Letras (1975-2020)
Novo volume apresenta todas as composições de Bob Dylan desde 1975, numa celebração dos 80 anos do artista vencedor do Nobel de Literatura
No ano em que completa 80, caso Bob Dylan decida olhar para trás — numa clara contradição a “Don’t Look Back” (1967), documentário clássico focado em sua carreira –, o cantor pode dizer que continua a compor, tocar e cantar praticamente com a mesma regularidade do início, lá na louca e prolífica década de 1960. Em 2020, seu último álbum, “Rough and Rowdy Ways”, foi mais um sucesso de crítica, mantendo uma constante que marcou boa parte da carreira do artista.
Vencedor do Nobel por sua contribuição quase literária à música, a poesia de suas composições é relembrada agora com “Letras (1975-2020)” (Companhia das Letras, 2021), continuação do volume de 2017 que trazia suas primeiras canções. Ao longo dos 45 anos e 18 álbuns de estúdio cobertos pela obra, partindo do clássico “Blood on the Tracks” (1945), fica claro não só o talento de Dylan como compositor, mas a mescla que faz entre erudição e oralidade e a naturalidade com que eleva temas mundanos, como brigas de amor e pequenas angústias cotidianas.
Com tradução de Caetano Galindo, que assumiu a árdua tarefa de fazer os versos de Dylan soarem tão bem no português quanto no inglês, o livro é como um convite para adentrar a obra e a alma do compositor, ao menos enquanto artista. Uma história que segue sendo escrita, como já indicavam os versos de “Tangled Up in Blue”, canção que dá início ao volume: “Mas eu, eu ainda estou na estrada/ Rumo a outro boteco/ Nós sempre sentimos a mesma coisa/ Só víamos de pontos de vista diferentes/ Emaranhados no azul”.
Abrigo na Tempestade (Shelter from the Storm)
Foi em outra vida, vida de lida e de sangue
Quando as trevas eram virtude e a estrada, cheia de lama
Vim do deserto, criatura desprovida de forma
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
E se eu passar de novo por aqui, pode ter certeza
Que sempre vou fazer o melhor por ela, quanto a isso dou minha palavra
Num mundo de morte de olhos de aço, e de homens que lutam por calor
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
Nenhuma palavra foi dita entre nós, houve ali pouco risco
Tudo até aquele ponto estava ainda por se resolver
Tente imaginar um lugar que será sempre seguro e quente
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
Estava destruído de cansaço, soterrado de granizo
Envenenado nos arbustos e estilhaçado na trilha
Caçado como crocodilo, destroçado no milharal
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
De repente me virei e ela estava ali
Com braceletes de prata nos pulsos e flores nos cabelos
Veio a mim tão graciosa e pegou minha coroa de espinhos
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
Ouvi recém-nascidos uivarem como rolinhas em seu lamento/
E velhos com dentes quebrados, encalhados, sem amor/
Será que estou entendendo a sua pergunta, cara, é tudo desespero e abandono?
Agora há um muro entre nós, algo ali se perdeu
Desconsiderei muita coisa, confundi os sinais
Só de pensar que tudo começou numa manhã há muito esquecida
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
Bom, o delegado caminha sobre pregos duros e o pregador vem em sua montaria
Mas nada no fundo tem muita importância, é só a desgraça que conta
E o coveiro caolho, ele sopra sua corneta inútil
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
Ouvi recém-nascidos uivarem como rolinhas em seu lamento
E velhos com dentes quebrados, encalhados, sem amor
Será que estou entendendo a sua pergunta, cara, é tudo desespero e abandono?
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
Numa cidadezinha de montanha, perderam minhas roupas no jogo
Pechinchei a salvação e me deram uma dose mortal
Ofereci minha inocência e fui pago com desprezo
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade”
Bom, estou vivendo em terra estrangeira mas hei de cruzar a fronteira
A beleza caminha no fio da navalha, um dia ela vai ser minha
Se eu pudesse apenas fazer voltar o relógio pra quando Deus e ela nasceram
“Entre”, ela disse, “eu te dou abrigo na tempestade
Curinga (Jokerman)
De pé sobre as águas semeando seu pão
Enquanto reluzem os olhos do ídolo da cabeça de ferro
Naus distantes navegando névoa adentro
Quando você nasceu com uma serpente em cada punho um furacão soprava
A liberdade logo ali ao lado pra você
Mas com a verdade tão longe, de que adianta?
