Passeio com o Gigante
Um protagonista controverso lida com o complexo passado, presente e futuro da comunidade judaica em novo romance de Michel Laub
Em meio à atmosfera extremista que sufoca os mais variados temas no mundo, um advogado judeu ligado à causa sionista sobe num palco para proferir um discurso. Assim começa o novo livro de Michel Laub, autor de “Diário da Queda” (Companhia das Letras, 2011) e um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea. E, se no seu livro mais aclamado o escritor lidava com a herança judaica de um ponto de vista íntimo e memorialístico, em “Passeio com o Gigante” (Companhia das Letras, 2024), Laub parte das relações familiares para falar sobre a violência e intolerância que têm marcado os temas do noticiário atual.
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É pela visão do controverso protagonista Davi Rieseman, um ideólogo preconceituoso, sionista e financiador da extrema-direita, que o autor desenvolve um romance repleto de ironia sobre o mundo pós-pandêmico, marcado pela memória dos mortos, por conflitos e um pragmatismo cínico. Sejam as eleições no Brasil, a ascensão evangélica, as guerras no Oriente Médio ou o antissemitismo, enxergamos tudo pelo filtro nem sempre agradável de um personagem amoral, que faz aquilo que está ao alcance de suas mãos por um mínimo gosto de poder.
Contrapondo sempre a memória do Holocausto e sua constante representação na cultura e na arte às atuais convicções militaristas da política israelense, Laub escancara também a recente divisão da comunidade judaica no mundo. E é por meio do discurso no centro dessa narrativa, em que Rieseman faz uma mistura estranha de intolerância e generosidade, que o escritor expõe um choque de visões construído em diferentes vozes, tempos e tons. Apesar da complexidade dessa jornada, não falta também esperança em relação a um futuro no qual um acerto de contas com o passado e a história se mostra inevitável.
“Então o Velho Uri dizia essas coisas, meus amigos. Existem duas imagens no século vinte. O judeu angustiado é o esqueleto dos campos, o boxeador Benny Leonard é o soldado de Israel. Peguem qualquer livro, qualquer filme, e não existe outra alternativa. Kafka e Philip Roth são o esqueleto. Woody Allen é o esqueleto. A Lista de Schindler, em que os judeus são salvos pelo nazista bonzinho, vocês querem propaganda maior do medo de amarrar o sapato num gueto?
“A fundação de Israel é o momento em que o ciclo se rompe. Imaginem o mendigo que recebe uma esmola, porque é isso que significa o gesto da ONU quando cria um Estado judeu. Os povos que passaram dois mil anos perseguindo o mendigo agora dizem que estão ao lado dele, e tudo poderia apenas se repetir, nós agradecendo ao nazista no filme do Spielberg, mas aí é que está. Uma hora a coisa se inverte. Alguém que se acostumou a ser pisado, uma hora o mendigo recebe a esmola e em vez de ficar de joelhos ele compra uma arma.”
Na noite de quatro de novembro de noventa e cinco, Davi Rieseman tocou a campainha da casa do futuro sogro. Àquela altura, apesar de ter ido poucas vezes lá, já dera para contar ao Velho Uri um pouco do próprio passado. Davi nunca falava dos avós, que não conheceu, e pouco falava do pai, ao menos da figura que aparece nas fotografias, o tipo físico, individual, porque isso não era importante na história que gostava de lembrar.
Nas conversas iniciais com o velho, Davi falava sobre a mãe professora. Sobre o sanduíche que a mãe fazia para economizar na merenda do filho. Há detalhes que interessam a qualquer um que veio de família pobre: o recheio de queijo e tomate, a maionese caseira, e enquanto isso os colegas ricos compravam pastel na cantina, refrigerante… Você citou para o velho a marca do refrigerante, Davi? Como citava no Tov. Você era o monitor que dizia para os pupilos: durante a infância toda eu não comprei uma única lata de Coca‐Cola. Um único doce. Um quindim que fosse, um brigadeiro.
Alguém que se acostumou a ser pisado, uma hora o mendigo recebe a esmola e em vez de ficar de joelhos ele compra uma arma
Você disse para o velho que não tinha vergonha de trazer comida de casa. Que a sua mãe ensinou isso e tantas outras coisas. Foi por causa dela que você descobriu que não era pior que os colegas ricos, não tinha que baixar a cabeça para eles, e os colegas ricos aceitaram quem você era como igual, e logo como o líder que você se tornou, só que olhando para alguns detalhes daquele período… Por exemplo, quando pensamos em quem mudou e quem não mudou. Você e os seus colegas ricos, o que vocês eram na infância e o que são hoje, quem se adaptou a quem nisso que você gosta de dizer sobre orgulho, sobre usar o orgulho para mudar uma imagem.
