Karim Aïnouz documenta a Argélia em retrato tão íntimo quanto político — Gama Revista
Conversas

Karim Aïnouz documenta a Argélia em retrato tão íntimo quanto político

Em busca da própria identidade, cineasta cearense faz uma carta à mãe em novo filme, “Marinheiro das Montanhas”, sobre a descoberta da terra paterna, na África, num país de outros “Karims” e histórias pouco conhecidas

Ana Elisa Faria 05 de Outubro de 2023
Bob Wolfenson

Karim Aïnouz anda pela região de Cabília, na Argélia, e encontra Karim Aïnouz, um simpático argelino homônimo nascido no mesmo ano do cineasta cearense, 1966. No cemitério de um vilarejo, túmulos com a inscrição do sobrenome — tão incomum aos brasileiros —, estão por todos os lados. Situações como essas foram vividas aos montes pelo diretor, que viajou ao país do norte africano em 2019 em busca das origens paternas.

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Dessa viagem de descobertas, da própria identidade e da história de um povo e uma terra, Aïnouz deu vida a dois documentários que estão em cartaz no Brasil, “Marinheiro das Montanhas”, em que narra, numa carta direcionada à mãe, Iracema, as impressões sobre a Argélia, e “Nardjes A.”, obra que acompanha um dia de fortes protestos em Argel, sob a perspectiva da ativista Nardjes Asli.

Fiquei com vontade de dividir essa experiência um tanto transformadora para mim. Não só no sentido pessoal, íntimo, mas no sentido político de descobrir a história de um país tão fascinante

Em conversa com a Gama, Aïnouz fala sobre a produção dos dois trabalhos, a experiência de descobrir a Argélia e comenta sobre os próximos filmes.

  • G |Como surgiu a ideia de fazer esses filmes na Argélia?

    Karim Aïnouz |

    Eu sempre quis fazer essa viagem e, evidentemente, conhecer onde o meu pai nasceu, de onde veio a minha família paterna, de argelinos que migraram para a França na década de 1970. Meu pai vive entre Argel e Paris, grande parte da família hoje está na França, mas eu sempre quis ir para a Argélia, também por uma curiosidade de entender de onde vem esse meu nome, que no Brasil nunca ninguém conseguia dizer. Um nome que na França é super discriminado por ser árabe. Sempre tive essa curiosidade, mas nunca tinha dado certo  ir. Na década de 1990 até o início dos anos 2000, por exemplo, o país estava em guerra civil, e não dava para para ir. Então, a ideia da viagem veio antes do filme, até que pensei: “Gente, eu faço cinema, trabalho com imagem, adoro contar histórias. Será que isso aqui pode dar um bom filme?”. Não a minha viagem para a Argélia, mas a descoberta daquele país que a gente conhece pouco, mas que tem uma história tão especial.

    A Revolução Argelina foi um negócio tão gigante na década de 1960, um pouco como a revolução cubana. Eu achava que aquilo daria um filme e apresentei o projeto. Deu certo, obtive um pequeno financiamento para fazer um filme de viagem. Mas ainda não era o “Marinheiro” que a gente tem hoje, era um documentário de viagem —eu ia começar em Marselha, fazer uma travessia, descobrir o que era a Argélia, até chegar ao vilarejo do meu pai. No decorrer da manufatura do filme, durante a filmagem e na pós-produção, fiquei com a sensação de que eu tinha que contar algo além da história de uma pessoa descobrindo a própria casa aos 50 anos. O “Marinheiro” veio um pouco a partir disso. Então, a gente tinha as imagens que filmamos durante a viagem, a maior parte delas eu filmei, inclusive, e fiquei com uma vontade grande de poder dividir essa experiência, que é uma experiência um tanto transformadora para mim. Não só no sentido pessoal, íntimo, mas no sentido político de descobrir a história de um país tão fascinante.

Marinheiro das Montanhas/Divulgação
  • G |Sobre o processo criativo para chegar ao “Marinheiro” que está hoje nos cinemas, o que você diz?