Curinga dança ao som do rouxinol
Ave voa alto sob a luz da lua
Ah, ah, ah, Curinga
Tão veloz o sol se põe no céu
Você levanta e diz adeus a ninguém
Tolos correm aonde os anjos temem pisar
Os seus futuros, tão cheios de pavor, você não mostra
Abandonando mais uma muda de pele
Ainda um passo à frente do perseguidor que mora em você
Curinga dança ao som do rouxinol
Ave voa alto sob a luz da lua
Ah, ah, ah, Curinga
Homem das montanhas, você caminha nas nuvens
Manipulador de multidões, você distorce sonhos
Segue rumo a Sodoma e a Gomorra
Mas e daí? Ninguém por lá ia querer casar com sua irmã
Amigo do mártir, amigo da mulher que é uma desonra
Você mira a fornalha em chamas, vê o rico que não tem nome
Curinga dança ao som do rouxinol
Ave voa alto sob a luz da lua
Ah, ah, ah, Curinga
Uma mulher acaba de parir um príncipe e o vestiu de escarlate/
Ele vai pôr o sacerdote no bolso, a navalha no fogo/
Tirar a criança órfã da rua e colocá-la aos pés de uma meretriz
Então, o Livro do Levítico e o Deuteronômio
A lei da selva e o mar são seus únicos mestres
Na fumaça do crepúsculo num corcel branco como leite
Michelangelo de fato teria sido capaz de entalhar seus traços
Repousando nos campos, longe do espaço turbulento
Dormitando junto aos astros com um cãozinho a te lamber o rosto
Curinga dança ao som do rouxinol
Ave voa alto sob a luz da lua
Ah, ah, ah, Curinga
Então, o carabineiro tocaia os doentes e aleijados
O pregador quer o mesmo, quem chegará primeiro ninguém sabe
Cacetetes e jatos d’água, gás lacrimogênio, ferrolhos
Coquetéis-molotovs e pedras por trás de cada cortina
Juízes desleais morrendo nas teias que tecem
Só questão de tempo até a noite vir chegando
Curinga dança ao som do rouxinol
Ave voa alto sob a luz da lua
Ah, ah, ah, Curinga
É um mundo de sombras, os céus são de um cinza escorregadio
Uma mulher acaba de parir um príncipe e o vestiu de escarlate
Ele vai pôr o sacerdote no bolso, a navalha no fogo
Tirar a criança órfã da rua e colocá-la aos pés de uma meretriz
Ah, Curinga, você sabe o que ele quer
Ah, Curinga, você não demonstra reação
Curinga dança ao som do rouxinol
Ave voa alto sob a luz da lua
Ah, ah, ah, Curinga
Ainda Não Está Escuro (Not Dark Yet)
Sombras vão caindo, passei o dia inteiro aqui
Está quente demais pra dormir, o tempo está correndo
Parece que minha alma virou aço
Ainda tenho as cicatrizes que o tempo não curou
Não tem nem mais espaço pra ficar aqui
Ainda não está escuro, mas falta pouco
Bom, minha ideia da humanidade foi ladeira abaixo
Por trás de cada coisa bela há algum tipo de dor
Ela me escreveu uma carta e era tão doce
Pôs em palavras o que tinha na mente
Só não vejo por que eu deveria me importar com isso
Ainda não está escuro, mas falta pouco
Nem lembro do que é que eu fugia ao vir pra cá/
Não ouço nem o murmúrio de uma prece/
Ainda não está escuro, mas falta pouco
Bom, estive em Londres e estive na alegre Parri
Segui o rio e cheguei ao mar
Estive lá no fundo de um mundo cheio de mentiras
Não procuro nada nos olhos dos outros
Às vezes meu fardo parece mais do que posso aguentar
Ainda não está escuro, mas falta pouco
Nasci aqui e vou morrer aqui contra a minha vontade
Sei que parece que estou caminhando, mas estou bem parado
Cada nervo do meu corpo está tão perdido e anestesiado
Nem lembro do que é que eu fugia ao vir pra cá
Não ouço nem o murmúrio de uma prece
Ainda não está escuro, mas falta pouco
- Letras (1975-2020)
- Bob Dylan (trad. Caetano W. Galindo)
- Companhia das Letras
- 704 páginas
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