Na noite de quatro de novembro de noventa e cinco, a sua imagem ainda era a de alguém de dezessete anos. Você era só um estudante bolsista do último ano do colégio. A empregada abriu o portão, e você contou os passos que sugeriam o tamanho da casa. Eram quantos no jardim, e entre o hall de entrada e a sala? Lia estava tomando banho, a mãe dela recebeu você, vinte, trinta passos, e do hall já se conseguia ouvir a televisão…
Quarenta passos. Mais dez até olhar para os móveis da sala, os tapetes. O Velho Uri era um pouco surdo, fazia parte da fama dele também, então é natural que diante de alguém que gritava daquele jeito em meio a todos aqueles objetos… O velho xingava o noticiário, a televisão no mesmo volume da voz dele… A mãe de Lia deixou vocês sozinhos ali, os decibéis na sala eram um hospício, mas você conseguiu se distrair do que ouvia e apenas olhou para a tela: ali estava a imagem de um homem algemado. O homem vestia uma camisa branca. Ele também parecia distraído, os olhos fixos no vazio enquanto o resto do mundo gritava, jornalistas, policiais, fotógrafos, políticos.
Nós podemos chamar você assim? Podemos dizer que você é um ativista judeu ligado ao século vinte?
O homem algemado tinha um nome, Yigal Amir. Ele era judeu como você, Davi, inteligente como você, com um certo jeito para falar em público. Ele também tinha mãe professora, também do pré‐primário, e também foi estudante de direito e depois virou um ativista conhecido no fim do século vinte.
Nós podemos chamar você assim? Podemos dizer que você é um ativista judeu ligado ao século vinte, ou é melhor dizer século vinte e um? A mistura dos tempos às vezes nos confunde, é verdade, você aqui no hospital e também de volta àquela noite que marca o fim de um século, ou o início de outro: você na sala do futuro sogro podendo se distrair com todas aquelas coisas bonitas, os bronzes e vidros e madeiras e bambus, mas olhando para a televisão. Em breve você passaria a fazer parte daquele ambiente, e teria as benesses de ganhar a confiança da família numa sequência de conversas que começou quando os olhos de Yigal Amir se levantaram por um instante. Os olhos dele fixos na câmera, que era a tela da televisão do Velho Uri, e para quem Yigal Amir estava se dirigindo? Em quem ele se espelhava, Davi, quem ia entender o crime dele?
“O Velho Uri disse isso até morrer, meus amigos. Ele não queria saber dos delegados da ONU em quarenta e oito, de quem apoiou ou atacou Israel desde a Independência, incluindo os árabes, os russos, os americanos. O velho dizia, importa é o que os judeus fazem por si. O resto são alianças de momento. É só olhar o que aconteceu desde a guerra, anos cinquenta, sessenta, até os acordos de paz nos noventa. Até a morte do Yitzhak Rabin.
Não é todo dia que as câmeras mostram um crime assim, o corpo de um primeiro‐ministro de Israel sendo carregado, o assassino exposto na delegacia
“Eu estava ao lado do velho na noite em que o Yitzhak Rabin foi morto. Nós ficamos parados na frente da tevê, vocês devem lembrar da comoção dos políticos europeus, do Bill Clinton. Porque não é todo dia que as câmeras mostram um crime assim, o corpo de um primeiro‐ministro de Israel sendo carregado, o assassino exposto na delegacia. A loucura nos olhos do assassino, um judeu que não aceita o acordo de paz que vai devolver alguns quilômetros de terras aos árabes, e o noticiário ficava repetindo isso, a loucura do tal Yigal Amir. O tiro de Beretta que o Yigal Amir deu no Rabin. E aí tem opinião à vontade, não tinha ninguém naquela noite que não dissesse que o tiro ia sair pela culatra. O processo de paz seria mantido e até fortalecido, a sociedade de Israel iria repudiar ainda mais a violência dos fanáticos dos dois lados, e eu fiquei ouvindo aquilo ao lado do Velho Uri, mas aí é que está, para ver como as coisas acontecem.
“O Velho Uri era um pouco surdo. A tevê na casa dele era como um caminhão de som, mas naquela noite tinha uma coisa ainda mais alta. Aquela foi a primeira vez que eu vi o meu sogro desse jeito, ele gritava com a tevê, com as paredes, com ele mesmo, até que uma hora ele pegou o controle remoto e apertou o botão de mudo. Ele largou o controle na mesinha, a sala ficou em silêncio, só as imagens ali vibrando, e então ele se virou para mim e perguntou, e você? Não consegue ver também? Será que ninguém vê que esse Rabin era o Judas de Israel?”
- Passeio com o Gigante
- Michel Laub
- Companhia das Letras
- 160 páginas
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