto o impacto de um único choque emocional ou de vários microchoques acumulados, o efeito é o mesmo: o desencadear de uma depressão.

Não posso continuar falando do trauma psíquico sem lhes lembrar um fato que podem constatar por vocês mesmos, de tão evidente, e que se impôs a mim ao escrever estas linhas. Do que se trata? Cada um de nós, neuróticos que somos, sofreu na infância e na juventude vários traumas inevitáveis que afetaram nosso eu, sem chegar a lesá-lo. Entre esses que denomino traumas de crescimento, absolutamente necessários ao desenvolvimento de nossa personalidade, temos o nascimento de um irmãozinho, o divórcio dos pais ou a morte de um dos avós; são todos traumas que, uma vez superados, nos ajudaram a amadurecer, mas também nos perturbaram até instalar em nós uma neurose que é comum a todos.

Essa imagem de um dano progressivo que corrói o ser me lembra o suplício chinês da gota d’água que cai interminavelmente na cabeça do condenado

A depressão é a espuma da neurose

Gostaria agora de refinar minha interpretação do fenômeno depressivo, valendo-me de uma terminologia clínica que me levará a lhes propor uma segunda definição psicanalítica da depressão, além da definição primeira da depressão como a perda de uma ilusão. Ambas as definições, asseguro-lhes, foram forjadas teoricamente no cadinho da prática cotidiana com meus analisandos. Foram eles, basicamente, que me ensinaram a pensar a depressão tal como a exponho aqui. E o que me ensinaram? Que a depressão não é uma entidade em si, isolada, e sim a falência de uma outra entidade chamada neurose. Afirmei há pouco que a depressão era a passagem de um estado emocional já frágil, de um ser inflado por uma ilusão, a um estado emocional francamente doente, do mesmo ser esvaziado de sua ilusão. Agora substituo “estado emocional já frágil” por “neurose”; “passagem” por “falência da neurose”, falência que, em outro vocabulário, caracterizamos como “perda de uma ilusão de onipotência”, ou, alegoricamente, como “perda da muleta”; e por fim substituo “estado emocional francamente doente” por “depressão”. Digamos então que o deprimido é uma pessoa altamente neurótica que desmoronou no dia em que perdeu sua ilusão de onipotência.

Aqui devo fazer uma ressalva. A bem da clareza, tive de deixar de lado as variedades de depressão ocorridas em pacientes com patologias graves: psicose, perversão, toxicomania, anorexia ou bulimia, demência senil ou ainda doença orgânica grave, todas elas patologias que podem se associar a uma depressão. Em nossa lição de hoje preferi estudar apenas a depressão mais frequente, a que acomete pacientes neuróticos. Digo “a mais frequente”, mas poderia dizer também “a mais eloquente”, pois ela nos mostra como nenhuma outra a gênese da depressão.

Assim, considerar que a depressão é o colapso de uma neurose, sua descompensação, implica que a ação do clínico deve se voltar não apenas para a depressão em si, mas sobretudo para a neurose que a fomentou. Se conseguirmos aliviar o paciente deprimido da sua neurose, automaticamente iremos aliviá-lo da sua depressão. Para retomar a palavra “ilusão”, eu diria que, para tratar a cruel desilusão num deprimido, devemos antes encontrar e fazê-lo encontrar a ilusão infantil que o subjugava antes de ele se deprimir. Peço que tenham sempre em mente essa recomendação técnica, pois ela expressa a orientação que domina meu trabalho: eu não ataco apenas o mal de agora, a depressão; ataco a raiz do mal: a neurose e suas ilusões infantis. E justamente, para ilustrar a ação de um psicanalista que, para tratar a depressão, trata a neurose, vou lhes apresentar mais adiante, na terceira lição, o caso de Laurent. Poderão então me ver em ação com um paciente deprimido, desde a primeira consulta.

A depressão é a febre, a neurose é a infecção. Numa palavra, a depressão é a espuma da neurose

Quero deixar bem enfatizado. Para mim, a depressão é a manifestação de uma neurose que se descompensou, da mesma forma como um acesso de febre é a manifestação de uma bronquite que se agravou. Tratar um paciente deprimido sem levar em conta o fato de que ele é um neurótico descompensado é como tratar um paciente febril sem pensar na infecção que provocou a febre. A depressão é a febre, a neurose é a infecção. Numa palavra, a depressão é a espuma da neurose. Mas não devemos nos enganar: seja uma febre ou uma espuma, a depressão será sempre uma doença grave, com considerável risco de suicídio.

Produto

  • A Depressão É a Perda de uma Ilusão
  • J. -D. Nasio
  • Zahar
  • 192 páginas

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