CV: Renata Mendonça
Jornalista da Globo, que está cobrindo a Copa do Mundo feminina de futebol, fala sobre o machismo no meio esportivo e o empoderamento das mulheres nessa área
“As pessoas sempre partem do pressuposto de que as mulheres não entendem de futebol como os homens”. É para mudar pensamentos retrógrados e machistas como esse que Renata Mendonça, 34, trabalha. A jornalista e comentarista esportiva é uma das convocadas da Globo para a cobertura da edição 2023 da Copa do Mundo feminina de futebol, que ocorre na Austrália e na Nova Zelândia até o dia 20 de agosto.
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Para chegar até aqui, ela trilhou uma caminhada árdua por ser mulher e uma das poucas na área. No primeiro estágio, em 2011, foi questionada pelo chefe se era realmente capaz de exercer funções básicas do trabalho com o universo futebolístico: acompanhar treinos, coletivas de imprensa e partidas. Pensou em desistir, mas resistiu.
Às vezes, de tanto as pessoas duvidarem da sua capacidade, você mesma passa a duvidar
Passou pela BBC Brasil e, lá, além de cobrir uma Copa e uma Olimpíada, teve experiências com política e questões sociais. Foi nessa redação que conheceu outras repórteres que a apresentaram às pautas ligadas ao feminismo. “Essa trajetória me enriqueceu demais”, conta. Em 2015, Renata cofundou o Dibradoras, portal voltado ao conteúdo de esportes femininos. A relação com o Grupo Globo começou em 2018, ao ser chamada para integrar o time do programa Redação SporTV — em 2020, foi contratada como comentarista oficial do canal.
Renata fala que quando começou poucas mulheres faziam parte desse campo jornalístico “tão masculino” e que, na época, não havia uma união entre elas. Mas hoje isso está mudando. “Aprendemos esta lição: ou a gente avança juntas ou ninguém vai avançar. As mulheres finalmente se encontraram e perceberam que são mais fortes unidas. Ainda somos a minoria nesse meio, mas somos muito mais fortes porque entendemos a importância de estarmos juntas”, reflete.
A profissional ainda dá dicas para jovens que querem seguir na área. “Primeiro, você precisa estar muito certa de que é isso o que você quer, porque o ambiente parece dizer o tempo inteiro que aquele lugar não é para você. O desafio é diário.”
Na entrevista abaixo, Renata Mendonça fala a Gama sobre machismo, empoderamento feminino, mentores na carreira e a paixão pelo futebol.
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G |Você sempre quis ser jornalista esportiva?
Renata Mendonça |Sim, sempre quis trabalhar com esporte. Na verdade, na infância, eu era muito envolvida com esportes em geral, minha aula preferida na escola era a de educação física. E eu gostava também de assistir a jogos de futebol com o meu pai e com o meu irmão mais velho. Quando comecei a analisar o que eu iria estudar na faculdade, pensava sempre em algo relacionado ao esporte e, inicialmente, até tinha cogitado cursar educação física, mas eu também tinha uma paixão por comunicação e por escrever, então, decidi fazer jornalismo. Desde o primeiro dia na faculdade, procurei a rádio universitária para fazer parte de um programa esportivo que tinha lá [na Unesp, em Bauru], mas logo no segundo ano eu já estava meio desesperada, pensando em como iria entrar no mercado do jornalismo esportivo estando numa cidade do interior. Então, transferi a faculdade para São Paulo [para a Cásper Líbero] para poder estar mais perto desse meio. Meu primeiro trabalho como jornalista esportiva foi em 2011, como estagiária do site da ESPN Brasil.
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G |Como você foi parar no futebol, especificamente?
RM |Eu gosto de esportes em geral. Na infância, eu jogava vôlei e futebol, mas o vôlei eu praticava como esporte oficial, digamos assim, participando de campeonatos. Eu levava mais a sério e até hoje tenho um amor especial. Mas o futebol é o esporte mais popular do planeta, o brasileiro acompanha muito, e eu me apaixonei organicamente. A gente assistia muito futebol em casa, íamos ao estádio. Tudo isso era muito apaixonante para mim e, assim, a minha ligação com o futebol foi ficando cada vez maior.
