Coluna da Letrux: O que ainda vale é paixão — Gama Revista
COLUNA

Letrux

O que ainda vale é paixão

Pra continuar com o mundo, só com paixão. Por uma ideia, por uma pessoa, por um povo, por uma cultura, paixão por defesa, paixão por ataque. Paixão por paixão também

03 de Fevereiro de 2021

O que ainda vale é paixão. Penso e repito. A história do mundo é horrível. É uma das frases que mais digo vendo filmes do passado ou lendo livros sobre nossa história. “A história do mundo é horrível.” Pra tudo isso, sempre houve a paixão, essa febre, esse frisson, essa fúria, essa fuga. Pra continuar com o mundo, só com paixão. Daí algumas vitórias surgiam nas histórias horrendas e a humanidade se animava um bocadinho em tentar um pouco mais. Por paixão. Paixão por uma ideia, por uma pessoa, por um povo, por uma cultura, paixão por defesa, paixão por ataque. Paixão por paixão também. Lembro de Herberto Helder começando um poema de forma aniquilante. “Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão?” Acharia belo ter escrito no meu epitáfio: “Foi uma apaixonada por água”. Algo assim me emocionaria. Ser boa filha, boa mãe, ter boa família, o que isso tudo significa perto de ter paixão?

Minha primeira paixão foi em criança, estudávamos na mesma sala há anos já. E numa tarde de férias da terceira série (eu tinha nove anos portanto), Rodrigo Barbosa, minha paixão, me ligou perguntando na lata: “Letícia, quer namorar comigo?” Constrangidíssima com a possibilidade em ser sondada para viver um romance com quem eu realmente gostava (quais eram as chances?), desliguei na cara. Um horror, eu sei. Mas eu tinha 9 anos. Claro que namorar era palavra só pra dizer que talvez sentaríamos perto e brincaríamos no recreio apesar da ridícula rixa entre meninas e meninos. Na volta às aulas, envergonhada e tola, disfarcei qualquer coisa, ele também. Fingimos que nunca houve aquela ligação.

A lenda de que um raio não cai no mesmo lugar atrapalha minhas metáforas. É possível se apaixonar de novo pela mesma pessoa? Se é

Corta para o ano seguinte, agora temos dez anos. Entraram novas meninas na sala. Parece que todas gostam de Rodrigo. Ele de fato é bem bonito, e escorpiano ainda, essa desgraça sedutora. Com pouca força pra competições, percebo que as meninas gostam de Rodrigo, e vivo minha vida de sonhos e maluquices. Eu sinceramente não fazia distinção entre estar dormindo e estar acordada. Gosto de Rodrigo sozinha, sem dividir, e isso é bonito pro meu mundo papel de carta. Bela tarde de 1992, sem ser férias, o telefone toca e ao contrário de hoje que tenho pavor de atender e acho quase audacioso alguém me ligar, eu era viciada em atender o telefone. Rodrigo de novo. “Quer namorar comigo”, de novo. Desligo na cara dele de novo. Estou em brasas de novo. Rodrigo liga de novo. “Não faz isso comigo não, Letícia”. Ouch. Perguntei algo bem idiota como “Mas e a fulana? E a sicrana? Rodrigo é categórico: “Gosto de você desde o jardim de infância”. Queimo. Não sei como lidar, sou nova e sei que pro resto da minha vida, amor vai ser o tom, o assunto, meu ditado diário. DRs infinitas me aguardam, portanto não quero começar a tê-las com dez anos. Não quero adiantar nada. Não sei como eu sei, mas eu sei. Criança capricórnio nasce velha e aos poucos vai ficando jovem. Me aguardem com 82 pra sacar as estripulias que farei.

Saímos do colégio ao fim desse ano e não era fácil manter contato. Perdemos. Uns seis anos depois, numa fase bem difícil da vida, 16 anos, com looks completamente desleixados, fui ao supermercado e na banca de jornal que havia dentro, ouço uma voz “Letícia Novaes!”, viro e reconheço que é a mãe de Rodrigo. Conversamos brevemente, ela é simpática, “Quanto tempo!”, aquela coisa, aquele esquema. Minha ex-futura sogra dos sonhos diz que Rodrigo está chegando. Não estou preparada pra isso, mas permaneço porque não tremo as mãos, só a barriga mesmo que sente mas posso segurar uma caneta e não tremer. Mas o banheiro será castigado mais tarde.

(Perdão, não quero poupá-los de nada. Quero que você fique nervoso comigo.)

Rodrigo chega. Bem mais baixo que eu. Aí eu já devia ter 1,80 metro e não tinha feito teatro (coitada), algo que me gerou certa consciência e graça corporal. Mas aí era o auge da esquisitice. Ambos nitidamente virgens, falamos qualquer coisa, não lembro nada, não lembro de palavra alguma sendo dita. Talvez sobre vestibular? Não lembro mesmo. Não lembro nem se estou inventando, tamanha loucura. Volto pra casa. Me encaro no espelho. Estou com um pedaço de alface no dente. Um dos dentes que aparecem mais. Sinto uma dor no cérebro, quero pegar uma faca e fazer um cortezinho bem aqui no alto da testa pra conseguir tirar essa lembrança ou a dor dessa lembrança. Uma alface no dente revendo minha primeira paixão. Tudo isso seria um resumo bem forte da minha vida, mal eu sabia. Nunca mais nos vimos, não nos temos em redes sociais. Continua um mistério. E tudo bem também. “Paixão pela paixão, tinha?”, Herberto Helder continua em seu poema dilacerante.

Não quero desistir nunca da paixão. Embora esteja cheia de escoriações, prefiro isso do que o trovão (que só faz barulho mas é inofensivo)

Demorei muitos anos pra me apaixonar de novo. “Não faz isso comigo não, Letícia.” Fantasmas. Não que eu fosse a má, já fui bem má(ssacrada) inclusive. Mas já fiz coisas com as pessoas idem. Aliás, durante anos achei que existia uma lei secreta para haver desequilíbrio no mundo: você se apaixonava por alguém e essa pessoa não se apaixonava por você. Sua próxima vez seria o contrário: alguém se apaixonaria por você e você não pela pessoa. Eu vivia esse looping, amigues viviam esse lopping. A gente pensava “quando vai bater?”, que é o atual “dar match”. Muitas vezes jurei que estava apaixonada por seres que hoje em dia, minhadeusadocéu, me empresta de novo aquela faca de abrir cérebro pra tirar uma coisa aqui rapidinho? Desconfio de quem não se arrepende. “Tudo o que vivi foi importante para aprender.” Parabéns, meu bem, mas eu me arrependo de muita coisa. Pessoas, histórias. Perdi a coisa mais preciosa do mundo: tempo. Sobre aprendizagens, elas poderiam ter vindo de outras formas, sinto. Mas fui afortunada também, não posso negar. Vivi e vivo histórias românticas oníricas (com zonas sombrias também, visto que a vida é yin-yang sempre), mas com teor de beleza que me comove também. Amei, fui amada, amo, sou amada. A história do mundo é horrível, mas ainda há isso. Que sorte, que privilégio.

As pessoas acham que todas as minhas músicas são histórias da minha vida. Mas o que eu canto é o que eu canto. E o que eu vivo é o que vivo. Simples assim. Algumas coisas se misturam, mas o que sinto pode ser outra coisa. Em “Cuidado, Paixão”, uma música que tem se mostrado xodó das pessoas, há um verso em que digo que “paixão é raio que ilumina um segundo, depois volta o breu”. Ao longo da vida senti esses raios e por segundos enxergava algo, mas logo em instantes já não conseguia ver mais nada, necessitando da ajuda de velas, lanternas, outras luzes. Não sei se cedo ou tarde na vida, entendi que se quisesse viver transformações profundas, eu teria que abraçar o raio, mesmo com risco mortal.

Um raio é um encontro de carga elétrica negativa (granizo e gotas de chuva) e carga elétrica positiva (cristais de gelo e água). Isso gera tensão elétrica. Gosto de pensar que quando pólos se encontram, há tensão formada e isso gera um raio. Sempre me apaixonei por pessoas céticas, por exemplo. E eu ali devota de tudo e do todo, apaixonada por niilistas, chega a ser hilário. Mas talvez seja isso: eu quero fazer o raio. E ter certeza que ele cai sim no mesmo lugar. Que ele pode cair. Essa lenda que ele não cai atrapalha minhas metáforas, poxa vida. É possível se apaixonar de novo pela mesma pessoa? Se é. Talvez com novas cargas mas no mesmo lugar, sim. (Detalhe curioso: O Cristo Redentor recebe seis raios em média por ano, ou seja…) Só não quero ser como Roy Sullivan, guarda florestal dos EUA, que entre 1942 e 1977 foi atingido sete vezes por raios. E em 1983, por uma decepção amorosa, resolveu tirar a própria vida. Não gostaria de abraçar o nada, após tanto. Respeito mas gostaria de saber manter as cargas, a eletricidade, os pólos positivos e negativos. Não quero desistir nunca da paixão. Embora esteja cheia de escoriações, prefiro isso do que o trovão (que só faz barulho mas é inofensivo). Barulho faço eu, raio eu não faço, eu espero: a captura e a eventual fuga. A história do mundo ainda vai ser horrível. Raios passarão, telefonemas, pedidos (os aceitos e os negados). O que ainda vale é paixão. As inexplicáveis, esquisitas, estranhas, embaraçosas. Paixão pela paixão, tinha? Sinto que sim, Herberto. Sinto que sim.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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