Fernando Luna
A vacina e o TikTok
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre o maoísta Zé Gotinha, o cofrinho favorito da República, o sumiço de Riobaldo e as trincheiras da alegria
“TEMPO VIRÁ. UMA VACINA PREVENTIVA DE ERROS E VIOLÊNCIAS SE FARÁ”
Cora Coralina, 1983
O Brasil é mesmo o país do futuro: o movimento antivacina chegou aqui antes da vacina.
Em vez de antecipar o problema para criar logo a solução, nossos nacional-negacionistas antecipam a solução para criar logo o problema.
A vacina parece cada vez mais próxima? Hora de questionar a segurança da imunização. A ciência avança em velocidade recorde? Oportunidade para novas teorias da conspiração.
Nesta terra, em se plantando boatos, tudo dá. Afinal, quem ainda acredita que Jair Bolsonaro tem condição mental e moral de ser presidente, acredita em qualquer coisa – menos na Terra redonda, porque não é trouxa.
Acredita que a vacina altera o DNA e cria humanos geneticamente modificados. Que é feita de fetos abortados em clínicas clandestinas. Que faz parte da estratégia do Bill Gates para implantar microchips na população e controlar o mundo.
(Ainda que Mark Zuckerberg tenha descoberto um jeito mais simples de fazer isso, com o botão de “Like”.)
Mas o governo federal quer mais.
Quer confusão com o maior parceiro comercial, questionando sem evidências a vacina desenvolvida pela China. Detalhe: o fluxo de negócios entre os dois países movimentou US$ 115 bilhões em 2019 – mais que o dobro das transações com os Estados Unidos.
Sem falar que não é só a vacina da China que vem da China. Muitas vacinas em fase final de testes utilizam insumos chineses.
Na escalada da sinofobia, logo nosso Donald Trump tropicaliente sugere um boicote ao TikTok. Periga deixar o país sem o cara que anda de skate ouvindo Fleetwood Mac, sem desafios Eu Nunca/Eu Já, sem o sedutor Mario Jr., sem passinhos matadores e tombos idem. Aí não tem Centrão que salve.
Em seu livro “Vintém de Cobre”, Cora Coralina escreveu sobre uma vacina capaz de transformar prisões em escolas e oficinas. Os versos se encaixam nos erros e violência do discurso anticientífico, cúmplice da pandemia que já matou mais de 1 milhão de pessoas.
A mesmíssima ladainha que denuncia: um espectro ronda o Brasil – o espectro do Zé Gotinha, agente tríplice comunista, maoísta e globalista.
“SÓ A BUNDA EXISTIA, O RESTO ERA MIRAGEM”
Carlos Drummond de Andrade, 1992
Enfim chegamos à fase anal do governo. É uma evolução – psicanalítica, ao menos.
O senador Chico Rodrigues talvez tenha sido literal demais ao ilustrar o novo momento republicano. Mas antes de nos aprofundar nessa questão, sem trocadilhos, devemos recuar um pouco, também sem trocadilhos.
Freud explica que nascemos e já entramos na fase oral.
As excitações se concentram, então, na boca. Daí o atual governo ter vindo ao mundo em compulsão verborrágica. Desde sua posse, o presidente emenda sem trégua um disparate atrás do outro.
Esse período costuma durar cerca de um ano e meio, quando dá lugar ao estágio anal. Lentamente, o que era pura incontinência, espalhando excrescências por aí, passa a experimentar algum controle.
Os analistas políticos têm mesmo apontado uma recente contenção dos arroubos federais. Um abraço no ministro do STF aqui, um afago no Centrão ali, uma discreta cotovelada no olavismo acolá.
Nesse processo de moderação, porém, o bolsonarismo arranhou mais um símbolo pátrio, além da camisa da seleção brasileira de futebol e da Nana Caymmi: a bunda, lindo pendão da esperança.
Logo a bunda, apontada como “preferência nacional” por um dos principais intérpretes do Brasil, Gilberto Freyre. Cantada por Tom e Vinicius, num doce balanço a caminho do mar. E celebrada em prosa e verso pelo nosso maior poeta.
Mineiramente, Drummond deu o fora antes do lançamento de seu livro erótico, “O Amor Natural”, publicado apenas cinco anos após sua morte. “Era Bom Alisar seu Traseiro Marmóreo” é um de seus vários poemas calipígios.
Toda essa tradição foi maculada pelo ex-vice-líder do governo e seu cofrinho de 33.150 reais.
Há males que vêm para o bem. A fase anal já teve efeito retentivo do autoritarismo e desmistificador do fim da corrupção. E pouco importa se a evolução psicossexual foi motivada pela prisão do Fabrício Queiroz.
Serviu também para revelar o único manual capaz de decifrar os intestinos do poder: esquece “O Príncipe” maquiavélico, e mergulha no freudiano “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”.
