Coluna da Maria Homem: As fantasias em jogo na guerra — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

As fantasias em jogo na guerra: um storytelling ancestral

Em nome de deus e da glória que me foi tirada, devo defender a causa – esse o núcleo que sustenta minha própria identidade

24 de Outubro de 2023

Esta coluna não foi fácil de escrever, pela questão ser muito intrincada e as camadas, muito antigas. O desafio era uma pessoa que não pertence a nenhum dos lados trazer um olhar ao mesmo tempo analítico e humano, no sentido de não recuar diante da complexidade do tema, ao mesmo tempo que escuta as diferenças. Então dei para amigos gentis lerem o texto previamente e a coluna gerou debate antes mesmo de ser publicada. Sou grata a eles por colocar lenha na fogueira da reflexão real e a Gama por permitir que desta vez eu extrapole o espaço. Por que insistimos na guerra? Vejamos algumas fantasias e premissas inconscientes que impedem as quase impossiveis negociaçoes para a paz.

A conexão de um indivíduo a outro no interior de um grupo se dá pelo compartilhamento de uma crença, pela identificação a uma ideia comum e a uma liderança idealizada. Além do funcionamento consciente e pragmático dos coletivos humanos, o grupo se mantém coeso apoiando-se numa fantasia que lhe permita acreditar no seu próprio valor e lutar por uma causa. Precisamos de fantasias para dourar a árida pílula da vida cotidiana e assim construir histórias (douradas também) que nos dêem coragem.

A religião nos ajuda nisso: podemos nos amparar na crença de ser o povo eleito, ou de ter recebido o messias, ou ainda de acolher o novo profeta. Ou de construir um terceiro império, ou uma sociedade igualitária ou mesmo uma sociedade desigual onde ter coisas possa nos fazer bem. Todas são crenças que nos mantêm operando.

Quando as coisas não funcionam tão bem, sonhamos com a restauração da glória do passado, uma das fantasias mais comuns da nossa psique. É o desejo explícito da corrente tradicionalista – Bannon, Dugin, Olavo – que fomenta a névoa de poder de Putin e todos os que se apoiam no projeto de um restauro grandioso, como o da Grande Mãe Rússia. É a mesma linha que garantiu o sucesso da manipulação do ressentimento operada por Trump, com o MAGA, justamente Make America Great Again. Quem nunca sonhou com um passado de sucesso? Como diz um anúncio de storytelling: descubra o que faz diferença para os seus clientes e construa uma história em torno disso.

Essa matriz se alinha, veja só, com o Hamas, Hezbollah, ISIS e todo movimento jihadista: é legítimo e mesmo necessário fazer a guerra para restaurar a grandeza do grande Califado Islâmico, riqueza, ciência e sabedoria que iam do Atlântico ao extremo Oriente. E nada pode atrapalhar esse projeto, como os judeus que estão ali no meio e, portanto, devem ser eliminados. Hoje em Gaza, Londres, New York e São Paulo gritamos: Palestina nada menos que “do rio ao mar”, do rio Jordão ao mar Mediterrâneo, na guerra de imagens e narrativas travada por todos ao redor do globo.

Em nome de deus e da glória que me foi tirada, devo defender a causa – esse o núcleo que sustenta minha própria identidade. Diante da vida subproletarizada que levo, seja pela ocupação de um território, seja pelo sistema econômico excludente, eu luto. Com violência extrema, se preciso for. Luto para restaurar a glória que já tivemos e nos é devida.

Pesquisas mostram o que já sabíamos: os exércitos terroristas no Oriente Médio recrutam jovens homens sem acesso a três coisas básicas do pacote da virilidade: educação, emprego, mulher. São garotos com futuro falido que colam na identificação de supermachos – mesmo que ao preço de se tornar um mártir. Alguma semelhança com o exército do crime no Brasil não é coincidência.

A matriz judaica é diferente dessa, até porque os judeus nunca tiveram um império que cobriu grande parte do planeta.

A luta por um reconhecimento absoluto e excludente do outro é uma patologia da identidade. Aquela que julgávamos já superada neste momento da história

Há quem precise sair das suas terras de origem, por conta de fome, peste ou guerra, e migrar em busca de um lugar onde se possa viver melhor. E precisamos de histórias para nos amparar na dura jornada. Esse é outro topos fundamental na psique e está em inúmeros roteiros, dos westerns aos bíblicos. Deus fala para Abrahão: sai da tua terra e vai pra terra de Canaã, lá terás mais descendentes que os grãos de areia e as estrelas do céu. Uma terra fértil de leite e mel. E não por acaso deus fala dessa terra, nada menos que a encruzilhada de três continentes, berço de impérios e rotas de comércio. Não por acaso um território crucial em disputa até hoje.

