Trecho de Livro: Especulações Cinematográficas, de Tarantino — Gama Revista

Trecho de livro

Especulações Cinematográficas

Quentin Tarantino desfila pontos de vista polêmicos sobre alguns dos filmes que mais o marcaram em livro que explora sua formação cinematográfica

Leonardo Neiva 22 de Dezembro de 2023

Tão controverso quanto admirado por amantes da sétima arte no mundo todo, Quentin Tarantino talvez seja o cineasta que mais demonstra seu absoluto amor pelo cinema não só em falas e entrevistas, mas também em todo diálogo e personagem… na verdade, em cada frame de seus filmes. Portanto, chega a ser surpreendente que um livro como “Especulações Cinematográficas” (Intrínseca, 2023), com tradução de André Czarnobai, tenha demorado tanto tempo para sair da mente de seu autor.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
Máscara de Látex
A nova onda do cinema de horror brasileiro
Pageboy

Dono de um conhecimento vasto, eclético e invejável sobre a produção cinematográfica mundial, Tarantino revela na obra que o interesse por esse universo surgiu muito cedo. Mais especificamente, na infância vivida nos anos 1960 e 1970, quando os pais o levavam para assistir a filmes nada adequados para sua idade. Era o início do movimento que ficou conhecido como Nova Hollywood, um dos períodos de maior liberdade e criatividade na indústria americana, que catapultou para a glória cineastas hoje renomados, como Scorsese, Spielberg, De Palma e Coppola, entre muitos outros.

Como não poderia deixar de ser, abundam pontos de vista polêmicos sobre filmes clássicos, sobrando até para a cena final de “Butch Cassidy” (1969). Mas Tarantino também não se furta a definir longas a exemplo de “Taxi Driver” (1976) como “uma audaciosa obra-prima” ou a fazer relações surpreendentes entre a própria obra e a de diretores como Almodóvar, com quem compartilha uma atenção especial para a relação entre sexualidade e violência. Além de retratar períodos centrais da história norte-americana e as mudanças da sociedade refletidas nas telas de cinema ao longo das décadas, “Especulações Cinematográficas” é uma rara chave para a formação de um dos maiores cineastas do nosso tempo, destrancando também olhares e interpretações diversos para sua obra.


Meus jovens pais iam muito ao cinema naquela época, e geralmente me levavam junto. Não tenho dúvida de que eles poderiam encontrar alguém para ficar cuidando de mim (minha avó Dorothy costumava estar disponível), mas, em vez disso, permitiam que eu os acompanhasse. Em parte, porém, só faziam isso porque eu sabia quando tinha que ficar de boca fechada.

Durante o dia, eu tinha permissão para ser um moleque normal (irritante). Podia fazer perguntas idiotas e ser infantil e egoísta, como a maioria das crianças. No entanto, quando eles me levavam para sair à noite e íamos a um bom restaurante, a um bar (o que faziam às vezes, porque Curt tocava piano nos bares), a uma casa noturna (o que também acontecia de vez em quando), ao cinema ou até mesmo a uma noite de casais com amigos, eu sabia que era a hora dos adultos. E, se eu queria ter permissão para acompanhá-los na hora dos adultos, era melhor ficar bem quietinho. O que, basicamente, significava não fazer perguntas idiotas nem achar que aquele programa era para mim (porque não era). Os adultos estavam ali para conversar, rir e fazer piadas. Minha tarefa era ficar de bico fechado e não interromper o tempo todo com criancices. Eu sabia que ninguém estava nem aí para qualquer coisa que eu tivesse a dizer sobre o filme a que tínhamos assistido (a menos que fosse algo muito fofinho), ou sobre a própria noite. Não seria repreendido se quebrasse alguma dessas regras, mas era incentivado a agir de forma madura e bem-comportada. Porque, se agisse como um pestinha, acabaria ficando em casa, com uma babá, das próximas vezes que saíssem para se divertir. E eu não queria ficar em casa! Queria sair com eles! Queria participar da hora dos adultos!

De certa maneira, eu era uma versão infantil do homem-urso, capaz de observar adultos durante a noite no hábitat deles. Era de meu total interesse manter a boca bem fechada e os olhos e os ouvidos bem abertos.

É isto que os adultos fazem quando não há crianças por perto.

É isto que os adultos fazem para socializar.

É isto que conversam quando estão entre eles.

É isto que gostam de fazer.

É isto que acham engraçado.

Não sei se esta era a intenção ou não da minha mãe, mas eles estavam me ensinando sobre como os adultos socializavam uns com os outros.

Quando meus pais me levavam ao cinema, minha tarefa era ficar sentadinho, assistindo ao filme, mesmo que não gostasse dele.

E alguns daqueles filmes de adulto eram foda pra caralho!

