Quem comemora mortes? — Gama Revista

Artigo

Quem comemora mortes?

Se não consegue perceber a complexidade do assunto e comemora a morte de civis israelenses, crianças e jovens, ao fazer isso desumaniza os judeus

Lia Vainer Schucman* 13 de Outubro de 2023

É muito triste que eu tenha que escrever isto hoje, mas diante de tanta desumanização do outro me senti compelida. Foi, sem dúvida, minha consciência judia, ou minha judaicidade que me fez entrar na luta antirracista. Não foi apesar de ser judia, mas foi por ser judia que a luta antirracista se tornou central em minha vida.

Dito isto, também reafirmo que sou contra as ocupações do Estado de Israel, sou contra o governo de Benjamin Netanyahu e, ao mesmo tempo, obviamente, a favor da existência do Estado de Israel e autodeterminação de um povo que teve 2 mil anos de perseguição no ocidente, ainda que a forma como se conformou esse Estado em nada representa os meus valores democráticos mais profundos. Também reafirmo o desequilíbrio de forças que está colocado nesta guerra e o quanto esse Estado, fundado em violência, cometeu barbáries e atrocidades de várias naturezas. A distância que estabeleço, assim como muitos outros judeus, com esses valores, no entanto, não me permite comemorar outras atrocidades e a morte.

Se você é um destes que comemorou faça uma reflexão profunda: o quanto eu considero os judeus gente igual a mim?

Por isso, me dirijo aos vários colegas que tenho visto comemorar a morte de civis, chamando ataques a jovens e crianças de descolonização. Colegas de origem europeia, descendentes de colonizadores, que vivem em terras indígenas, nomeando de descolonização um ataque apoiado por uma teocracia de direita. Hoje, mães palestinas e mães judias choram. Choram também todos os israelenses, muito deles (não são poucos) que estavam nas praças até semana passada lutando contra o atual governo, que nasceram naquele país e lutam por paz.

Choram também os alienados, os informados, choram os de direita, os de esquerda porque israelenses são heterogêneos, e portanto são gente, e gente tem de todo tipo. Também choram os vários palestinos, a começar pelos de Gaza, oprimidos pela ditadura do Hamas, que persegue, mata, abusa de mulheres e de crianças do seu próprio povo. Choram os palestinos traídos pelos governos árabes, esmagados por Israel, choram muitas mães, muitas. Se você não consegue perceber a complexidade do assunto e realmente comemora a morte de civis israelenses, crianças e jovens, ao fazer isso desumaniza os judeus e o nome disto é antissemitismo. Há também aqueles que preferem não perceber que um ataque destes tira muitas vidas palestinas, escala violência, ódio e a transmissão de vinganças por gerações.

Se você é um destes que comemorou faça uma reflexão profunda: o quanto eu considero os judeus gente igual a mim? Se a resposta for nada, veja e reflita sobre seu antissemitismo. Solidariedade a todos os israelenses e palestinos que hoje choram a vida da família e dos amigos. Palestina Livre, dois Estados para dois povos, todas estas vidas importam.

*Texto publicado no instagram (@liavainer) em 9 de outubro

Lia Vainer Schucman Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, psicóloga e pesquisadora de relações étnico-raciais. É autora, entre outros, de “Famílias Inter-Raciais: tensões entre cor e amor” (Fósforo Editora, 2023)