CV: Mini Kerti — Gama Revista
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Divulgação

CV: Mini Kerti

Diretora de “Sob Pressão” e do documentário “Refavela 40”, indicado ao Emmy, Mini Kerti extrai da realidade suas melhores histórias

Andressa Algave 27 de Janeiro de 2022

Antes de se firmar como uma das principais diretoras de séries e filmes do país, Mini Kerti experimentou muitas funções: foi produtora, assistente de direção, assinou videoclipes e campanhas publicitárias. Em comum, todas as experiências tem um gosto genuíno por ver e contar histórias. No colégio, a menina, nascida Maria Isabel, que ganhou o apelido de uma tia, já produzia saraus e contribuía para o jornalzinho e rádio da escola. Quando conseguia, invadia as sessões do cineclube Estação Botafogo, no Rio de Janeiro, e maratonava as matinês de mestres do cinema. Quando teve que escolher uma profissão, quis cursar História, mas a atração pelos sets de filmagens foi maior, e não concluiu esse nem outros cursos que começou, tornando-se uma autodidata.

“O set de filmagem é uma experiência muito intensa. Comecei pela publicidade, não pela ficção, e hoje em dia o que me interessa é construir uma cena. Chegar lá e dirigir os atores, entender como a cena se constrói, o que está levando os personagens a fazer cada coisa. É uma coisa que me dá muito prazer”, diz a diretora de 51 anos, que está à frente de mais de dez filmes e séries, entre os quais estão o seriado médico “Sob Pressão” e o documentário “Refavela 40”, indicado ao Emmy Internacional, sobre os 40 anos do disco “Refavela”, de Gilberto Gil.

O caminho para se destacar no audiovisual é tortuoso. Ainda na faculdade, Kerti descobriu um problema na coluna e largou as aulas para buscar a cura na dança. Por essa época, conheceu os amigos Isabel Diegues e Andrucha Waddington, de quem mais tarde viria a se tornar sócia na Conspiração Filmes, uma das principais produtoras do país. Com o surgimento da MTV, nos anos 90, começou a dirigir videoclipes para bandas de amigos e não parou mais. Trabalhou com a cantora Preta Gil em uma produtora, foi assistente de direção de cineastas como Cláudio Torres e Walter Salles.

O primeiro longa metragem, “Muitos Homens Num Só” (2015), inspirado no livro “Memórias de um Rato de Hotel”, do lendário escritor e cronista carioca João do Rio, rendeu dez prêmios no festival Cine Pernambuco, dentre eles o de melhor direção. A produção é baseada história real de um golpista do início do século 20. “Me interessa trazer à luz histórias e personagens que são desconhecidas. Acho isso importante para as novas gerações”, conta a diretora.

O olhar para extrair as melhores histórias do cotidiano foi o que também inspirou a criação da coluna “Casos do Acaso”, em parceria com Isabel de Luca e Marcos Augusto Gonçalves e publicada na Folha de S. Paulo. A ideia, como o título sugere, é trazer casos contados por pessoas reais, protagonistas da própria narrativa. “A vida é uma coisa maravilhosa, você não precisa inventar nada, tem muitas histórias incríveis. Inventar histórias é maravilhoso, mas minha ligação com essas histórias reais é forte, me interessa a vida das pessoas”.

Na conversa com Gama, Mini Kerti fala ainda sobre a importância das amizades, de não ter medo dos próprios erros e de como a melhor ficção pode se inspirar no que nos rodeia todos os dias.

  • G |Como você chegou até aqui?

    Mini Kerti |

    Na escola, desde muito cedo, fui muito ativa. Produzia saraus, ajudava a fazer a programação da rádio, o jornal. Era uma escola que incentivava muito a participação dos alunos e eu sempre inventava coisas para fazer, não parava quieta. Quando saí, fui fazer História. Mas era pouca ação para muita cabeça, eu tinha a coisa de agir e produzir. Concomitante a isso, descobri que tinha um problema sério na coluna, uma escoliose que não tinha muita solução, precisava fazer exercícios. Aí comecei a dançar, larguei a faculdade, acabei descobrindo que aquilo não era o que eu iria fazer para a vida. Tinha um grupo de amigos de teatro que trabalhavam com cinema, a Isabel Diegues era casada com o Andrucha Waddington [cineastas]. E eu tinha um grupo de amigos de tinham uma banda. A MTV apareceu e a gente foi fazer um videoclipe. Aí, comecei a trabalhar ao mesmo tempo que voltei para a faculdade e fiz Comunicação Visual, que também não terminei. Nessa época, era um clipe atrás do outro. Comecei na produção, mas fui autodidata, fui aprendendo durante o trabalho. Produzi um documentário do Walter Salles, “Socorro Nobre”, fiz um monte de produção em publicidade, até que uma hora me perguntaram o que eu queria ser e eu falei que queria dirigir. Comecei a fazer assistência de direção, fiquei um tempão com o Cláudio Torres [diretor de cinema]. A Conspiração surgiu nessa época fazendo videoclipe e publicidade, e uma hora eu saí e fui dirigir fora da empresa com o [produtor] Flávio Tambellini alguns clipes. Saí da Tambellini e a Preta Gil, que era a minha amiga, queria abrir uma produtora junto com a [cineasta] Monique Gardenberg. Elas abriram um braço na Duetto para publicidade e videoclipe, onde trabalhei por uns quatro anos, dirigi muita coisa. Por volta de 2003, voltei para a Conspiração. Esse foi o começo: um grupo de amigos, tanto da Conspiração quanto da Duetto, e um caminho trilhado sem ser muito pensado.

