Flecha
Em livro de narrativas curtíssimas, a portuguesa Matilde Campilho se aventura na prosa para revelar as pequenas surpresas que guarda o cotidiano
Um homem numa constante luta contra um mosquito incômodo, uma menina que entra numa igreja trajando um vestido verde, uma fila de formigas carregando os alimentos do dia até o buraco de seu formigueiro. Todas essas ações absolutamente comuns e cotidianas se tornam histórias nas páginas de “Flecha” (Editora 34, 2022), da escritora portuguesa Matilde Campilho. Ao todo, o livro reúne centenas de textos curtos da autora – às vezes curtíssimos –, entre crônicas de animais, objetos e pessoas, reais ou inventados.
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Seja em uma única frase ou parágrafo, ou em até duas páginas, ela narra histórias que nasceram de outras histórias, narrativas fictícias ou mesmo escutadas ao acaso. Esta é a primeira incursão oficial da autora pela escrita de prosa, já que seu livro de estreia, “Jóquei” (Editora 34, 2015), lhe deu fama imediata como uma das mais talentosas poetas da atualidade.
O que não mudou entre um livro e outro foi a atenção dada pela autora ao entorno e aos pequenos gestos do dia a dia. “Um conjunto de histórias independentes, em raros instantes ligadas entre si por correlações, e sempre conectadas pela passagem da flecha que as atravessa.” Assim Campilho descreve o caminho que percorre o leitor pelas páginas e narrativas da obra, que inicialmente surgem simples, quase banais, mas que oferecem revelações sutis, do tipo que o dia a dia ocasionalmente guarda.
De longe o apicultor observa o comportamento de uma abelha. Tem dificuldade em fixá-la num ponto. Pela forma frenética como voa ele percebe logo que aquela é uma abelha bastante nova, ainda não fecundada. O apicultor sorri. Achou uma rainha jovem no meio da confusão da colmeia. Aproxima-se, sempre com os olhos fixos nela para não a perder. Se dúvidas tivesse, de perto confirma logo a suspeita: tem o tamanho intermédio entre uma operária e uma rainha madura, e o corpo já pronto para o duelo. O apicultor retira-se, deixando a abelha entregue à própria força e ferrão, torcendo para que ela sobreviva à luta e para que daí a um tempo chegue a ser a mestra, a fértil, a dona do aguilhão contínuo, a mãe que um dia ensinará as outras abelhas a contar.
Sergei perguntava-se muitas vezes onde raio dormiriam os mosquitos durante o dia. Passara a noite inteira numa luta titânica com um deles. Como é costume, o mosquito vencera o homem, e pelo ponto do ouvido. Esta manhã, enquanto mexe o café e espera o pão saltar quente da torradeira, ele não procura mais nada a não ser o inseto. E apesar do sono que já parece vencê-lo mesmo antes de o dia automático começar, Sergei afinal dá graças por ter saído derrotado da batalha noturna. É que o homem tem o costume de passar a vida em revisão todas as manhãs. E hoje, por causa da minuciosa busca por aquele mínimo animal alado entre as prateleiras da cozinha, não pensa nem na sua ex-mulher, nem no pai morto, nem nas prestações ao banco, e muito menos na terrível suspeita que sobre ele paira em tantos outros dias, aquela que lhe sussurra que a alegria (a verdadeira, a aniquiladora da derrota) ainda está por chegar.
E hoje, por causa da minuciosa busca por aquele mínimo animal alado entre as prateleiras da cozinha, não pensa nem na sua ex-mulher, nem no pai morto
Iluminado apenas por uma lâmpada azul daquelas que atraem moscas e depois as queimam vivas, um homem amassa o pão de madrugada. Um rapazinho bêbado toca-lhe à porta pedindo por favor dois bolos quentes. O homem, limpando o suor da própria testa e enfarinhando sem querer o pescoço nu, faz silêncio e não abre.
Tem aquela coisa no meio dos dentes. Uma falha. Um espaço. É assim desde que lhe nasceu a dentição definitiva. Quando era miúdo a sua boca era como todas as outras bocas, tinha os dentes de leite mais ou menos no lugar, muito brancos e absolutamente inofensivos. Banais, mesmo. Quando queria brincar ele brincava com as coisas habituais. Usava as mãos para simular bichos projetados a contraluz numa parede, usava os pés para dar toques na bola, usava um ombro para provocar o ombro do seu irmão mais velho. Mas a partir do momento em que os dentes novos lhe começaram a crescer, as coisas mudaram de figura. Entre um incisivo central e outro, um espaço. Diastema, disse-lhe o dentista, mais ou menos fácil de corrigir. A sua mãe levou as mãos à cabeça por conta do preço da correção, mas ele logo pegou nelas e simulou com isso um bicho a quatro mãos. Era um cavalo. Os cavalos, descobriu ele mais tarde, por serem mamíferos também se lhes separam os dentes de vez em quando. Hoje é adulto e não inventa mais bichos na parede. Deixou de ter tempo para o futebol porque acaba o trabalho às oito horas, nem sequer dá toques de ombro no mano porque o mano se mudou para a Suíça. Mas ele ainda sabe brincar. São dez da noite agora, já fez o próprio jantar e até já o comeu, e está sozinho na casa de banho a lançar esguichos de água na frente do espelho. É muito fácil: respira fundo, enche a boca com o líquido que tiver à mão, abre os lábios de dentes cerrados, e cospe. Hoje o que ele projeta é só água e pasta de dentes, mas ainda assim o esguicho é perfeitinho. Depois do disparo, ri. Ri como se tivesse nove anos, e ri como se fosse — talvez seja mesmo — o homem mais bonito do seu bairro.
Ri como se tivesse nove anos, e ri como se fosse — talvez seja mesmo — o homem mais bonito do seu bairro
Uma labareda de fogo passa entre uma metade e outra do corpo de um carneiro.
Uma menina de sete anos ajeita o seu chapéu verde antes de entrar na igreja, a mesma onde foram batizados os irmãos. Reza ao deus das flores e ao deus dos caramelos, e sem saber ainda reza também ao deus dos pigmentos.
Alfredito, ao vestir-se de manhã antes de sair à pressa para o liceu, fica com a cabeça presa na gola da blusa. Enfurecido com a lã e com o teatro gestual com que a sua mãe o iniciou nas manobras do vestuário — cabeça primeiro, braços depois — chora. A água contra a malha só piora as coisas, e subitamente ele é um rapaz aprisionado na própria roupa, no próprio corpo, no próprio quarto. Quanto mais gesticula mais se perde no espaço. Até que, através de um furinho azulado na blusa, consegue ver o seu reflexo no espelho. Repara que, assim imóvel e coberto de fibra, é a imagem cuspida da sua mãe. Perdoa-lhe aí mesmo as lições, agradece até por elas, e para de chorar. Abre os dois braços em lentidão e deixa que a blusa lhe resvale naturalmente pelo torso. Põe a mochila nas costas e dirige-se para a porta de casa, que tranca na saída, sem se despedir de ninguém porque há mais de dois anos que vive ali sozinho.
Enfurecido com a lã e com o teatro gestual com que a sua mãe o iniciou nas manobras do vestuário — cabeça primeiro, braços depois — chora
- Flecha
- Matilde Campilho
- Editora 34
- 352 páginas
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