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G |O que moveu você a trilhar esse caminho?
RM |Inicialmente, foi uma paixão que eu nem entendia direito, porque eu era a única menina, ou uma das únicas, dentro do meu círculo de amigos que realmente gostava de futebol. Então, meio que cresci como uma estranha no ninho. Tinha uma ou outra garota da minha sala de aula que ou jogava futebol ou acompanhava, mais ou menos, o esporte. Na adolescência, e conforme ia ficando mais velha, eu ficava cada vez mais isolada nesse sentido de ser a única menina que gosta daquele esporte e fui me acostumando com esse ambiente. Quando entrei na ESPN, eu era a única repórter mulher do site, entre 20 e poucas pessoas. Eu não entendia direito por que isso acontecia, achava que era algo dado: meninas não gostam de futebol, é “normal”. E aí, quando passei de fato a entender o porquê, uma das minhas causas de vida, que nasceu da paixão pelo jornalismo esportivo, passou a ser trabalhar pela transformação do universo esportivo num ambiente de mulheres também, num lugar em que elas se sintam representadas e confortáveis. Eu sou muito grata por ter tido a oportunidade de ter essa relação com o esporte desde criança e acho que toda menina deveria ter a mesma chance. Infelizmente, pela forma como criamos meninos e meninas na sociedade, muitas vezes as meninas nunca se relacionam com o esporte. A partir do momento em que entendi o motivo de ser sempre a única, ou uma das poucas ali, eu compreendi a importância de ocupar esse espaço para buscar uma mudança nesse sentido.
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como você lida com eles?
RM |Acho que sendo uma mulher num ambiente muito masculino, com uma certa naturalização de que aquele lugar é para homens, esse ambiente acaba sendo, muitas vezes, bastante hostil para a gente. Hostil no sentido de comportamentos que não devem ser naturalizados como brincadeira, como em situações de comentários sobre o corpo e a aparência das mulheres. Isso é bastante desagradável e você convive como se fosse natural. Hoje melhorou muito, mas sempre uso um exemplo de quando estava numa coletiva da seleção brasileira, depois de um jogo do Brasil contra a Colômbia em 2017, no estádio Nilton Santos, no Rio de Janeiro. Nós, jornalistas, esperávamos a coletiva do Tite, quando três mulheres que tinham trabalhado como promotoras de algum produto durante o jogo entraram na sala. Os jornalistas que estavam aguardando o Tite assobiaram para elas e fizeram alguns comentários. Eu ali, pensei: “A gente está aqui em um ambiente de trabalho e esse comportamento é tão natural que os caras se sentem à vontade para fazer isso”. No ambiente de trabalho. Então, acho que lidar com isso é um dos desafios — conviver com coisas que são muito desagradáveis e, às vezes, até violentas para você, de certa forma.
Outra coisa que, talvez, seja a pior delas é o fato de que você está sempre tendo que provar a sua capacidade, porque as pessoas sempre partem do pressuposto de que as mulheres não entendem de futebol como os homens. Então, qualquer pessoa que ligue a televisão e me veja falando, não interessa o que eu esteja falando, ela olha para mim e parte do pressuposto de que eu não sei do que estou falando. Ao passo que se essa mesma pessoa olha para um cara que ela pode também não conhecer, ela presta atenção porque esse cara entende alguma coisa do que ele está falando porque ele é homem. Há mais tolerância com eles porque o pressuposto é que o homem sabe e a mulher, não. Ela tem que mostrar para você que ela sabe, ela tem que te convencer a ouvir primeiro. Essa é uma situação bastante desafiadora e que não te dá nenhuma margem de erro. Qualquer equívoco que você cometa pode ser fatal, no sentido de você perder todo o espaço ou a credibilidade por causa de um erro. E também pode ser fatal para as mulheres [jornalistas esportivas] no geral, porque se uma comete um erro, é um combustível para as pessoas falarem: “Tá vendo, mulher não entende nada de futebol. Olha o que essa daqui falou”. Enquanto que um erro de um homem não recai sobre todos. Você não vê um cara que deu uma notícia errada recebendo a mesma reação: “Tá vendo, homem não entende nada de futebol”. Não, você diz que o fulano falou besteira. Então, é bastante complexo lidar com isso. Às vezes, de tanto as pessoas duvidarem da sua capacidade, você mesma passa a duvidar.