M.A.S.H., a Trilogia dos dólares, O desafio das águias, O Poderoso Chefão, Perseguidor implacável, Operação França, O corujão e a gatinha, Bullitt. Outros, para um menino de 8 ou 9 anos de idade, eram chatos de doer. Ânsia de amar? The Fox? Isadora? Domingo maldito? Klute: O passado condena? Paixão de primavera? O segredo íntimo de Lola? Quando nem um amante resolve?

Mas eu sabia que, enquanto eles assistiam ao filme, ninguém dava a mínima se eu estava ou não me divertindo.

Tenho certeza de que, no começo, em algum momento, devo ter dito algo como “Ah, mãe, isso é muito chato”. E ela, com certeza, respondeu: “Olha, Quentin, se você vai ficar enchendo o saco toda vez que a gente te levar para sair à noite, da próxima vez vai ficar em casa. Se preferir ficar em casa vendo TV enquanto eu e seu pai saímos para nos divertir, tudo bem, é isso que nós vamos fazer da próxima vez. Você decide.”

Bom, eu decidi. Queria sair com eles.

A primeira regra era: não encha o saco. A segunda regra, durante o filme, era: não faça perguntas idiotas

E a primeira regra era: não encha o saco.

A segunda regra, durante o filme, era: não faça perguntas idiotas.

Talvez uma ou outra, bem no comecinho do filme, mas depois disso eu estava por minha conta. Qualquer outra pergunta teria que esperar até o final. E, na maior parte do tempo, eu conseguia seguir essa regra. No entanto, houve algumas exceções. Minha mãe gostava de contar aos amigos sobre a vez que me levaram para ver Ânsia de amar. Art Garfunkel estava tentando convencer Candice Bergen a transar com ele. E o diálogo era algo na linha: Vamos lá, vamos fazer isso? Eu não quero. Mas você prometeu. Mas eu não quero. Mas está todo mundo fazendo.

E, pelo jeito, com minha voz fininha de 9 anos de idade, perguntei, bem alto:

— O que eles querem fazer, mãe?

O que, de acordo com ela, fez a sala de cinema lotada de adultos cair na gargalhada.

Além disso, me lembro de ter achado a imagem congelada no final emblemático de Butch Cassidy muito obscura.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Eles morreram — disse minha mãe.

— Eles morreram? — Eu levei um susto.

— Sim, Quentin, eles morreram — garantiu ela.

— Como é que você sabe? — insisti, muito perspicaz.

— Porque é isso que a imagem congelada sugere — respondeu ela, paciente.

Mas não me dei por satisfeito.

— Como é que você sabe?

— Eu sei e pronto. — Foi a resposta, que ainda não me satisfez.

— Por que eles não mostraram? — questionei, quase indignado.

Então, claramente perdendo a paciência, minha mãe explodiu:

— Porque não quiseram!

Contrariado, resmunguei baixinho:

— Eles deviam ter mostrado.

E, embora saiba hoje o quanto essa imagem se tornou emblemática, ainda acho que eles deviam ter mostrado.

Seja como for, eu geralmente tinha bom senso o suficiente para saber que, enquanto minha mãe e meu pai estavam assistindo ao filme, não era hora de bombardeá-los com perguntas. Eu sabia que estava vendo filmes para adultos e não entenderia algumas partes, mas entender a relação lésbica entre Sandy Dennis e Anne Heywood em The Fox não era importante para mim. O importante era meus pais se divertirem e eu estar junto com eles quando saíam à noite. Também sabia que a hora de fazer perguntas era no carro, voltando para casa, depois que o filme tivesse acabado.

Quando uma criança lê um livro adulto, sempre aparecem palavras que ela não entende. Ainda assim, dependendo do contexto e do parágrafo em que essas palavras aparecem, ela muitas vezes consegue depreender do que se trata. O mesmo acontece quando uma criança assiste a um filme adulto.

Obviamente, certas coisas que eu não entendia, meus pais não queriam que eu entendesse. Quanto a outras, porém, ainda que eu não soubesse exatamente o que significavam, captava a essência.

Era emocionante pra caralho ser a única criança num cinema abarrotado de adultos e ouvir todo mundo gargalhando de alguma coisa que eu sabia que, provavelmente, era imprópria

Sobretudo as piadas que faziam aquela sala cheia de adultos cair no riso. Era emocionante pra caralho ser a única criança num cinema abarrotado de adultos e ouvir todo mundo gargalhando de alguma coisa que eu sabia que, provavelmente, era imprópria. E às vezes, mesmo quando não entendia totalmente, eu sacava. Assim, embora não soubesse o que era uma camisinha, pela maneira como a plateia riu, acabei mais ou menos entendendo do que se tratava durante a cena entre Hermie e a farmacêutica em Houve uma vez um verão. A mesma coisa com a maioria das piadas em O corujão e a gatinha. Ri junto com a plateia adulta do começo ao fim desse filme (a parte do “Olha a bomba!” fez o cinema inteiro vir abaixo).

