O reflexo do corpo — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

O reflexo do corpo

Como ver-se com os olhos do outro fez o corpo magro entrar na moda e nos trouxe até a atual epidemia de Ozempic

20 de Setembro de 2023

A gente não tem muita noção de como foi a descoberta da nossa imagem refletida, mas dá para saber que ela tem uma ligação forte sobre como se deu a construção do ideal do corpo magro na sociedade atual. Hoje nos vemos nos espelhos, nas telas pretas de nossos celulares, nas câmeras de selfie, nas janelas dos carros estacionados na rua, nas vitrines das lojas, numa reunião online. E esse contato com nosso reflexo só aumentou durante e após a pandemia.

A imagem espelhada é uma representação objetificada de nós mesmos e permite nos ver pelo olhar de um outro. Hoje nos vemos tanto, que muitos começam a enxergar problema onde não existe, ou, ainda, a questão fica muito maior na percepção dessa pessoa, a ponto de impedi-la de socializar. A isso deram o nome síndrome do Snapchat ou dismorfia corporal.

Na virada do século 19 para o 20, os grandes magazines de luxo que surgiram — alô, “O Paraíso das Damas” — como o Bon Marché, vendiam um avanço estético da era: os armários com espelhos na porta.
Até então, era importante embelezar só a parte alta do corpo, as pernas eram vistas como um totem que segurava o busto; ficavam escondidas sobre inúmeros saiotes, bem silenciosas, invisíveis. Os espelhos eram pequenos e o rosto era o foco. É a partir do momento em que a elite burguesa passa a enxergar o corpo todo refletido que surge toda uma sorte de instrumentos de beleza para afinar as partes de baixo. Com o novo reflexo, uma nova preocupação.

Hoje nos vemos tanto, que muitos começam a enxergar problema onde não existe

Um pouco antes, os espartilhos estavam lá garantindo que cintura, busto e quadris estivessem bem apertados para dar “elegância” e postura, era o que diziam os anúncios. A mulher, de corpo gordo ou de corpo magro, só precisava estar bem espartilhada. É a Sofia de Rousseau, a mulher-adorno, o anjo do lar, a mulher sem mobilidade. Aliás, tentaram comprovar, nessa época aí, que a mulher nem correr poderia porque sua bacia era menor que a do homem e, assim, ela teria menos equilíbrio. O melhor para ela era a dança, mas sempre acompanhada de um parceiro que a guiasse, claro.

No começo do século 20, a balança não era um utensílio pessoal e, portanto, as pessoas não se pesavam em casa. Nem sonhavam com números que pudessem definir o valor do seu corpo. A fita métrica era usada somente em casos de estudos e medições que a ciência se interessou em observar e registrar durante todo o século 19. Ela foi inclusive bem importante para produzir o racismo científico que se alastrou nessa época, numa tentativa (bem sucedida, infelizmente) de comprovar que homens brancos eram mais civilizados e belos que o resto dos tipos de humanos.

No começo do século surgem os maillots e as sufragistas, ambos permitindo mais mobilidade ao corpo da mulher. A gente foi se despedindo do uso dos espartilhos, mas eles aparecem de vez em quando numa passarela, como as das semanas internacionais do primeiro semestre de 2023, para lembrar que o corpo da mulher deve ser controlado.

Independente da roupa que se veste e da moda de cada tempo, o corpo magro e todo o arsenal para que ele se mantenha delgado nunca mais saiu de moda, desde a chegada desse armário com espelho de corpo todo. Pode buscar nos registros da história da moda, do começo do século 20 até hoje, a magreza e o controle das medidas do corpo seguem firmes e fortes.

Claro que a fotografia contribuiu para mexer com a nossa percepção corporal, mas as pessoas não se fotografavam todo dia, era mais comum em ocasiões especiais, batizados, casamentos. Também não era um reflexo ao vivo e a cores como o espelho. Não era.

Reflita sobre como nossos cérebros estão reagindo à IA, com seus filtros que alteram nossas formas enquanto nos movemos

Se um mísero espelho na porta do armário fez o que fez, movimentou todo um mercado de consumo de exercícios, aparelhos elétricos, rollers, cintas, cremes, cirurgias, além da moda do século 20, imagina a marimba que a gente está segurando com o advento das câmeras frontais dos smartphones e com a quantidade de horas que ficamos na frente das telas. Reflita sobre como nossos cérebros estão reagindo à Inteligência Artificial, com seus filtros que alteram nossas formas enquanto nos movemos e às inúmeras imagens editadas de corpos que cruzamos ao longo do trajeto de um dia, o corpo impresso ou em pixels, na publicidade, em um videoclipe ou na rede social. Nem temos mais ideia de como eram as suas versões originais, afinal são todos modificados em maior ou menor grau.

Esse excesso de visibilidade do corpo (feminino) magro e jovem nos faz normalizar seu formato, como se esse tipo de constituição física fosse a única possível. Ao longo do século 20, esse corpo já vendeu tanta coisa — aspirador de pó, spray de cabelo, calça jeans, cigarros, automóveis, óculos de sol, amaciante, maquiagem — que, para a nossa cabeça, em algum lugar lá no cérebro, fica o registro de que a nossa materialidade está errada e esse ideal é o certo. Basta se esforçar um pouco mais. Isso explica a atual epidemia de Ozempic, na busca pela fórmula mágica que nos tire desse corpo que insiste em ter fome e envelhecer e que, de certa forma, nos trai.

Precisamos dar um jeito de fazer um detox de tanto reflexo, trabalhar mais para dentro e olhar para fora com olhos críticos, como quem toma a pílula vermelha e volta para a Matrix consciente do sistema.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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