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G |E como você enfrenta esse machismo na sua área?
RM |Primeiro, você precisa estar muito certa de que é isso o que você quer, porque o ambiente parece dizer o tempo inteiro que aquele lugar realmente não é para você. O desafio é diário, você tem de repetir: “Eu preciso estar aqui, eu quero estar aqui”. Um ambiente muito, muito masculino, com comportamentos tão naturalizados assim, não muda do dia para a noite. Já tivemos avanços significativos nesse sentido, mas ainda há muita coisa que acontece, como não conseguir terminar um raciocínio porque você é interrompida o tempo todo ou falar algo que um cara repete em seguida, dizendo a mesma coisa que você acabou de dizer, mas o crédito daquilo vai todo para esse cara, e não para você. Fora que com as redes sociais, esse meio fica ainda mais hostil porque as pessoas usam essas ferramentas para destilar ódio. Elas olham ali uma mulher ocupando um espaço de protagonismo no esporte, seja no futebol ou em outro esporte considerado de homens, você recebe ataques recorrentes. Por isso, você tem que estar muito certa do que você quer para continuar diante de tudo isso. Você não pode cair na armadilha de duvidar de si mesma.
No começo da carreira, passei por um episódio em que me questionei: “Será que eu deveria estar aqui?”. Eu ainda era estagiária e, durante uma reunião de feedback, o meu chefe falou que não confiava em mim para certas tarefas, como cobrir treinos e jogos porque ele não tinha certeza se eu saberia o que perguntar para os jogadores na coletiva de imprensa, por exemplo. Naquele momento, fiquei tensa porque eu nunca havia cometido um erro, nunca demonstrei nenhuma falta de conhecimento. Portanto, baseado no que ele se questionava. Saí da reunião pensando: “Será que realmente eu não sou capaz?”. Depois, conversei com alguns amigos e decidi seguir em frente. Mas hoje vejo que esse comentário está ligado a questões de gênero e, inclusive, eu teria outra resposta, eu falaria: “Por que você me contratou, então? Você não acha que eu sou capaz de fazer a coisa mais básica da função, que é cobrir um treino ou um jogo, então não faz sentido você ter me contratado. Essa é uma armadilha muito fácil de cair porque tem muita gente achando que você não merece estar no lugar em que você está. Por isso, é importante que mais mulheres ocupem esses espaços. O tanto que ouvimos de pessoas que acham que a gente está aqui porque somos mulheres, é demais. E as pessoas não percebem que, na verdade, quem ocupa o espaço sem merecer, majoritariamente, são os homens brancos porque você, sendo um homem branco, já tem muitos privilégios. A mulher é quem tem que enfrentar inúmeras barreiras, e as poucas que chegam a algum espaço no esporte trabalham muito, pode ter certeza.
É importante que mais mulheres ocupem esses espaços
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G |Você disse que responderia de outra forma ao chefe que achou que você não era capaz de cobrir treinos e jogos. Na sua trajetória, você já cometeu alguma falha que hoje não cometeria?
RM |Estamos suscetíveis a erros e certamente eu já fiz coisas que, hoje, faria de uma forma diferente. Inclusive, eu me cobro muito no meu trabalho. Eu saio dos jogos e fico pensando: “Isso aqui eu poderia ter falado de uma forma diferente” Acho que principalmente porque o meu intuito é me comunicar com o máximo de pessoas possível e me fazer entender, minha função como comunicadora, presto muita atenção na forma como falo as coisas, seja nas transmissões ou nos programas.