Entretanto, em relação aos filmes que acabei de citar, havia ainda um outro elemento na reação dos adultos que eu não percebia na época, mas do qual me dou conta agora. Se você mostrar a uma criança um filme com um cara falando palavrões de uma maneira engraçada, ou com uma piada sobre cocô ou peido, geralmente a criança vai rir. E, quando se trata de crianças um pouco mais velhas, se você mostrar uma piada sobre sexo, elas vão rir também — mas o tipo de risada que dão é uma risada travessa. Elas sabem que aquilo é inapropriado, e que talvez não devessem estar ouvindo ou vendo tal coisa. E a risada revela que elas se sentem um pouco travessas ao fazer parte daquilo.

Bom, em 1970 e 1971 era assim que as plateias adultas respondiam ao humor sexual em filmes como O corujão e a gatinha, Como livrar-me de mamãe, M.A.S.H., Houve uma vez um verão, Garotas lindas aos montes e Bob, Carol, Ted e Alice. Ou à cena dos brownies de maconha em O abilolado endoidou. Ou à cena em M.A.S.H. em que os jogadores de futebol americano fumam um baseado sentados no banco de reservas. Ou a cenas com uma certa pitada de humor que um ou dois anos antes seria inimaginável. Na cena que nos apresenta ao personagem-título de Joe, ou vendo Popeye Doyle no bar em Operação França, a risada dos adultos tinha uma essência travessa semelhante. O que, olhando em retrospecto, faz sentido. Porque aqueles adultos não estavam acostumados a ver esse tipo de material. Eram os primeiros anos da Nova Hollywood. Aquelas plateias tinham crescido assistindo a filmes dos anos 1950 e 1960. Estavam acostumadas a decotes, insinuações, frases de duplo sentido e trocadilhos (até 1968, o nome da personagem de Honor Blackman em 007 contra Goldfinger, Pussy Galore [xoxotas a rodo], tinha sido a piada de sexo mais explícita proferida num filme comercial).

Assim, de maneira estranha, os adultos e eu estávamos mais ou menos na mesma situação. Mas risadinhas travessas não eram a única coisa que eu ouvia nas plateias adultas. Os espectadores também riam o tempo todo dos personagens gays. E, sim, esses personagens com frequência eram utilizados como alívio cômico (007: Os diamantes são eternos e Corrida contra o destino).

Mas nem sempre.

Às vezes, isso trazia à tona um lado muito feio das plateias.

Em 1971, mesmo ano em que foram lançados 007: Os diamantes são eternos e Corrida contra o destino, fui ao cinema com meus pais para ver Perseguidor implacável.

Na tela, Scorpio (Andy Robinson), personagem inspirado no Assassino do Zodíaco, está na cobertura de um prédio em São Francisco segurando um poderoso rifle de precisão apontado para o parque da cidade. Na mira telescópica do rifle vemos um homem negro, gay, usando um exuberante poncho roxo. O que é memorável nesse quadro é a cena que vemos se desenrolar pela mira telescópica de Scorpio. Poncho Roxo está no meio de um encontro com um caubói meio hippie de bigode preto extremamente parecido com o personagem de Dennis Hopper em Sem destino. No filme, dá para se ter uma ideia bem clara do que está acontecendo. Eles não parecem um casal; estão, definitivamente, num encontro. O caubói acaba de comprar uma casquinha de sorvete de baunilha para Poncho Roxo. E, mesmo sem qualquer contato físico entre os dois e com a ação se desenrolando de maneira silenciosa, dá para ver que o encontro está indo muito bem.

Fica bastante nítido que Poncho Roxo está se divertindo e o caubói à la Dennis Hopper está vidrado nele. Essa cena silenciosa talvez seja uma das encenações menos preconceituosas de uma paquera gay masculina apresentada num filme de estúdio de Hollywood naquela época.

Como eu sabia que aquele sujeito de poncho roxo era gay? Porque pelo menos cinco espectadores disseram, gargalhando ruidosamente: “É uma bicha!”

Ainda assim, ao mesmo tempo, observamos toda essa cena através da mira telescópica do rifle de Scorpio, com as linhas apontadas diretamente para Poncho Roxo. Como eu sabia, sendo tão novinho, que aquele sujeito de poncho roxo era gay? Porque pelo menos cinco espectadores disseram, gargalhando ruidosamente: “É uma bicha!” Meu padrasto, Curt, inclusive. E eles riam dos trejeitos do personagem, ainda que a única visão que tivessem dele fosse a da mira do rifle de um cruel assassino, acompanhada pela sinistra trilha sonora de Lalo Schifrin. Eu, porém, senti outra coisa naquele cinema cheio de adultos. Ao contrário das demais vítimas no filme, senti que aquela plateia de adultos não estava lá muito preocupada com a integridade de Poncho Roxo. Na verdade, eu diria que alguns espectadores torciam para que Scorpio atirasse nele.

Produto

  • Especulações Cinematográficas
  • Quentin Tarantino (trad. André Czarnobai)
  • Intrínseca
  • 400 páginas

Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação