Fernando Luna
Direito de ausência pra todos
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre como dar um perdido impunemente, anticorpos fechados com banho de sal grosso da Pfizer e o mês de janeiro fazendo cosplay de dezembro
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua
Sophia de Mello Breyner Andresen, 1958
Vou lutar pelo direito de ausência pra todos.
O Google Calendar podia se antecipar e incluir uma nova opção nos seus “invites”: “Sim”, “Não”, “Talvez” e “Direito de ausência”. Clicando nesse último, o usuário fica até dispensado de enviar mensagem pro organizador se explicando.
Não é justo que apenas o presidente da república possa faltar a um compromisso, assim na cara dura, sem sofrer qualquer consequência relevante – salvo uma breve enxurrada de memes de arregão.
E daí que era uma determinação do Supremo Tribunal Federal? Precisava marcar logo numa sexta-feira à tarde, quando a cabeça da gente já no final de semana? Ainda por cima, uma oitiva na superintendência da polícia federal, super fora de mão? Com um delegado querendo falar de vazamento de dados sigilosos, papo chato do inferno?
Mas não tente fazer isso em casa – ou em qualquer outro lugar. Vai dar confusão. Antes, é preciso combater os privilégios e democratizar o ato de dar um perdido impunemente.
Com a dificuldade histórica que o brasileiro tem de dizer “não”, brotaram por estas plagas habilidades linguístico-comportamentais únicas: o sujeito não diz que vai e também não diz que não vai, muito pelo contrário.
Fica o dito pelo não dito e vice-versa. Nesse limbo semântico, tudo permanece suspenso até o último instante, quando a figura simplesmente não aparece, nem se dá ao trabalho de inventar qualquer desculpa.
Curiosamente, isso ainda pega mal pra maioria das pessoas que não mora no Palácio do Planalto.
Para combater tamanha injustiça, a Ordem dos Advogados do Brasil prepara um manifesto pela universalização do direito de ausência. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil avalia deixar de lado a Campanha da Fraternidade pra se engajar nessa causa, capaz de mobilizar de fato o coração de seus fiéis.
“Por maior que seja o desespero/ Nenhuma ausência é mais funda do que a tua”, escreveu a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen em “Ausência”, poema de seu livro “Mar Novo”. Ela tem razão. Só o amor não tem direito de ausência.
É preciso reaprender a viver
Ana Akhmátova, 1939
Metade dos meus conhecidos pegou covid e a outra metade, também – só não sabe disso porque tá difícil fazer o teste.
Só eu escapei, escuto o outro se gabando.
Sim, só você, diferentão, Highlander da Microbiologia, Titular Absoluto da Seleção Natural, Atacadão de Células T, Mascote da Natália Pasternak, Escudo Antimíssel Imunológico, Escafandrista de N95, Coroinha da OMS, Anticorpo Fechado com Banho de Sal Grosso da Pfizer, Unicórnio da Virologia.
Leio que, mesmo com o carnaval de rua cancelado, a micareta do ômicron vai seguir firme, forte e virulenta por mais algumas semanas. Paciência, máscara e vacina para todos, inclusive crianças, Damares, porque esse troço é mais contagioso que sarampo, refrão de axé e challenge do TikTok.
Só de escrever isso começo a me sentir hipocondriacamente mal.
Já percebo um cansaço se espalhando pelo meu corpo, cabeça pesando e garganta coçando. Consulto o google e o diagnóstico é claríssimo: covid. Sabia, tava demorando. Peraí, olha esse outro link, pode ser gripe. Ou erisipela. Ou dor nos quartos. Ou uma síndrome raríssima que só acometeu quatro indianos do Punjab em 1978.
Melhor sair na internet e procurar um especialista. Onde? Na entrada de um shopping center, claro. Um daqueles armados com termômetro em formato de pistola, aparentemente incapaz de marcar acima de 34 graus – imagina perder um consumidor só por uma febrinha? Quem precisa de PCR, quando se pode tranquilizar e fazer compras ao mesmo tempo?
Não, melhor ficar quieto no meu canto e sossegar o facho de novo.
Dar um passo atrás pra dois à frente, embora às vezes pareça que a gente prefere dar dois passos atrás pra um à frente – embalados numa marcha à ré civilizatória.
A poeta russa Ana Akhmátova escreveu os versos de “Veredicto” num dia ruim de verdade. Em 22 de junho de 1939, seu filho foi condenado a uma temporada de 18 anos num gulag, em meio ao terror stalinista – de resto, um tipo de praga tão letal como a pandemia. Reaprender a viver era o único jeito de seguir em frente. Ainda é.
Ama como a estrada começa
Mário Cesariny, 1957
Lembra quando o ano começava devagar?
Janeiro era uma sucessão arrastada de dias quentes, encharcados de suor e chuva, em que nada realmente acontecia.
Ninguém sabia se era dia de feira-livre no bairro ou da reunião semanal da firma – hoje, via Zoom, todo mundo fecha a câmera pra falar o que realmente importa pelo Whatsapp.
O primeiro mês não passava de um aquecimento, preparando os músculos pra maratona logo adiante. Apenas uma antesala que você era obrigado a atravessar pra entrar no ano novo propriamente dito.
Não mais: 2022 chegou chegando.
Tá parecendo um prolongamento do corre de dezembro. Mal desembarcamos aqui e já teve de tudo, notificações pululando no calendário recém-inaugurado: meteoro, enchente, tsunami, desabamento, negacionismo de Melbourne a Brasília, ômicron em todo lugar, testes em lugar nenhum, cancelamentos, tragédia no cânion, quase tragédia no Pico dos Marins.
(A tragédia, nesse caso, é descobrir que não nasce um otário por minuto, como na época do P.T. Barnum. Agora nascem pelo menos uns três ou quatro, e eles ainda pagam pra passar perrengue seguindo coach morro a cima e, quando a coisa aperta, bombeiros morro a baixo.)
Desconfio que essa aceleração de acontecimentos seja culpa do carnaval – ou melhor, da sua ausência.
Com a bagunça suspensa, perdemos o verdadeiro marco zero do ano, que, como todo brasileiro sabe, só começava pra valer depois do carnaval. Sem folia à vista nem a prazo, fomos obrigados a antecipar o início do ano pro início do ano mesmo, como qualquer país sem imaginação.
Esse açodamento, sei não…
Convém não entrar de supetão na nova temporada. Alguém me avisou pra pisar neste chão devagarinho. Não é ficar com pé atrás, é sentir o terreno pra evitar as ciladas de 2021 – ou pior, as ciladas de 2018.
Como tô a fim de um relacionamento sério com 2022, vou seguir a cartilha do Mário Cesariny, ali no livro “Pena Capital”. “Amar como a estrada começa”, sem afobação pra adivinhar o que vem depois da próxima curva. Com jeito, vai melhor; com sorte, vai mais longe.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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