Coluna do Observatório da Branquitude: Tanto mar — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

Tanto mar

O Império Português foi o responsável por três longos séculos de tráfico negreiro e, a partir de 1822, o Estado Brasileiro fez uma opção pela continuidade da escravidão como principal motor da economia

01 de Maio de 2024

Não me venha dizer que é uma vitória a declaração do chefe de Estado de Portugal, Rebelo de Sousa. Na última semana, ele afirmou: “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”.

Poderia dissecar a própria declaração em si, questionando os pontos de interrogação da frase, afinal de contas não há dúvidas da participação protagonista de Portugal no maior crime humanitário da história. Mas aí cometeria o erro de aviltar esse debate, tal qual ele fez. O que pretendo aqui é honrar a tradição da historiografia brasileira e estabelecer um debate de alto nível sobre o tema.

Reparar, do ponto de vista do Estado democrático de direito, sugere que podemos assumir responsabilidade por atos praticados no passado (seja ele distante ou não), mas que possuem rebatimento no presente. Ou seja, que determinadas ações do Estado produziram efeitos negativos em uma pessoa ou um grupo populacional, e que o próprio Estado é responsável por reparar essas ações, criando condições de diminuição dos efeitos dos atos lesivos.

Não é exatamente novidade no Brasil a agenda reparatória por atos estatais. Somente entre 2002 e 2006, de acordo com levantamento do Deutsche Welle (DW), quase 40 mil indenizações foram concedidas a pessoas que, de alguma forma, sofreram danos por atos de motivação política. Aproximadamente R$ 10 bilhões foram pagos até julho de 2018, em sua maioria para a classe média universitária, militares e sindicalistas por conta da ditadura militar.

A partir daqui temos algumas nuances fundamentais que devem ser encaradas nesse debate. O primeiro deles é sobre o papel do Brasil no contexto da escravização em nosso território. Se não resta dúvidas de que o Império Português foi o responsável por três longos séculos de tráfico negreiro, também não há contestação de que a partir de 1822 o Estado Brasileiro fez uma opção pela continuidade da escravidão como principal motor da economia, além, é claro, dos grandes proprietários brasileiros donos de pessoas escravizadas.

Se o Estado brasileiro é responsável pela escravização e deve reparar seus cidadãos, esperamos articulação para ações efetivas

Nesse sentido, foi de se estranhar a comemoração do Ministério de Igualdade Racial do Brasil com a declaração de Rebelo de Sousa. Se o Estado brasileiro também é responsável e também deve reparar seus cidadãos, o que esperaríamos não seria comemoração, e sim, articulação para ações efetivas reparatórias, como a criação de fundos específicos, sítios de memória, entre outros.

O Brasil tem um papel particular no debate global sobre reparação, pois pode cobrar do estado português e do próprio estado brasileiro. Não à toa, organizações do movimento negro brasileiro, como Geledés, CEERT, Peregum, Instituto Marielle Franco, nós do Observatório da Branquitude, e várias outras, têm assumido protagonismo em fóruns internacionais.

É possível pensar no Atlântico como uma grande encruzilhada de desterritorialização e como um grande portal de desumanização de pessoas oriundas do continente africano. O maior intelectual do Brasil, Nei Lopes, nos ensina a palavra bantu Kalunga, que significa imensidão, mar e, por assim dizer, morte. Aqui mora o segundo ponto.

Esse debate precisa, e vem sendo feito, a partir da articulação com o continente africano. No nosso caso específico, com os países lusófonos e na triangulação para exercer pressão no Estado Português.
Por último, é importante dizer que esse debate é incontornável e a pressão sobre reparação será irremediavelmente forte até que declarações oficiosas não sejam mais suficientes para dar conta de tanto mar.

THALES VIEIRA é sociólogo (PUC-Rio), mestre em antropologia (UFF) e doutorando em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou no poder público, em organismos internacionais e em fundações. Pai da Naíma, Nina e Maya, é fundador e diretor executivo do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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