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G |Você teve algum mentor ou alguma mentora na carreira?
RM |Algumas pessoas, ao longo da minha trajetória, me ensinaram muito, de diferentes formas, e não só no esporte. Quando trabalhei na BBC, fiz outras coberturas, além das esportivas. Cobri a Copa de 2014, a Olimpíada de 2016, mas também fazia coberturas políticas, por exemplo. Foi ali que eu ampliei meu leque de reportagens sobre questões sociais e que tive um contato maior com a pauta feminista. No dia a dia de trabalho como jornalista esportiva, havia poucas mulheres e, na época que eu comecei, a gente não tinha “se encontrado”, no sentido de entender a importância de nos unirmos. Não tínhamos muitas conversas, a gente não compartilhava as vivências abusivas e machistas do dia a dia. Então, na BBC, eu tive mais contato com repórteres mulheres, muito feministas, e com quem aprendi bastante sobre essas pautas e a respeito da necessidade de falarmos sobre isso, de não aceitar determinados comportamentos e de não naturalizar abusos. Essa trajetória me enriqueceu demais porque tive várias trocas com outras repórteres com experiências bem diferentes da minha, totalmente desconectadas do esporte.
Agora, quando comecei a trabalhar como comentarista esportiva, conversei muito com a Ana Thaís Matos, peguei muitas dicas com ela; temos uma troca muito boa. E tem também o PVC [Paulo Vinícius Coelho], que foi um cara muito importante na minha carreira toda. Eu trabalhei com o PVC na ESPN, ainda quando era estagiária, e depois trabalhei de novo no Grupo Globo. Ele é, e sempre foi, uma das pessoas mais humildes que eu conheço e um dos maiores fenômenos da nossa área, que tem muita humildade para ensinar, conversar, dar dicas, trocar. O PVC me ajudou desde o início. E eu acho que hoje, nós, as mulheres da área, conversamos mais e nos ajudamos muito. E é isso que faz a gente crescer. Até outro dia, as mulheres ficavam isoladas, choravam no banheiro. Agora, podemos até chorar, mas choramos juntas. Isso pode parecer bem bobo, porém, é algo que ajuda a nos fortalecer e também a seguir na caminhada. Porque se você está chorando sozinha no banheiro, a chance de sair e procurar a porta para ir embora é maior, mas se você consegue encontrar outras mulheres ali que te apoiam, que te ajudam, que choram junto com você para que um dia ninguém mais precise chorar, vocês conseguem avançar juntas. Aprendemos esta lição: ou a gente avança juntas ou ninguém vai avançar. Essa é, para mim, a maior conquista que tivemos no esporte na última década. As mulheres finalmente se encontraram e perceberam que são mais fortes unidas. Ainda somos a minoria nesse meio, mas somos muito mais fortes porque entendemos a importância de estarmos juntas.
Hoje, nós, as mulheres da área, conversamos mais e nos ajudamos muito. E é isso que faz a gente crescer
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G |Qual conselho você daria a uma jovem que queira trilhar um caminho parecido com o seu?
RM |O primeiro é não cair na armadilha de duvidar da própria capacidade. Ou seja, é ser uma pessoa muito convicta do que quer. E, obviamente, estar bem preparada, estudar bastante, mas também não se deixar levar pelas dúvidas que as pessoas colocam em você. Tenha fé no que você faz e na sua capacidade, pois as pessoas vão tentar te derrubar o tempo inteiro. Outra coisa é procurar as mulheres que possam estar com você, que possam trocar com você, que você possa contar com o suporte delas e também dar suporte a elas quando precisarem. Tenha os olhos abertos para as mulheres que estão chegando e que, às vezes, podem estar um pouco deslocadas, se sentindo sozinhas, perdidas nesse mundo que ainda é tão masculino. Esteja com esse olhar e com os braços abertos. Isso pode ajudar tanto você pessoalmente a não desistir e a seguir em frente, quanto as mulheres no geral, como grupo, a irem avançando e conquistando mais coisas nesse meio.