“NA REALIDADE NADA ESTÁ PERDIDO, OU PODE SER PERDIDO”
Walt Whitman, 1888
Nada, a não ser o livro que se empresta. Esse não tem volta.
De resto, é o tal ciclo da vida de Hamlet, Simba e Beyoncé. Tudo se reencon-tra por aí, tudo volta de alguma forma: amor, chave do carro, cachorro de criança triste, caminho de casa, óculos pra perto, amizade sincera.
Ou, como resume Walt Whitman em seu poema “Continuidades”, uma das últimas inclusões em seu monumental “Folhas de Relva”, “O sol agora baixo no poente levanta-se em manhãs e meios-dias contínuos”. Eterno retorno.
Mas livro, não.
Livro emprestado é livro perdido. Nem adianta incluir seu telefone de conta-to no Ex-libris, instalar tornozeleira eletrônica na contracapa, anotar na agenda pra cobrar a devolução dali a um mês.
Funciona desse jeito desde 1455, quando ganhou o formato atual. Antecipan-do o problema, Gutenberg imprimiu logo 180 exemplares da sua Bíblia em latim. Sobraram apenas 48. Os outros 132 foram emprestados e sumiram. Certeza.
Escrevo tudo isso porque, depois de sete meses trancado em casa com a estante bagunçada, decidi por ordem nos livros. Decidi, não. Fui obrigado: biblioteca desarrumada não serve nem pra fundo de Zoom.
Três dias de caos depois, me dei conta de várias ausências. Cadê o Riobaldo do “Rosa, Guimarães”, que deveria estar bem ali entre o remador de Ben-Hur do “Rodrigues, Nelson” e o pirotécnico Zacarias do “Rubião, Murilo”?
Será que as farras noturnas de “Bukowski, Charles” e “Bocage, Manuel” es-pantaram a sossegada vizinha “Bishop, Elizabeth”? Entre o “Saks, Oliver”, revelando o que acontece entre nossas orelhas, e o “Sagan, Carl”, especu-lando sobre os confins do universo, desapareceu “Sapolsky, Robert” com seus babuínos tão humanos.
O fato é que sumiram Grande Sertões: Veredas, Poemas do Brasil e Memórias de um Primata, entre alguns outros. Se você está lendo isso e ficou com eles, bem, aproveite. Quem sou eu pra exigir um livro de volta.
Na minha arrumação, encontrei um “Mãe, Valter Hugo” que tomei emprestado há tempos. Até pensei em devolver, mas a verdade é que estamos felizes juntos. Felizes para sempre.
“DEFENDER A ALEGRIA COMO UMA TRINCHEIRA”
Mario Benedetti, 1979
Ah, a primavera com seus ipês floridos e sabiás melodiosos – a estação perfeita para odiar fascistoides.
Não, não, não.
Olha a lua mansa a se derramar – pronto, agora vai logo postar qualquer coisa contra esse governo desgracento.
Para. Segura.
Nunca deixe um idiota determinar como você se comporta. Mesmo se o idiota for presidente da República. Ou especialmente se o idiota for presidente da República.
Porque, nesse caso, ele já tem maneiras demais de aporrinhar concretamente seu dia a dia, com medidas provisórias, projetos de lei e declarações nauseantes em rede nacional. Sobra apenas o seu humor, último bastião de resistência à estupidez.
Dentro da sua cabeça e dentro do seu fígado, Ele Não.
Há que endurecer, mas sem perder a “Defesa da Alegria”. Esse poema-manifesto foi escrito pelo uruguaio Mario Benedetti, quando seu país estava sob ditadura. Galhardia contra a brutalidade.
Raiva é altamente contagiosa; quando se dá conta, você já está infectado. Não precisa ser assim. Três novos documentários sobre a ditadura militar brasileira apontam o caminho antirrábico.
“Libelu”, vencedor do festival É Tudo Verdade, escuta militantes do movimento estudantil Liberdade e Luta. Uma turma de trotskistas capaz de juntar política e deboche para gritar “Abaixo a ditadura”. Em vez de foice, martelo ou punho cerrado, o símbolo do movimento era um gato azul.
“Fico te Devendo uma Carta sobre o Brasil”, menção honrosa no mesmo festival, começa como um filme sobre Cesar Benjamin, preso, torturado e exilado nos anos de chumbo. Mas logo muda o foco da luta armada para a luta amada de uma mãe pela liberdade do filho.
“Narciso em Férias” é uma espécie de “amarcord” de Caetano Veloso, que relembra seus dias de preso político. Na cela de uma cadeia, o antídoto para a amargura era a canção que tocava no rádio de um soldado. O melhor acalanto já produzido pelo pop: “Hey, Jude, take a sad song and make it better”.
São três casos de amor nos tempos de cólera, de alegria como estratégia de combate.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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