Um toque amargo para equilibrar
Evolução do paladar do brasileiro explica a preferência crescente pelos sabores cada vez mais amargos, tanto na mesa quanto no bar
País da cana de açúcar, dos doces em compota e do leite condensado, o Brasil parece ter descoberto, finalmente, o valor do sabor amargo. Ele está cada vez mais presente nas cervejas, na coquetelaria, na gastronomia e até, quem diria, nos momentos de indulgência, no formato de barras de chocolate com altíssimo teor de cacau e quase nenhum açúcar. Mas para entender esse movimento – que os especialistas consideram uma evolução do paladar – é preciso compreender todo o intrincado mecanismo fisiológico e cultural envolvido no processo de percepção do amargor.
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Rejeitar, ou ao menos desconfiar do sabor amargo, não é frescura. Segundo a nutricionista Carina Carlucci Pallazzo, do Laboratório de Práticas e Comportamento Alimentares da Universidade de São Paulo, tem a ver com funções básicas de manutenção da espécie. “Alimentos muito amargos podem conter componentes tóxicos ou estar estragados, por isso nascemos programados para rejeitar o amargor. O bebê gosta naturalmente do doce, mas certamente cospe qualquer comida amarga. Gostar do amargo é um aprendizado.” Identificar o amargo é tão importante para a autopreservação que a língua humana tem muito mais receptores dedicados a ele, em comparação com a capacidade de perceber outros sabores. Mas a predisposição genética também entra nessa conta – de acordo com Palazzo, quanto mais sensível ao amargor, mais chance a pessoa tem de torcer o nariz para alimentos muito amargos.
Gostar do amargo é um aprendizado
A fisiologia humana ajuda a explicar por que o amargo, historicamente, também foi tratado como algo negativo. Comecemos pelo dicionário: amargo é aquilo que tem sabor desagradável, mas também é sinônimo de doloroso, penoso, cheio de tristeza ou sofrimento. E foi com esse sentido que as mais diversas manifestações culturais se apropriaram da palavra. Na música “Cálice” (1978), Chico Buarque rechaça a bebida amarga. Em “Tempo Perdido” (1986), a banda Legião Urbana contrapõe o suor sagrado ao sangue amargo. A dupla Chitãozinho e Xororó chora um amor não correspondido na canção “Gosto Amargo” (1985).
Na literatura, o escritor Bartolomeu Campos revisita as memórias de uma infância dolorosa em “Vermelho Amargo” (Global Editora, 2017). João Gabriel Paulsen venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2019 com “O Doce e o Amargo” (Record, 2019), contos nos quais ele trata de amor e prazer, mas também de ódio e dor – não é difícil adivinhar que sentimentos o autor considera amargos. Até a Bíblia reforça o sentido negativo do amargor, não por acaso no livro do Apocalipse: “Pega e come. Será amargo no estômago, mas na tua boca, será doce como mel”, diz o profeta João, referindo-se à própria palavra de Deus.
Uma questão de equilíbrio
O que explica, então, que o amargo esteja sendo tão valorizado no mundo contemporâneo, contrariando o que a natureza e a cultura nos impuseram ao longo de milênios? Muito provavelmente, porque os mestres da cozinha e do bar descobriram formas de equilibrar o amargor, fazendo com que ele carregue junto de si uma complexidade de notas deliciosas e envolventes, que jamais seriam perceptíveis em uma colherada de geleia ou em um licor adocicado.
Um dos bartenders mais prestigiados de São Paulo, Jean Ponce, do Guarita Bar, conta que o amaríssimo Fernet é cada vez mais popular nos drinques autorais, dentro de coquetéis que calibram seu sabor com elementos doces e ácidos. “É uma questão de evolução do paladar. Eu já achei o Negroni amargo, mas hoje o considero até doce”, diz Ponce.
Mestres da cozinha e do bar descobriram formas de equilibrar o amargor, fazendo com que carregue junto de si notas deliciosas e envolventes
No universo cervejeiro, também é nítida a queda do brasileiro pelo amargor. Sócio e professor da escola Instituto da Cerveja, Alfredo Ferreira ajuda a traçar essa linha do tempo – no passado recente, o mercado era dominado pela Pilsen, com teor de amargor lá embaixo, na faixa de 7 a 9 IBUs (sigla para international bitterness unit, ou unidade internacional de amargor, em tradução livre). A Pilsen serviu de porta de entrada, mas o consumidor começou sua escalada rumo às cervejas mais amargas assim que elas chegaram ao mercado. Passou pelas Weizenbiers e Witbiers, cervejas de trigo das escolas alemã e belga, cujo IBU costuma atingir 17, até chegar às Lagers e IPAs, com IBU de 20 para cima.
