A comunidade está mais forte?
Icone para abrir

2

Conversas

Audre Lorde: feminismo lésbico negro e ativismo ambiental

Em nova e ousada biografia, pesquisadora Alexis Pauline Gumbs propõe releitura do legado de Lorde à luz do interesse da filósofa pela natureza

Leonardo Neiva 22 de Junho de 2025

Audre Lorde: feminismo lésbico negro e ativismo ambiental

Leonardo Neiva 22 de Junho de 2025

Em nova e ousada biografia, pesquisadora Alexis Pauline Gumbs propõe releitura do legado de Lorde à luz do interesse da filósofa pela natureza

A escritora e filósofa norte-americana Audre Lorde (1934-1992) é lembrada como um dos grandes nomes do ativismo em defesa das mulheres lésbicas e negras, autora de textos sobre direitos civis, racismo, feminismo e sexualidade que seguem influenciando novas gerações mundo afora. Mas você sabia que Lorde era também uma grande defensora da natureza e do meio ambiente, temas recorrentes inclusive na sua poesia?

Em uma nova biografia focada na filósofa, a poeta e pesquisadora americana Alexis Pauline Gumbs propõe um novo olhar não apenas sobre a obra de Lorde, mas também sobre sua vida — evitando enveredar de forma óbvia pelos mesmos pontos já um tanto debatidos e repisados da trajetória da pensadora.

O livro “Audre Lorde: Sobreviver é uma promessa” (Todavia, 2025), que ganhou destaque em jornais como o Times e o Guardian, sai agora em julho no Brasil. Em suas páginas, Gumbs, que é também ativista queer e do feminismo negro, compartilha da crença de Lorde de que a linguagem e as comunidades — o que inclui a relação entre seres humanos e meio ambiente — podem ser ferramentas poderosas de libertação e de preservação de todas as formas de vida.

A abordagem faz bastante sentido para evocar o pensamento de Lorde, que sempre conectou de forma interseccional em sua luta a defesa dos direitos das mulheres negras e queer, reforçando a importância das diferenças de gênero, raça e sexualidade para entender a variedade da experiência feminina. A ativista também demonstrou desde cedo coragem para enfrentar uma sociedade na época ainda mais posicionada contra tudo o que ela representava. “Eu sabia que era lésbica antes de ter vinte anos, e me gabava desse fato ainda que me tornasse terrivelmente sozinha”, escreveu em carta à amiga e ativista do feminismo lésbico Adrienne Rich (1929-2012).

“Minha tarefa é seguir Audre, que estudou de perto a Terra e o universo desde a infância até o fim de sua vida, e honrar o fato de que o tamanho da vida da poeta é o tamanho do universo”, escreve a autora na introdução da obra, e acrescenta: “Audre mencionava o mundo natural em seus poemas, não como metáfora para as relações humanas mas como um mapa para entender nossas vidas como parte de cada manifestação da Terra.”

Audre mencionava o mundo natural em seus poemas, não como metáfora para as relações humanas mas como um mapa para entender nossas vidas como parte de cada manifestação da Terra

Significa que tudo está interligado e nossa forma de viver, abusiva em vários sentidos, segue profundamente conectada com a natureza e o ambiente ao redor. “Vivemos em um pacto. O planeta é o pacto. A Terra é um relacionamento”, Gumbs afirma na obra.

Esses temas inclusive já integram há algum tempo os interesses acadêmicos da pesquisadora. É autora, por exemplo, de um livro sobre o que mamíferos marinhos podem ensinar ao feminismo negro, ainda não publicado no Brasil. Em seu site, ela se apresenta oficialmente como “evangelista do amor feminista negro” e “prima aspiracional de todos os seres sencientes”.

Receba nossos melhores conteúdos por email

Inscreva-se nas nossas newsletters


Obrigada pelo interesse!

Encaminhamos um e-mail de confirmação

Viver para contar

A biografia destaca passagens difíceis na vida de Lorde, como o fato de ter precisado lidar na infância com uma deficiência visual e, bem mais tarde, com um câncer — que a acompanharia durante boa parte da vida e acabaria por vitimá-la —, apontando como todos esses momentos concorrem para formar um retrato da trajetória e da filosofia da escritora:

“Uma sobrevivente da injustiça contra a deficiência na infância, uma sobrevivente do suicídio da melhor amiga, uma teórica colegial do que significava sobreviver à era atômica, uma ativista universitária contra a irresponsabilidade nuclear, uma mãe que sabia que a poesia podia ajudar a ensinar seus filhos a prosperarem em um mundo racista, e finalmente uma sobrevivente de câncer, que entendia que a guerra que acontecia dentro de suas células estava conectada a todas as lutas contra opressões no planeta.”