Há milênios a cultura judaica sobrevive e, pela diáspora, se espalha pelo mundo. Com o aumento do antissetismo na Europa, desde o final do século 19 se organiza o movimento sionista, que culmina no pós-guerra com a criação conturbada de um país que ainda não encontrou seu berço esplêndido. Ele vive vigilante e armado até os dentes buscando controlar ao máximo os inimigos que o cercam. E se repete o mantra “Massada never more”. E se percorre a Marcha da Vida para jamais permitir novamente o extermínio do seu povo. E então se investe tempo, dinheiro e energia para construir uma das forças de defesa mais inexpugnáveis do planeta.

Dia 7/10 essa fantasia caiu. É uma fratura narcísica visceral: diante de um massacre bárbaro, perco minha paz e minha imagem. E isso dói. Parece irrefreável o impulso de se lançar numa guerra para restaurar minimamente a aura fálica perdida. Pode colocar o Oriente Médio em chamas, pode disparar o preço do barril de petróleo, pode ser global – e fatal. Mas não dá para ser racional e contido. A perda do lugar (real e simbólico) é inadmissível.

Dessa vez, é Israel que faz o cerco a Massada e bloqueia Gaza. É preciso invadir para extirpar o mal. A retaliação é legítima?

Não sabemos como sair da lógica da vingança e da luta fratricida, sempre imaginária, aquela que se apoia no puro símbolo. Os extremos radicais de ambos os lados o disputam com a vida e a morte. Jerusalém é minha. O templo de Salomão é do meu povo; não, é meu, mesquita sagrada Al-Aqsa. Há uma pedra no meio do caminho: é a pedra sobre a qual se fez o sacrifício de Isaac; não, é onde Maomé subiu aos céus montado em seu cavalo alado, Buraq.

A luta por um reconhecimento absoluto e excludente do outro é uma patologia da identidade. Aquela que julgávamos já superada neste momento da história. A missão mais excitante da franja radical é exterminar o outro. Vamos eliminar Israel. Ou, mais que isso, todos os judeus do mundo. E o outro lado, na toada gêmea: precisamos colonizar os territórios palestinos em nome do que interpretamos do Livro: o messias só virá na grande Israel, a terra sem os impuros.

Esse é o círculo viciante de final trágico em que nos enredamos. Cada lado afirma sobre o outro: são uns animais. E por isso devo destruí-lo barbaramente (sendo de fato o animal que o outro me acusa ser). Desumanizo o outro e me encastelo na minha superioridade moral, sem me dar conta da minha própria fratura. Quando começaremos a ter Letramento Emocional nas escolas?

A intrincada teia dos afetos e fantasias envolve também desejos de poder e dinheiro (não menos atrelados a fantasias basais). E os grandes entram no conflito pois, como sabemos, o jogo é sempre macro. Além dos vizinhos árabes e iranianos, os americanos ‘defendem seus interesses’ e entram em mais uma guerra, os russos trazem seus mísseis supersônicos e os chineses testam os limites em que podem colocar seus navios. Esse é o grande xadrez da disputa de potência, imagem e território que o novo mundo pós crises de 2008 e pandemia redesenha diante dos nossos olhos.

Pergunta: são somente meninos poderosos botando o pau na mesa para intimidar o outro e dessa forma, pelas já fatigadas vias tortas do jogo “masculino”, forçar a paz e a mesa da renegociação? Ou, começando assim, eles se enredarão a tal ponto que não restará opção a não ser atirar a primeira pedra, quiçá atômica?

Aqui esbarramos em outra fantasia: a da manutenção do ideal de virilidade pela violência. Enquanto isso, mulheres e crianças, velhos e velhas são sequestrados, estuprados e mortos. Até por não colocar um véu na cabeça do jeito certo: uma adolescente foi morta no Irã, repare, pela polícia moral.

Retomando. Hamas, Irã, vetores de Israel e das “potências ocidentais” preservam algo da lógica radical de dominação. Estamos vendo os últimos e desesperados uivos do masculinismo de um sistema patriarcal em declínio ou o nascimento de um futuro que nasce mais bruto em suas formas de coerção, agora com armas mais possantes e inteligências mais domináveis artificialmente?

Chegamos a um estágio da civilização no qual conseguimos construir o conceito de “crimes de guerra”. Quem sabe algum dia chegaremos a pactuar que a própria guerra é sempre um crime.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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