    Karim Aïnouz |

    Então, depois de tudo isso, escolhi um fio condutor para contar essa história e dividi-la com o maior número de pessoas possível. Assim, entendi que eu precisaria de uma narração e, mais tarde, que essa narração tinha que ser minha e que eu deveria contar aquilo tudo para alguém, não para um público genérico, para não virar um documentário institucional sobre a Argélia. Na montagem, veio a ideia da narração ser uma carta para a minha mãe. A escritura desse filme se passou na montagem. Eu não tinha um roteiro prévio, ele foi acontecendo. Foi um ato de fé fazer esse filme. Precisei de muita confiança que, acho, que nunca teria tido se ele fosse o meu primeiro filme.

  • G |E de um filme, nasceram dois?

    KA |

    Então, o “Nardjes A.” surgiu assim: cheguei lá na Argélia atrás dessa revolução impressionante que aconteceu em 1962, olhando para o passado, lembrando que a minha família teve uma participação ativa no que aconteceu há décadas. E, duas semanas depois que eu estava em Argel, um garoto que estava trabalhando no filme me ligou dizendo que, no dia seguinte, um monte de gente ia às ruas para protestar contra o presidente [Abdelaziz Bouteflika, na época] que queria se candidatar, em 2019, ao quinto mandato. E foi uma loucura o que aconteceu, a cidade ficou tomada de gente, sobretudo de gente jovem. Pessoas cantando umas canções super cheias de energia. E eu estava lá com a cabeça aqui, no Brasil, pensando no buraco que a gente tinha se metido [com a recente, à época, eleição de Jair Bolsonaro]. A gente tinha acabado de adentrar numa época tenebrosa, enquanto lá, eles estavam passando por um momento luminoso e, por isso, decidi filmar. Não sabia se aquilo iria entrar no “Marinheiro” ou se viraria outra coisa. Inicialmente, não existia o plano de fazer um filme. Até que eu conheci a Nardjes Asli, uma atriz e ativista, filha de ex-guerrilheiros que combateram na Guerra de Independência Argelina, e ela topou ser filmada durante um dia. Tive a intuição de que ali havia um documento importante que eu não sabia se ia ser um longa, um negócio de dez minutos. E foi muito bonito. Aquele dia, especificamente, era um 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Depois, guardei aquele material, comecei a montar o “Marinheiro” e pensei que aquele material daria outro filme e montei, muito com uma vontade de contar também para o mundo — e o filme estreou no Festival de Berlim — algo absolutamente importante que estava acontecendo e que a mídia hegemônica não cobria. Me veio uma questão de urgência, de contar uma história sobre algo bonito e importante que estava acontecendo, num lugar para o qual quase ninguém olha.

  • G |Você enfrentou alguma dificuldade para filmar na Argélia? Em “Marinheiro das Montanhas”, as pessoas parecem estar desconfiadas, receosas em olhar para a câmera.

    KA |

    Sim, muitas. A Argélia é um país bastante fechado, foi bem complicado filmar. É um país que não tem cartão de crédito, por exemplo, eles vivem em outro tempo. Era difícil conseguir autorização para filmar. Tanto que eu filmei muito com o celular. Logo que você abre a câmera e coloca em um tripé, há uma desconfiança gigante das pessoas, elas acham que é a mídia francesa que está ali querendo falar mal da Argélia. Existe uma desconfiança sobre qual imagem você vai pintar do país. Então, em cada lugar que a gente ia, a cada dia de filmagem, antes de abrir a câmera, passávamos na polícia para pegar uma autorização por escrito. Eu falava com o delegado, contava a sinopse do filme, dizia que estava ali para conhecer e mostrar a terra do meu pai. Se a gente ia a um bairro que fazia interseção com outro bairro, precisávamos da autorização de duas delegacias. Também aconteceu uma coisa engraçada. Um dia, eu estava filmando em uma praça em Argel e avistei um cara que eu já tinha visto várias vezes rondando a equipe. Ele ficava andando no nosso entorno, até que, em determinado momento, ele veio e disse que era da polícia e estava nos seguindo para conferir se a gente estava fazendo tudo certo. Depois de um tempo, ele até me convidou para comer um cuscuz na casa dele. Eles perceberam que aquilo ali não era algo perigoso, que não era algo contra a imagem do país, era, de fato, um filme de descoberta pessoal. E aí, no final, foi muito mais simples. E teve uma outra coisa que foi muito bacana. Apesar das complicações e de uma certa hostilidade à presença de estrangeiros no país, no momento em que eles entendiam que eu não era completamente estrangeiro, foi muito bonito, e diferente porque, geralmente, no documentário, para filmar alguém, você tem que de fato conhecer aquela pessoa muito bem, ter uma relação de confiança com ela. E a relação de confiança ali se deu muito rápido na hora em que se entendia que eu também fazia parte deles.