No coração da obra, está uma questão central formulada à época pela ativista do feminismo lésbico e negro, Barbara Smith, amiga pessoal de Lorde: “Sou uma crítica literária negra feminista lésbica me perguntando se é possível ser isso e viver para contar a história.” De acordo com o livro, a frase foi um estopim para que Lorde passasse a se envolver mais em espaços feministas lésbicos negros que evitassem reproduzir o racismo do movimento feminista branco, que já vinha machucando-a havia algum tempo e do qual ela se tornou crítica.

O contato com Smith teria sido também uma das motivações para que a filósofa escrevesse “Zami” (Elefante, 2021), autoficção publicada originalmente em 1982 em que Lorde exalta as mulheres que passaram por sua vida, recontando sua descoberta do amor LGBTQIAPN+ ainda na juventude e os desafios de ser lésbica e negra nos EUA dos anos 1950. Gumbs afirma na biografia que “Zami” foi “sua carta de amor coletivo mais longeva de, para e como feminista lésbica negra.”

Nas palavras dela

Um dos pontos mais intrigantes é que Gumbs aplica parte dessa filosofia sobre comunidades e conexões à própria forma de contar a história de Lorde. Consciente de que não se trata da primeira, muito menos da única biografia focada na pensadora, recorre de forma ousada a uma narrativa não-linear, que vai cruzando momentos-chave na existência da filósofa a fatos sobre plantas e mares, reforçando a importância de um olhar sobre o todo para entendermos as dimensões do legado da filósofa e ativista.

No capítulo a respeito da amizade de Lorde com a poeta Pat Parker (1944-1989), por exemplo, a autora intercala a história da troca de cartas entre as duas ao longo de quase 20 anos com longas explicações sobre o funcionamento das planícies abissais — amplos espaços no fundo do oceano, onde a vida humana é impraticável. Em outro, compara o pulmão humano a “árvores de cabeça para baixo”, para falar sobre como o simples ato de respirar durante a juventude de Lorde nos EUA da metade do século 20 era em si um feito de sobrevivência.

“Durante a Guerra Fria dos anos 1950, o Hunter College era um espaço tão homofóbico e repressivo quanto qualquer outro. Audre foi suspensa por usar calças. Seus textos para publicações escolares foram censurados por suas posições políticas. Os bares para ‘garotas gays’ em downtown eram de propriedade e controlados por mulheres brancas…”

A autora ainda dá destaque a aspectos menos conhecidos da poesia de Lorde e enfatiza o contexto e o ambiente em que a escritora viveu para mostrar como todos esses elementos tiveram relevância central para sua visão de mundo. Em um trecho sobre a relação entre a pensadora e a companheira Frances Clayton, com quem manteve um amor de quase 20 anos, Gumbs enfatiza o poema “Contornos”, que deixa clara a conexão que a escritora fazia entre sua vida, seu ativismo e sua relação com a natureza e a sobrevivência do planeta:

“Uma mulher Negra e uma mulher branca
emparelhamos nossos trajetos
num mar de distância calculada
alertado por recifes de raiva oculta
histórias reunidas contra nós
[…]
se perdermos
algum dia o sangue das mulheres vai congelar
sobre um planeta morto
se ganharmos
ninguém vai contar.”

Uma força letal

No fim, Gumbs trata o legado de Lorde como uma continuidade da existência da ativista na Terra, uma verdadeira “vida após a morte”: “Porque minha vida não pode ser minha vida sem honrar a vida dela”, escreve Gumbs a respeito da necessidade que sente de trazer o pensamento e a obra da filósofa para as novas gerações. “A escrita de Lorde, seu impacto em nossos movimentos, sua oferta obstinada de amor são elementares na minha existência. O universo do qual cada um dos meus suspiros é feito. E eu não sou a única.”

A escrita de Lorde, seu impacto em nossos movimentos, sua oferta obstinada de amor são elementares na minha existência

Uma existência póstuma de luta e ativismo que hoje se mostra ainda mais relevante, num momento em que os direitos sociais para as comunidades LGBTQIAPN+ sofrem perdas sucessivas em um EUA sob a administração Trump. Essa relação a própria pesquisadora também faz questão de apontar

“Não aprendemos o suficiente com a história”, afirma Gumbs no capítulo final do livro, escrito ainda durante a pandemia, no primeiro governo Trump, cujas políticas, segundo ela, causaram destruição desproporcional “entre comunidades negras, indígenas e de pessoas de cor”.

“Graças ao que Ruth Wilson Gilmore chama de ‘abandono organizado’, a recusa do meu governo de responder ao desastre natural e criado pelo homem da Covid-19, agora posso ser uma força letal apenas ao respirar. E alguns diriam que como mulher negra queer, sempre fui uma força letal. Ou, nas palavras de June Jordan, há muitos que já tinham medo ‘desse terror impressionante que devo ser’.”

Produto

  • Audre Lorde: Sobreviver é uma promessa
  • Alexis Pauline Gumbs (trad. Érika Nogueira Vieira)
  • Todavia
  • 520 páginas

Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.

Um assunto a cada sete dias