Vinho, machismo e assédio
Em uma área tradicionalmente dominada por homens, sommelières lidam com um ambiente tóxico que inclui investidas sexuais indesejadas e assédio moral
Logo no primeiro curso que fiz sobre vinhos, há cinco anos, as condições do terreno que eu adentrava ficaram claras. Em uma das primeiras aulas, o professor, que deveria ensinar sobre serviço, usou a garrafa e o saca-rolhas para emular uma relação sexual. “Se ela pedir para parar, não pare”, disse ao aprofundar o gancho do saca-rolhas na garrafa, entre imitações de gemidos. Fiquei perplexa. Na sala lotada, com capacidade para mais de 60 pessoas, muitos homens riam, algumas mulheres também, ainda que claramente constrangidas.
É uma história muito exemplar da cultura do mundo do vinho, ao menos nos salões. Ser mulher e trabalhar em um restaurante é para as fortes; mundialmente, a profissão de sommelière é envolta em batalhas diárias. Há duas semanas, o New York Times revelou que o braço norte-americano da Court of Master Sommelier, que reúne os sommeliers de mais prestígio e de alto salário do país, tem um problema sério de assédio sexual. Treze mulheres que fazem parte da corte denunciaram casos de violência sofrida por integrantes de altos cargos. Em poucos dias, diretores e até o presidente foram afastados.
Para além dos crimes cometidos, um raio-x dessa organização mostra que as mulheres ainda são minoria no meio, algo que contribui para fragilizá-las. Fundada em 1997, a corte tinha, até as denúncias do escândalo, 155 integrantes, sendo 131 homens.
Essa relação de desigualdade numérica se repete no Brasil, onde historicamente o serviço de vinhos é feito por homens — e a bebida ainda é também majoritariamente consumida por eles. Há cerca de 20 anos, as primeiras mulheres começaram a entrar no mercado e hoje pode-se dizer que a realidade começou a mudar: já é comum que o serviço de restaurantes importantes seja comandado por mulheres, Mas isso não significa que o ofício seja executado sem acidentes, seja com clientes, com colegas, com sócios, com a brigada de serviço, ou com os chefes.
Ao longo de duas semanas, Gama ouviu dez sommelières que atuam em diferentes contextos — salões de restaurante tradicionais, outros mais descolados, de alta gastronomia, e até mulheres que atuam em importadoras como compradoras ou relações públicas — para que respondessem o que significa ocupar essa função no país. O começo da conversa foi sempre o mesmo: “Acontece muita coisa mas dei sorte, comigo não aconteceu nada”. Minutos depois fica claro que talvez não tenha sido bem assim. Como em muitas outras áreas profissionais e na vida fora do trabalho, as situações, por mais desconfortáveis que sejam, são normalizadas.
‘Você vem junto com a garrafa?’
“A gente passa um grande pano para tudo”, diz Gabriele Frizon, que tem passagens por salões como o do Emiliano, do Rio, e do luxuoso Tangará Jean-Georges, em São Paulo. “Já ofereci um vinho a um cliente e ouvi ‘mas seu telefone vem junto com a garrafa?’. Quando você está na posição de venda, percebe que tem o interesse de comprar você por você ser mulher”, afirma.
Cansei de ouvir que mulheres sensuais vendem mais. Me nego a isso. Vendo a bebida, não o meu corpo
Frizon observa o mercado de vinhos desde a infância, uma vez que o pai é restaurateur. “Cansei de ouvir que mulheres sensuais vendiam mais e sempre foi um modelo que me incomodou. Me neguei completamente a isso, se eu tiver que vender vinho porque o cara está olhando para o meu peito, prefiro não vender. Vendo a bebida, não o meu corpo.”
Quase como se guiada por um “trauma de infância”, foi na direção oposta. Adotou como vestimenta terno e sapatos masculinos, que acabaram virando a sua marca. Mas nem isso foi suficiente para barrar avanços ou desconfianças de cliente. “Me perguntam muito onde eu estudei. Duvido que façam esse mesmo tipo de pergunta a homens. É como se eu precisasse constantemente provar a minha capacidade. [Restaurante] Não é um ambiente confortável para mulher alguma, é muito hostil, e é quase como se houvesse uma coisa de seleção natural em que só ficam os mais fortes. Eu mesma fui perdendo a delicadeza”, afirma.
‘É do seu marido?’
O machismo foi muito marcante para Jessica Marinzeck, sommeliere da Evino, quando abriu seu primeiro ponto de venda em um shopping. Era comum que lhe perguntassem se era sócia do marido ou se a loja era do pai. “Cada um milita como pode. No meu caso, eu milito estudando, estudo 479 vezes mais para me sentir mais apta”, afirma ela, que chegou a fazer provas para integrar a Court of Master Sommelier. “Na época da loja, contratei a Silvana Aluá, da Confraria ds Pretas, e a maior parte das funcionárias eram mulheres. É como eu posso militar”, conta.
Como compradora da importadora e e-commerce Evino, função que ocupa hoje, em viagens, é comum que apareçam propostas de reuniões profissionais para o fim da noite. “Tive sempre que ser mais assertiva nas comunicação, superformal para não dar abertura. Muitas vezes, ouvi as pessoas dizendo que eu era muito diferente ao me conhecerem melhor”, conta.
Gabrielli Flemming, sócia do marido no restaurante Cepa, tem uma experiência semelhante à de Jessica. Não é raro que pensem que ela é funcionária de seu próprio restaurante — “os mais velhos olham para mim como ‘esposa do chef’” — ou que perguntem se é mais velha que seus 29 anos. “Tive que adotar uma postura mais madura do que eu gostaria por ser mulher. Aprendi a ter uma casca grossa”.