  • G |O que te fascinou na direção?

    MK |

    Eu sempre fui apaixonada por cinema. Quando tinha uns 16 anos, o Estação Botafogo [cineclube fundado em 1985, no Rio de Janeiro] estava começando. Sempre gostei muito de cinema e fazia aquelas maratonas no Estação. Naquela época e não tinha essa quantidade de streaming, em que você tem acesso a todos os filmes. Truffaut, Godard, Bergman, um monte de cineastas brasileiros e estrangeiros, você assistia na Estação. Me lembro que tinha um festival de cinema no Hotel Nacional. Eu morava em São Conrado e ia no hotel e entrava na sessão de manhã, que era para jornalistas, dava um jeitinho. O set de filmagem é uma experiência muito intensa. Comecei pela publicidade e hoje em dia o que me interessa é construir uma cena. Chegar lá e dirigir os atores, entender como a cena se constrói, por que a pessoa se movimenta desse ou daquele jeito, o que está levando os personagens a fazer cada coisa. A construção da cena no set é algo que me dá muito prazer. Eu aprendi a filmar com a publicidade: como funcionam os equipamentos de luz, os movimentos de câmera, as lentes possíveis. Meu processo antes foi técnico para depois adentrar nessa questão do personagem. Quando comecei, foi a era Collor. Não tinha cinema, só tinha a Globo. Então, ou você trabalhava na Globo para fazer ficção ou não tinha outra coisa. Até o cinema voltar com fôlego, foram uns oito anos. E, mesmo assim, sempre foi muito difícil fazer cinema. Tem a questão da captação, é um processo complexo conseguir levantar o dinheiro. Hoje em dia é mais simples do que era nos anos 90, apesar de a Ancine estar parada, desmantelada, mas  hoje tem os streamings, não é só a Globo. O espaço fica muito maior para o exercício da ficção, independente se é cinema ou série. Essa busca pelos diversos assuntos, pelo relato dos diversos universos que o cinema e o audiovisual propõem, me interessa muito. Acho que por isso o documentário, essa busca do outro e de reconhecê-lo como ele é, me interessa.

Hoje é mais simples fazer cinema do que era nos anos 90, apesar de a Ancine estar desmantelada. Hoje tem os streamings, não é só a Globo. O espaço para o exercício da ficção é maior

  • G |Qual é o segredo para contar uma boa versão da realidade?

    Mini Kerti |

    Eu acho que você tem que buscar o tom que quer contar as histórias. Qual é o meu jeito de contar? Porque existem muitas maneiras de contar a mesma história. Eu lembro que quando fiz o “André Midani: do Vinil ao Download”, que era sobre um produtor de música muito importante do Brasil, dirigi com o Andrucha [Waddington] e a gente cobriu, através do olhar do Midani, um período de tempo muito grande. Me perguntaram se eu achava que estava tudo contado, e eu disse que não. Não está nada contado, tem muitas versões da mesma história. Eu fiz o “Muitos Homens Num Só” (2015), [baseado no livro] do João do Rio, e a gente também fez uma versão. Vamos em busca do que nos aproxima do assunto. Eu escrevi com o Leandro Assis [roteirista] e fomos em busca de uma personagem feminina, a Eva, que é de uma peça do João do Rio e não estava no livro que nos inspirou, “Memórias de um Rato de Hotel”. A gente acaba buscando seja na ficção ou no documentário o que nos aproxima, as características daquela história que você conhece e que te atrai. É ressignificar. Me interessa trazer à luz coisas que são desconhecidas. Acho importante para as novas gerações. Talvez tenha a ver com a faculdade de História que tentei e não consegui, mas também tem a ver com a coisa de buscar esses assuntos, esses personagens, que não estão ali. Quem é da literatura conhece o João do Rio, mas o leitor mais desavisado, que não é daquele universo, deixa escapar esses personagens.

  • G |Como você lida com os desafios da carreira?

