Borbulha Ancestral
Espumante natural que não precisa de desculpa para ser aberto, o pét-nat é fresco, leve, alegre. Feito da mesma maneira desde que nasceu há milênios atrás, caiu no gosto — e na timeline — de muitos brasileiros
Talvez você já tenha visto passar na sua timeline alguma garrafa simpática e moderna de espumante disposta em algum ambiente igualmente simpático e moderno, da praia ao mato. E teve a impressão de que não se tratava de um vinho de comemoração, como seria um Champagne mais tradicional, mas algo mais casual e divertido, pronto para ser bebido sem justificativa. Se isso aconteceu, aposto que a garrafa em questão trazia dentro dela um pét-nat, uma bebida que tem conquistado o mundo inteiro e que, nos últimos meses, capturou o coração (e paladar e olfato) dos brasileiros.
Pét-nat é o apelido de pétillant naturel, ou espumante natural em bom português. Apesar da sua carinha moderna, não se engane, não é nada novo, e é produzido da mesma maneira como se faz há milênios — na “Odisseia”, de Homero, já há menções a vinhos frisantes — e por isso mesmo seu método de produção é chamado de ancestral. Os estudiosos acreditam que o primeiro pét-nat nasceu de um acidente, o vinho continuou a fermentar depois de engarrafado e, sem possibilidade de escape do gás, se integrou ao líquido em forma de borbulhas.
É assim que ele costuma ser feito até hoje: as uvas são fermentadas com leveduras indígenas (isso significa que não é adicionado nada selecionado) e, antes que todo o açúcar seja convertido em álcool, a bebida é engarrafada. Em vez da rolha, é comum que se use uma tampinha de metal, como as de cerveja, o que dá um ar menos pomposo à coisa. O açúcar que ainda está ali na bebida continua a fermentar dentro da garrafa, o que produz as borbulhas (ou pérlage) e o que explica uma doçura residual (nada muito intenso). A filtragem também não faz parte do processo, então não se espante se encontrar algum tipo de sedimento no fundo da garrafa.
“Os pét-nats podem ser ao mesmo tempo leves e complexos, gastronômicos”
Como resultado de seu processo minimalista, o pét-nat se apresenta como uma bebida menos alcoólica que outros vinhos (9% ou 10%), de corpo mais leve e mais frutada que tostada (não há estágio em leveduras como há em Champagne e em outros espumantes mais elaborados).
“Minha impressão é que o pét-nat amplia o leque de contextos no qual um espumante pode ser bebido, alivia as borbulhas daquela associação com momentos solenes, jantares formais e roupa de gala. A iconografia muitas vezes divertida e cartunesca incentiva isso também”, diz Bruno Bertoli, dono do Bar Beverino, em São Paulo, e um dos grandes advogados do vinho natural no Brasil. “Por vezes, acredito que tenha alguma relação com a cerveja artesanal, uma espécie de porta de entrada para o vinho.”
Outra coisa atraente do pét-nat é seu preço mais amigável do que o de outros espumantes de qualidade. “Pela reprodução do método ancestral, o produtor consegue colocar no mercado espumantes que demoraria anos em até dois meses. Isso possibilita um custo menor: em vez de gastar R$ 300, custa R$ 100”, afirma Lis Cereja, realizadora da feira Naturebas. Segundo ela, a bebida vira menos um objeto de desejo e mais uma coisa corriqueira, o tal “vinho para ser tomado”.
Ancestral e brasileiro
Hoje em dia os pét-nat são produzidos no mundo inteiro. No Brasil, seu sucesso faz total sentido: se o país tem bom terroir para espumantes e uma cena crescente do movimento do vinho natural, era apenas natural (com o perdão do trocadilho) que o estilo fosse explorado.
Um dos produtores brasileiros que se destaca com o espumante natural é a Vivente Vinhos. Fundada pelos amigos Diego Cartier e Micael Eckert em 2018 com vinícola e vinhedo orgânico próprio no município de Colinas (RS), próximo a Garibaldi, eles já contam com três safras no mercado, com até quatro rótulos (a depender do ano) entre brancos e rosés. No começo, temiam que o gás natural, mais suave, fosse um entrave para o público. Foi o contrário.
“Acredito que a principal diferença [em relação a outros espumantes] seja justamente o gás mais bem inserido e sutil. O interessante é que os pét-nats podem ser ao mesmo tempo leves e fáceis de beber, complexos e gastronômicos. Pela produção natural, são mais digestivos e saudáveis. Deixamos a natureza trabalhar, intervindo minimamente e tentando refletir as características de cada safra no líquido”, afirma Diego Cartier. O ano de 2019, por exemplo, foi de muitas chuvas e, portanto, as uvas não amadureceram bem, foram colhidas ainda verdes, até mesmo para espumantes, que pedem frutas com maior acidez. Os pét-nats da Vivente dessa safra tem teor baixíssimo de álcool e pouca sensação de doçura, numa bebida muito fresca e elegante.
“Deixamos a natureza trabalhar, intervindo minimamente, mostrando a safra”
Outro produtor que se destaca é o Vinhas do Tempo, que faz os simpáticos Petulante Natural branco e rosé e o In Vitro, que terá uma versão feita com a uva Gamay a ser lançado até o fim do ano. Assim como o Vivente, o Vinhas do Tempo usa tanto as uvas tradicionais para espumante (Chardonnay e Pinot Noir) quanto outras menos comuns — no caso da Vivente, a Cabernet Franc, a Merlot e a Moscato de Alexandria — confirmando a reputação de rebeldia dos produtores naturais.
“O Pet-Nat está no meio do caminho entre a cerveja e o vinho, principalmente pela maneira como é consumido, sem muita cerimônia, geladinho. Ele meio que desconstrói a ideia de um espumante ou vinho tradicional por sua informalidade e simplicidade”, diz Daniel Lopes, da Vinhas do Tempo. “Sempre gostei de colocar os meus em garrafas transparentes, para que a cor recebesse um destaque, chamasse a atenção. O Pet-Nat não busca ser uma bebida complexa, de reflexão; é algo para ser aproveitado sem muita frescura.”
Mais produtores, mais rótulos
No mundo, a vinícola francesa Les Capriades, do Vale do Loire, é um dos expoentes mais elegantes no estilo. No Brasil, é possível encontrar bons espumantes de método ancestral franceses como o Château Jonc Blanc Bulle Rose Pétillant Naturel, 2017; italianos como o Cantina Furlani Pet-nat Bianco Alpino 2018; português, como o do celebrado produtor biodinâmico Vasco Croft e até chileno, como o Gutiflower, do Cacique Maravilla, vendido até em supermercados.
No Brasil, há produção em vinícolas como Faccin, Arte da Vinha, Vanessa Medin, Cantina Mincarone, Cantina Penzo, Biosabores, Mendonça Vinhos, Domínio Vicari, Libertinagem e Casa Viccas, que podem ser encontrados em grande parte na Enoteca Saint VinSaint.