Fernando Luna
Se você saísse à francesa
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre Antonio Cicero, Pedro Almodóvar e a morte, o apê de Édouard Louis e Bruno Mars em Santa Cecília, Felipe Neto na Flip e um título de eleitor na ponte-aérea.
Mas os momentos felizes não estão escondidos nem no passado nem no futuro
Antonio Cicero, 1989
Antologia Profética
Não deve ter dado tempo do Antonio Cicero ver o filme novo do Pedro Almodóvar.
“O Quarto ao Lado”, que mês passado ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, acaba de estrear aqui. Dessa vez, o diretor espanhol não apenas filma seu primeiro longa-metragem em inglês, como a história acontece nos arredores de Nova York, com Tilda Swinton e Julianne Moore.
Ou seja, sem cenários ou figurinos hipercoloridos, sem movida madrileña ou pueblos, sem Rossy de Palma ou Penélope Cruz. E, no entanto, você reconhece Almodóvar em cada fotograma. Um Almodóvar só lâmina. Essencial num melodrama sobre o que há de mais essencial: vida e morte.
(Quantos cineastas sobreviveriam sem suas marcas registradas? Wes Anderson sem cenas simétricas? Tarantino sem violência estilizada?)
Swinton é Martha, correspondente de guerra acostumada a viver perto da morte. Ao receber um diagnóstico de câncer terminal, decide morrer com a mesma dignidade – essa é a palavra que ela usa, exatamente a que Cicero escreveu em sua mensagem de despedida – com que viveu.
Como o poeta, ela também quer alguém por perto no último momento. Ingrid, papel de Moore, aceita ser a pessoa que não deixa Martha na mão e nem sozinha no escuro. Basta estar no quarto ao lado quando a amiga decidir engolir a pílula fatal, comprada clandestinamente pela dark web.
A serenidade com que tudo acontece é muito diferente de frieza. São comoventes as conversas entre as protagonistas, o contraste entre a fragilidade física e a força mental de Martha, a caminhada tranquila em direção ao fim, sem que isso macule a vida vivida.
Numa mesma semana, não-ficção e ficção deram duas lições de como viver a vida até o limite – saindo “À Francesa” no momento escolhido, como Cicero escreveu e sua irmã cantou. Nem um segundo antes ou depois da hora, livre do passado e do futuro. Aqui e agora.
Hoje se eu pudesse eu voltava à cidade/ Só para beijar a cidade na boca
Matilde Campilho, 2014
Se souber de um apê de dois quartos pra alugar em Santa Cecília ou em Laranjeiras, manda uma DM pro Édouard Louis.
O escritor francês tá atrás de um canto pra dividir com o Bruno Mars, formando uma república de gringos loucos pelo Brasil.
Bruninho já teve aqui quatro vezes. Vestiu a camisa da seleção, tocou “Evidências”, passeou pelo Beco do Batman, comeu feijoada, entornou caipirinha, comemorou o aniversário num boteco, viu Fla-Flu no Maracanã. Entre uma coisa e outra, achou tempo pra mais de vinte shows por todo país. Apareceu até um sósia maranhense, que viaja por aí fazendo cover de “Uptown Funk” e libera o cantor pra voltar aos Estados Unidos.
Louis não ficou atrás.
Veio pra Flip e fez valer a palavra “Festa” da sigla: tava em todas, na pista, no papinho, noite adentro, madrugada afora. Rolezeiro, ainda se jogou em São Paulo e Rio. Jantou com novos amigos, foi à Casa de Francisca, falou no Cultura Artística, assinou umas duas tiragens de livros, fez selfies o suficiente pra congestionar o iCloud, caiu no samba, gravou programa de tevê. Seu dump de outubro vai parecer publi da Embratur.
Os dois são parte de uma tradição de estrangeiros que desafiam nosso complexo de vira-latas. Um elenco que escolheu ficar ou estender ao máximo a estadia nessa terra em que se plantando tudo dava – agora só dá soja.
Jimmy Page trocou o Led Zeppelin pela Chapada Diamantina. Outro Jimmy, o Cliff, deu um tempo da Jamaica pra circular pelo Pelourinho. Nick Cave batia ponto na Mercearia São Pedro. Lenny Kravitz tem uma fazenda em Duas Barras. Harry Styles e Lady Gaga ainda não se mudaram, mas tatuaram homenagens ao Brasil.