    MK |

    O Brasil é um país difícil à beça. É instável, tem muitas dificuldades sociais e econômicas. Hoje em dia a gente vive em um mundo muito veloz, tudo muda muito rápido. A Conspiração e os profissionais têm que se reinventar muito rápido para dar conta disso. Quando comecei, ainda tinha a moviola, a câmera 35mm que rodava em negativo, que era uma máquina caríssima. Fui assistente de direção do documentário de 50 anos do Caetano, que o Walter Salles e o José Henrique Fonseca dirigiram, e lembro de levar uma moviola para ver o “Demiurgo”, do Jorge Mautner, que só tinha uma cópia na casa dele. A evolução tecnológica foi gigante desde que comecei até hoje. Passamos por câmeras HD e hoje estamos em 5k. A quantidade de luz que você precisava para um filme 35mm e a quantidade de luz necessária para filmar com as câmeras digitais é muito menor. O processo de produção ficou mais simples e mais barato e não tem mais que fazer o telecine, que é transformar o filme em fita. Os problemas mudam também, não diminuem. A Conspiração começou fazendo videoclipe, fomos para publicidade, depois migramos para o streaming, as ficções, os documentários. São muitas transformações ao longo dos anos, você tem que se reinventar o tempo todo, pesquisar, estudar, estar o tempo todo se renovando.

A evolução tecnológica foi gigante desde que comecei até hoje. Você tem que se reinventar o tempo todo, pesquisar, estudar, estar o tempo todo se renovando

  • G |Como você lida com o machismo na área?

    Mini Kerti |

    Hoje em dia está até melhor. Na época da publicidade, fazer propaganda de absorvente ou de shampoo era coisa de mulher. Você não dirigia comercial de carro porque era coisa de homem. Mas eu fiz uma carreira, trabalhei muito, fiz muito comercial por muitos anos. Encontrei dificuldades, mas sempre tive parceiros ótimos, trabalhei com muitas mulheres e com parceiros homens que eram bons. O [diretor de fotografia] Flávio Zangrandi foi por anos meu parceiro de fotografia. Tem uma coisa ali estrutural que a gente já entendeu, mas agora está cada dia melhor. Por outro lado, esse lugar de fala também te nicha um pouco. Existe um esforço de a gente estar sempre vencendo alguma barreira e preconceitos e descobrindo o lugar. Isso é incessante na vida. Quando você para de fazer isso, envelhece. E acho que tem sempre que questionar, olhar para dentro, para aquela estrutura, ver como ela está montada. Mas às vezes essa estrutura é tão absorvente que você não enxerga. Acho que a gente está sempre procurando vencer esses paradigmas.

  • G |Quais conselhos você tem para quem está começando?

    MK |

    Você sempre tem que experimentar, não ter medo de errar e, ao mesmo tempo, é preciso ter seus princípios. Colocar a sua opinião, conversar, achar a sua cara, o seu jeito, o seu caminho, ser autoral. Para o diretor, a diferença entre cinema e as séries é que no cinema, antigamente, o diretor era a principal figura. O filme geralmente é uma ideia sua, por mais que você trabalhe com o roteirista. Você vai lá e filma como quiser. Na série, o papel do roteirista ganha uma importância maior porque, às vezes, o diretor faz uma temporada e não faz outra. Ou faz uma direção artística e tem outros diretores envolvidos, são muitas semanas, muitos meses. Você vai dirigir sua cena, seu episódio só, um momento. Fazer com amor, com vontade, com tesão, aquilo que você gosta e quer, sem medo e seguindo seus princípios, é importante.

  • G |O que te faz seguir na direção?

    Mini Kerti |

    Volta e meia eu me pergunto! Hoje tenho pensado muito sobre narrativas. Essa questão da História, que estudei lá atrás. As narrativas são várias em cima da história, que é uma. E cinema é isso. Ficção e audiovisual, mesmo o documentário, é criar narrativas. Hoje, nesse mundo polarizado que vivemos, essas narrativas geram polêmicas. É bom adotar a suavidade, fugir da radicalidade e ser ao mesmo tempo verdadeira. Acho que o que me faz fazer isso hoje é porque gosto muito. Tenho muitas ideias de projeto. Tenho uma coluna agora na Folha, chamada “Casos do Acaso”, junto com a Isabel de Luca e o Marcos Augusto Gonçalves. Durante a pandemia, eu e a Bel conversamos. Estava todo mundo em casa, e pensamos que as pessoas poderiam escrever histórias. Na pandemia, o acaso ficou quase impossível. A vida é uma coisa maravilhosa, você não precisa inventar nada, tem muitas histórias incríveis da própria vida. Inventar histórias é maravilhoso, mas minha ligação com essas histórias reais é forte, me interessa a vida das pessoas. Muitas pessoas contam histórias de amor, mas não só isso. A primeira coluna que a gente publicou tinha a ver com a morte de um irmão. São histórias de acasos que mudaram a vida da pessoa ou que a transformaram. Tem uma frase que diz que a vida é o que acontece enquanto a gente está fazendo outros planos. Acho que trabalhar com histórias da vida real é um motor para mim. Contar essas histórias de pessoas, conhecidas e desconhecidas, histórias transformadoras. A realidade é a melhor ficção, tem uma coisa de reconhecimento da vida, que é o meu caminho. O entendimento da vida como ela acontece.

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