Marinheiro das Montanhas/Divulgação
  • G |Quantas pessoas acompanharam você nas filmagens?

    Karim Aïnouz |

    De início, fui sozinho, com um produtor local, e, além dele, uma espécie de fixer [profissional, comum no meio jornalístico, que conhece os costumes de um determinado local e acompanha uma equipe de reportagem ou um cineasta, por exemplo, durante os trabalhos naquela localidade específica] me acompanhou nas primeiras três semanas. Ele fazia algumas traduções porque nem todo mundo falava francês, e ele fala berbere e árabe. Tinha também um motorista. Fiquei seis semanas filmando sozinho, vendo Argel, e depois veio o fotógrafo, que já tinha feito um documentário comigo anteriormente. Tínhamos uma câmera de vídeo, sem equipe de som, nada além disso. E, no total, foram dois meses de filmagem.

  • G |Como foi a experiência de encontrar o seu “duplo” na Argélia?

    KA |

    Olha, foi muito estranho. Porque foi uma coisa completamente ao acaso. Eu sei que o nome Karim é super comum no norte da África, mais até do que no Oriente Médio, mas não foi só encontrar o meu “duplo”, foi encontrar um Karim Aïnouz que nasceu no mesmo ano que eu, 1966. Teve ali uma coisa dos deuses que foi impressionante e aterradora, no sentido de que eu sempre me senti especial por ter um nome que pouquíssima gente conhece, um nome misterioso que ninguém sabe de onde vem. E aí, de repente, encontro alguém com o mesmo nome, na cidade onde minha família nasceu. Também fiquei bastante impressionado quando fui visitar o cemitério porque havia vários túmulos com o sobrenome Aïnouz. Aqui no Brasil, por exemplo, acho que só o túmulo da minha mãe tem a inscrição Aïnouz. Na França, tem alguns, mas chegar numa cidade onde mais da metade do cemitério tem o seu sobrenome é impressionante.

  • G |Em “Marinheiro das Montanhas”, você faz um relato familiar muito íntimo, como em um diário. O filme, de alguma forma, serviu como uma espécie de terapia para você?

    KA |

    Acho que todo filme tem um pouco disso, mas é preciso cuidado para que essa terapia seja interessante também para os outros, não só para você, porque, senão, não precisa fazer um filme, é só ir ali no consultório para resolver as questões [risos]. Mas, sim, serviu [como uma terapia], só que eu fiquei o tempo inteiro cuidando para que o “Marinheiro” não fosse sobre isso. Essas questões atravessam o filme, mas eu fui muito cuidadoso para que a história fosse sobre algo maior e mais relevante. Então, para mim, a questão pessoal foi uma espécie de álibi para se falar de um tema maior, que é a questão da descoberta de uma casa, da descoberta de um país que se emancipou politicamente. O lado pessoal serviu como estratégia para contar essa história sem, necessariamente, contar uma história oficial, que falasse de números, de guerras. Foi o viés que eu encontrei para abordar temas mais relevantes. Eu não sou relevante. Mas adentrar esse lugar foi uma estratégia para falar de temas sobre os quais vale a pena fazer um filme.

  • G |Qual a sensação de voltar a filmar “em casa”, no Ceará, depois dos dois filmes rodados na Argélia e de “Firebrand”, gravado na Inglaterra?

    KA |

    Foi maravilhoso porque eu tinha acabado de fazer um filme na Inglaterra, o “Firebrand”, gigante, sobre um outro tempo, lá em 1540. Então, fazer o “Motel Destino” [ainda em pós-produção, sem data de estreia marcada] e voltar a filmar no Ceará foi voltar a filmar numa luz com a qual eu tenho muita intimidade. Foi voltar a filmar no meu sotaque e no presente porque “Firebrand” se passa há 500 anos. Foi muito, muito prazeroso, eu saí com a sensação de estar entre os meus, foi muito bom.

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