“Infelizmente, toda mulher já passou por um momento delicado e é terrível porque você fica sem reação, não sabe o que fazer, e ainda sai como culpada. Já vi clientes babões em cima das minhas funcionárias e tive que dar um corte. Sempre vou falar, isso tem que parar de acontecer”, afirma.
Um apartamento em Paris
Com uma longa experiência em restaurantes de alta gastronomia, como o Gero, do grupo Fasano, Ana Clara Carvalho que hoje está em Brasília no restaurante A Mano e à frente do e-commerce Dionísia Vinhos, já ouviu inúmeras propostas indecentes, sendo a mais absurda delas a de receber um apartamento em Paris. “Com aquele convite, o cliente queria mudar a minha atividade para a de prostituta. Era um cliente assíduo. Eu apenas olhei no olho dele e saí sem dizer nada”, conta.
Eles me desrespeitam. Dizem que levo vantagem por ser mulher, não porque sou mais experiente e estou acima deles hierarquicamente
Ela afirma que com o passar dos anos os incidentes de assédio sexual ficaram mais raros, já que são 20 anos de carreira e ela e sua família se tornaram conhecidas em Brasília. Mas dentro do restaurante, com a brigada de garçons, o machismo ainda é uma luta diária. “Eles costumam me desrespeitar, acham que mulher não aguenta, não dá conta. E dizem que eu levo vantagem por ser mulher, não porque tenho duas décadas de carreira, sou mais experiente e estou acima deles hierarquicamente.”
O assédio permeia a experiência de quem trabalha com vinhos em diferentes gerações. Novata no time, com dois anos de experiência em restaurantes de nicho, onde o vinho natural é o carro-chefe, Sofia Guglielmo recebeu cantadas disfarçadas e na cara especialmente por ser “carne fresca”. “Tive muita sorte de trabalhar com uma turma boa, me sentia protegida, o Bruno [Bertoli, dono do Beverino] contornava as coisas para mim, atendendo clientes mais inconvenientes, mas ainda assim ouvi muita ‘piada’. Quando fui a outro restaurante e passei a negociar preço de vinho, vi que faziam descontos esperando recompensas”, relata.
Sofia percebeu que tinha criar um personagem para conseguir conviver com aquilo tudo, salão, negociação, o que fosse, uma coisa meio teatral. “Cinco minutos antes de começar a trabalhar, respiro e vou. Mas é ruim, a gente perde a sensibilidade, cria uma casca”, conta.
Ela observa o machismo até no linguajar usado para descrever a bebida. “Quando estava estudando, ouvia notas de degustação esquisitas, um vinho feminino, um vinho másculo. E eu me perguntava: o que diabos é isso?”
Fernanda Fonseca, profissional de relações públicas que há três décadas atua no mundo do vinho, conhece o mercado inteiro e acumula uma espécie de caixa preta de informações da área em sua memória, já foi ela mesma uma vítima. Em uma viagem para acompanhar jornalistas a uma vinícola italiana, um produtor chegou a avançar fisicamente ao mesmo tempo em que pedia vantagens profissionais. Também percebeu que alguns produtores europeus viam as visitas ao Brasil a trabalho como uma oportunidade de turismo sexual. “Talvez eu fosse muito boba no começo, há 30 anos, sentava em mesas em que eu era a única mulher e me sentia protegida ali. Hoje o machismo e o assédio são mais evidentes, e as relações de poder pesam mais”, afirma.
O pacote completo
Além do assédio sexual, as sommelières brasileiras também sofrem com o assédio moral. Há descrédito em relação à capacidade da profissional mulher. “Muitas vezes, o empregador quer uma profissional mulher para executar, não para pensar, para criar a estratégia”, afirma Fernanda.
Em depoimento enviado por email, a educadora e sommelière Eliana Araújo lembra que o assédio moral vem de homens e mulheres com agressões verbais, indução ao erro nas atividades de trabalho, carga horária excessiva, e até em sabotagem no serviço, como desligar adegas ou esconder garrafas de vinhos. O cenário que ela descreve é pesado, com insultos e humilhações diante de funcionários e clientes, ameaças, entre outras violências psicológicas. “O ambiente cultuava gestões hostis. Por não compactuar com esse tipo de atitude, muitas vezes pedir demissão era a alternativa”, escreve.
Além da misoginia, tem a questão de classe e do racismo também. Aquilo de o cliente sempre ter razão dá brecha a muita coisa errada
“Vi meu trabalho ser invalidado inúmeras vezes”, afirma a sommelière-chefe do grupo D.O.M. Gabriela Monteleone. “Já falaram que não seriam atendidos por mulher, já ouvi que não tinha competência para escolher vinho, mesmo depois de ter sido primeira sommelière do Pommodori [tradicional restaurante de São Paulo]. Tem também o clássico do cliente que quer medir força com você e fazer um mansplaining sobre algo que você sabe e estudou. E aí temos que brecar a situação, sair do lugar de subserviência. Além da misoginia, tem a questão de classe e do racismo também. Aquilo de o cliente sempre ter razão dá brecha a muita coisa errada”, afirma.
“Eu não passo pano para cliente. Amo atender, tenho clientes amigos queridos e gosto de chegar com um sorriso — agora, com máscara, aperto até mais o olho para o sorriso ficar evidente. Mas tem um limite, principalmente porque a cultura do restaurante é a da casa grande e senzala com requinte”, diz Gabriela.
Segundo ela, a maneira que encontrou de fortalecer a presença das mulheres no mercado e de tentar formar uma ação de proteção feminina (e, porque não, feminista) é criar projetos entre mulheres. “É um fortalecimento importante para as mulheres. Mostra que outro comportamento é possível.”