A razão de tanto apreço pelas amargas? O lúpulo de qualidade superior, que não agrega apenas amargor – as flores são cultivadas com o propósito de incorporar uma enorme gama de aromas, notas essas que aportam complexidade à bebida. Tem gente que se entusiasma tanto que vai além, buscando estilos que só fazem sucesso entre os aficionados, como o Imperial ou Double India Pale Ale, que pode chegar a 120 IBUs. “São cervejas que despertam a curiosidade do consumidor mais pela experiência inusitada, mas podem até assustar no primeiro gole”, diz o especialista.
O único amargor que tem perdido espaço no universo das bebidas é o do café. Fácil entender por quê – nesse caso, o sabor amargo é sinal de defeito. Cafés cultivados e beneficiados sem cuidado têm problemas sensoriais graves, que a torra excessiva ajuda a disfarçar. A solução é combater o amargor com colheradas fartas de açúcar, hábito arraigado nas padarias, botequins e residências Brasil afora. No interior de tradições caipiras, resiste inclusive o hábito de coar o café no dulcíssimo caldo de cana fervente. Já as cafeterias da nova geração, dedicadas aos cafés de alta gama, estimulam o consumo da bebida sem traço de açúcar, por ser totalmente livre de amargor.
A expertise brasileira
O equilíbrio entre amargor e outros sabores também está na raiz de receitas culinárias tradicionais mundo afora, segundo Renata Braune, head chef da escola Le Cordon Bleu São Paulo. É o caso da endívia gratinada com presunto cru, famoso prato francês, e do radicchio italiano, que comumente ganha a companhia de queijo gorgonzola. “O amargo é um sabor poderoso. Se eu entro com notas de gordura, acidez e até picância, equilibro a receita e atenuo o amargor”, ensina.
Não nos damos conta de que usamos tantos elementos amargos. Basta ver a couve com feijoada: a verdura amarga equilibra a gordura do prato
Na cozinha brasileira, o amargo é presença cativa faz tempo – e, instintivamente, soubemos dosá-lo da maneira que, hoje, os professores de gastronomia ensinam nas faculdades. “A gente não se dá conta de que usa tantos elementos amargos. Basta ver a combinação de agrião com rabada, ou de couve com feijoada: a verdura amarga equilibra a gordura do prato”, diz Mara Salles, chef do restaurante Tordesilhas, em São Paulo, e dedicada pesquisadora da culinária tradicional brasileira. Em suas andanças pelo Brasil profundo, Mara teve oportunidade de conferir de perto a relação que cada região tem com o sabor amargo. Embora jiló, almeirão, catalonha e chicória, os nossos campeões de amargor, apareçam em feiras de norte a sul, é no Nordeste, ela diz, especialmente no sertão, que eles são mais apreciados. “Acredito que pessoas com vínculo forte com a terra são mais abertos aos alimentos que o bioma oferece”, afirma a chef.
Quem duvida que o sabor amargo faça sucesso na mesa do brasileiro, basta analisar a força que a cozinha da brasa alcançou nos últimos anos – aquele queimadinho típico que deixa os alimentos agradavelmente defumados também é amargo. E não é só na churrasqueira que essa mágica acontece. No restaurante paulistano Quincho, cuja cozinha não trabalha com carnes, a chef Mari Sciotti deixa sua lasanha de cebolas-roxas assadas tostar no forno, até que as bordas da massa fiquem pretinhas.
Não teríamos espaço para lançar esse chocolate anos atrás
Poucos alimentos exemplificam o novo status do sabor amargo para o brasileiro, porém, quanto o chocolate. Conforme o teor de cacau foi subindo nas barras, a quantidade de açúcar foi sendo reduzida, a ponto de chegar a zero. No mais recente lançamento da marca Barry Callebaut, o Whole Fruit tem 100% de sua matéria-prima oriunda do cacau – inclusive o açúcar natural, que vem da polpa da fruta.
Head chef da Chocolate Academy, escola mantida pela Callebaut em São Paulo, o francês Bertrand Busquet chegou há 11 anos ao país e, como todo estrangeiro, se impressionou com o gosto do brasileiro pelos sabores bem doces. Em pouco mais de uma década, viu o chocolate ao leite perder gradativamente o lugar de mais vendido – atualmente, ele conta, o chocolate mais adocicado iguala em vendas com o 70% cacau. Mas o Whole Fruit, na sua opinião, representa uma evolução e tanto. “Não teríamos espaço para lançar esse chocolate anos atrás.”
Tudo indica que, em pouco tempo, o adjetivo amargo terá outro significado no dicionário, na literatura, na música e até nos ditados populares – será que um dia chegaremos a considerar que uma vida amarga é cheia de sabor?
Este conteúdo é parte de uma série sobre o sabor amargo, produzida com o apoio da cerveja Becks.