Cada um deles interpreta à sua maneira os versos da poeta portuguesa Matilde Campilho, escritos após uns anos morando no Rio. Não basta andar de mãos dadas com a cidade brasileira que decidiu chamar de sua: tem que beijar na boca.
Para escutar os pássaros é preciso que cesse o bombardeio
Marwan Makhoul, 2019
Cada Festa Literária Internacional de Paraty é lembrada pelo autor que se destaca entre as dezenas de escritores convidados.
Já tivemos a edição da Annie Ernaux, o ano do J.M. Coetzee e a vez da Toni Morrison, pra ficar em três vencedores do Nobel que sobreviveram aos tropeços no calçamento pé-de-moleque.
Essa foi a Flip do Felipe Neto.
(Economiza seu comentário indignado, já fizeram um bombardeio deles desde que o influenciador entrou na programação. Aproveito o poema citado pela curadora Ana Lima Cecílio ao apresentar o palestino Atef Abu Saif e peço um cessar-fogo pra escutar os pássaros.)
Vai ter quem prefira chamar de Flip do Édouard Louis ou do Mohamed Mbougar Sarr. Justo. Os dois têm 30 e poucos anos, são nomes em ascensão na literatura mundial e títulos como “O fim de Eddy” e “A mais recôndita memória dos homens” abriram espaço no cânone contemporâneo.
Emocionante as veias saltando de raiva no pescoço do Louis, quando enumerou as políticas francesas que destruíram seu pai. Bonito ouvir Sarr ler um trecho de seu livro, dizendo que o passado não nos assombra, somos nós que assombramos o passado ao olhar pra trás.
(Quem sabe em 2044 aconteça com um deles o que aconteceu agora com a sul-coreana Han Kang: entre o café da manhã pra espantar a ressaca e a primeira mesa do dia, leremos num site que levou o Nobel com apenas 50 e poucos anos e lembraremos que passou pela Flip antes da consagração.)
Tudo isso e muito mais fez valer encarar a estrada e a chuva.
Mas a multidão cercando o Auditório da Matriz lotado no horário do Felipe Neto valeu como declaração de princípios: ler não devia ser atividade exclusiva de uns poucos privilegiados.
“Leitura não é hábito, é paixão”, defendeu o youtuber e criador do clube do livro mais popular do país. Hábito é exercício físico, comer alface, passar fio dental. Hábito é pra sobreviver, paixão é pra viver.
São São Paulo quanta dor, São São Paulo meu amor
Tom Zé, 1968
São São Paulo, meu amor: você deixou Pablo Marçal fora do segundo turno, sua linda. São São Paulo, quanta dor: mas precisava dar 28% dos votos pra ele, sua loka?
“Porém com todo defeito/ te carrego no meu peito”, como canta o poeta tropicalista Tom Zé na primeira faixa de seu disco de estreia.
É portanto de coração pesado, e ainda quicando com a apuração apertada de domingo, que tomo uma decisão adiada há muito. Vou transferir meu título de eleitor pra cá.
Sim, embora more há 30 anos em São Paulo, ainda tô registrado pra votar no Rio de Janeiro. Não sou de precipitações ou decisões açodadas: vai que resolvo voltar pra perto do mar.
Imagina a apurrinhação de transferir novamente meu domicílio eleitoral, encarando duas vezes toda burocracia administrativa. Poupatempo? Quem frequenta sabe que ninguém sai de lá com mais tempo que entrou.
E, com seis ex-governadores fluminenses afastados ou presos nos últimos anos, tava claro que um voto consciente fazia mais falta no balneário do que no planalto paulista – até que 1,7 milhão de cidadãos fizeram o M.
Foi por um triz a derrota de um candidado condenado por furto, falsificador de laudo médico, disseminador de fake news, protagonista de baixarias inéditas até pros rebaixados padrões nacionais.
Então só me resta dizer adeus, Country Club, minha seção eleitoral de frente pra praia de Ipanema. Alguém há de ocupar meu lugar naquela trincheira VIP e distribuir bolas pretas pros candidatos que assombram o Rio.
Vou descobrir, afinal, se a lenda urbana é mesmo uma lenda: diz que quem transfere o título é convocado pra ser mesário. Todo mundo se esbaldando na festa da democracia, e você lá sentadinho num canto.
Mas se o dever cívico me chamar, eu vou. Só temo não ter estrutura emocional pra ver tão de perto vizinhos enfileirados, digitando na urna eletrônica um número contra tudo que a própria urna representa.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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