COLUNA

Círculo de Poemas

O haikai é um clique

O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa um haicai de Felipe Moreno, publicado em “O Clarão das Frestas: Dez lições de haicai encontradas na rua”

11 de Abril de 2025

A menor das formas literárias? Sim, provavelmente. E também, justamente por isso, a mais radical, porque nos desafia — leitores e escrevedores — a experimentar a “arte das palavras” com o mínimo de palavras. O haikai (prefiro escrever com “k”, porque deixa o haikai com o sabor de outras palavrinhas com “k” que amo na língua do Japão, como kendô e karatê, mas muitos abrasileiram com “c” ou mesmo preferem a forma “haiku”, que se consagrou na Europa e nos EUA — fique à vontade)… O haikai é um clique: rápido, preciso, quase transparente. Quase “sem intervenção” de quem escreve: um simples encontro entre olhar e anotar (fotografar), mas bem sabemos que não há nada de simples nesse jogo. No Brasil, grandes poetas, como Alice Ruiz e Paulo Leminski (autor homenageado da próxima Flip!), se dedicaram a trilhar e partilhar esse caminho. Para falar um pouco sobre esses textinhos infinitos, trago aqui um poema do Felipe Moreno, que domina (e atualiza) essa arte como poucos:

fundos da pizzaria —

o pardal bica uma borda

e some no ar

*

Um bom haikai costuma ser assim: lança luz sobre uma pequena cena que acontece o tempo todo ao nosso redor, mas que está quase sempre fora do radar. O gesto do haijin (o poeta que escreve haikai) coloca no centro da atenção o que costumamos desprezar. Pega nossa cabeça e vira para o ponto mais discreto da paisagem. Diz: olha!

O haikai busca uma cena perdida, tomando o cuidado de reter apenas seus elementos fundamentais, e coloca na frente dos seus olhos

Centenas, milhares de pardais já devem ter bicado bordas de pizza perto de você, mas normalmente, nesses momentos e em tantos outros, sua atenção está voltada para coisas mais grandiosas, úteis, funcionais. Os letreiros em volta, os carros passando, os perigos da rua. O haikai vai lá e busca aquela cena perdida, tomando o cuidado de reter apenas seus elementos fundamentais, e coloca na frente dos seus olhos.

O mais famoso haikai de todos os tempos (que é também um dos poemas, em geral, mais famosos de qualquer tempo e língua) diz apenas: “velho tanque/ uma rã salta/ rumor de água”. Ele foi escrito por um poeta japonês chamado Matsuo Bashô (1644-1694) e, desde então, é considerado a mais perfeita expressão dessa poética da sutileza, da delicadeza, da atenção plena. Milhões de rãs saltaram e saltam e saltarão em tanques, mas aquela flagrada por Bashô continua saltando na cabeça de quem gosta de poesia.

Esse é um dos jogos do haikai: não apenas mostrar que há algo de extraordinário em tudo que consideramos ordinário, mas desfazer essa fronteira — “reeducar” nossa atenção para que não nos escapem a complexidade de que a vida é feita e as infinitas formas que ela assume à nossa volta o tempo todo. No poema do Bashô e no do Felipe, o salto da rã (seguido de um rumor qualquer) e a bicada do pardal (que logo voa e desaparece) são as expressões da vida (besta?) que, se não fosse o haikai, passariam desapercebidas e se perderiam na avalanche de “coisas mais importantes” que consomem nossa atenção.

No filme “Dias Perfeitos” (2023), o cineasta Wim Wenders lança olhos de haijin para a vida de (e em torno de) um zelador de banheiros públicos chamado Hirayama (Koji Yakusho), que, a seu modo, é um haijin também: um cara solitário, com uma rotina calma, que gosta de algumas músicas e alguns livros, e cuja atenção está sempre aberta para o que a maioria de nós despreza. Algumas das cenas mais bonitas do filme têm a ver com esse olhar desviante: ora é o olhar de Wim Wenders, colocando no centro da tela os pequenos fatos da “vida besta” de Hirayama; ora é o do próprio Hirayama, quando, por exemplo, senta para comer seu lanche, numa pequena praça, e fotografa o movimento da luz do sol nas folhas da árvore (komorebi), porque sabe estar diante de um momento único.

É perfeitamente possível imaginar Hirayama (ou Wim Wenders) escrevendo o haikai do Bashô ou o do Felipe. Diante dessa sensibilidade à flor da pele, captando tudo o que o mundo à volta está dizendo, nem o som mínimo produzido pelo salto da rã na água nem o lanchinho ligeiro do pardal escapam do clique do haijin

Em “O Clarão das Frestas”, Felipe Moreno não apenas apresenta alguns dos seus haikais, mas também divide com os leitores as suas reflexões sobre o que significa esse olhar “deslocado” num mundo em que nossa atenção é disputada a tapas. Quando o haijin nos convida para olhar para o lado, para o canto, para o que deixará de existir rapidamente, talvez seja isso que está dizendo: você, no fundo, é que anda meio desligado…

Produto

  • “O Clarão das Frestas”
  • Felipe Moreno
  • Círculo de Poemas
  • 40 páginas

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Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Todo mês, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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