Coluna da Fabiana Moraes: Uma pequena revelação para meu amigo morto — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

Uma pequena revelação para meu amigo morto

Nunca contei para Miró, poeta recifense que nos deixou há dois anos, sobre o dia em que eu o reencontrei, inesperadamente, a mais de 3 mil quilômetros de casa

28 de Agosto de 2024

Ele estava muito magrinho. Usava uma camiseta branca de algodão e estava sem seus conhecidos colares de contas gordas. Os olhos puídos, vermelhos.

Magrinho, magrinho mesmo, algo como 40 e poucos quilos para um cara de 55 anos, por volta de 1,70. E ainda por cima era de leão.

A saudável ironia que o caracterizava, no entanto, estava toda lá:

“Como são lindas as pessoas passeando com seus cachorrinhos nas manhãs de sábado, Fá!”, disse bem alto, quase como se estivesse declamando, quando entrou em minha casa. Eu, que tinha cachorros e passeava com eles pelo Espinheiro, ri muito. Debochar dos hábitos da classe média era parte preciosa de Miró. Que bom que ele estava melhorando, pensei. Havia chegado, muito debilitado, há pouco mais de uma semana, no final de abril de 2016.

Depois de conversarmos na cozinha, pela manhã, ele geralmente ia para a rede. Ficava olhando o céu, as plantas, mexia em um ou outro livro, puxava uma conversa, fofocava. Não parava quieto. Flavão, amigo de Miró desde que nós três morávamos no hoje inexistente conjunto Muribeca, sempre fazia chacota: dizia que o poeta nunca tinha paciência para ler nada. “Tu não lê um livro, Miró! Um livro!”.

Um dia fiz um teste: perguntei se ele havia gostado de “O Nascimento de Joicy“, que escrevi e lancei em abril de 2015. Em julho do mesmo ano, presenteei Miró com um exemplar. Ele disse que havia gostado, elogiou minha escrita. Fiquei feliz: quando o conheci, no fim dos anos 1980, eu tinha uns 13 anos, morava no Alto José Bonifácio com meu pai e vivia entre casa e escola. A rua e as turmas eram mistérios. Quando ia para a casa da minha mãe em Muribeca, um portal se abria. Via Miró declamar poesias no que chamávamos de “Rego Filosofal”, uma vala de cimento sob algumas árvores. Miró tinha coragem. Miró não tinha vergonha de si. Miró era artista. Me sentia muito pequena e matuta ao seu lado. O que eu, que pouco tempo antes dançava as músicas de Xuxa, fazia perto dele? Então, me calava. Um dia, ele me fez ouvir de verdade o que Gil dizia na música Refazenda. Fiquei deslumbrada. Nunca mais a escutei sem pensar nele.

Trinta anos depois, nós dois escrevíamos para viver e assinávamos livros um para o outro.

Naqueles dias, na minha casa, Miró falou muito sobre si. De como se sentia usado. De como percebia que muita gente, apesar dos muitos elogios, o instrumentalizava. Estava mal, miúdo, sem juba. Se afastava do homem que eu tinha reencontrado, embora já adoecido, em outubro de 2014. Eu soube que ele estaria na casa de um amigo em comum, no centro de Recife. Chamei Flavão e fomos para lá. Não nos víamos, os três, há anos. Ficamos felizes: há uma foto nossa em um sofá, dando risada. Procurei, mas não achei a imagem.

O poeta e cronista que me intimidava passava por uma solidão tão brutal quanto sua dependência ao álcool

Semanas depois daquele encontro, fui até Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes. Agora, estava vestida também de repórter: faria uma matéria longa sobre ele. O poeta e cronista que me intimidava passava por uma solidão tão brutal quanto sua dependência ao álcool. Era duro de ver: Miró habitava sozinho um edifício com 32 apartamentos (como eram todos em Muribeca, bairro desenganado pela Defesa Civil e totalmente demolido em 2015).

Chegamos, eu e o fotógrafo Ricardo Labastier, no meio da manhã. O apartamento estava quase vazio. A cozinha não tinha nem fogão, nem mesa, nem geladeira. Um sofá velho na sala. No quarto, uma cama de solteiro e um quadro grande no qual o artista Rinaldo pintou Miró. Percebi que ele estava em conflito: animado, mas também desconfortável. Não era exatamente sua amiga Fá, como ele me chamava, que estava ali. Era uma repórter com um crachá. Eu sentia que o leão estava feliz. Mas um leão ferido custa a se esconder. Ele estava meio melancólico, talvez puto.

 Arquivo pessoal

Passamos horas ali: almoçamos juntos, Miró declamou poesias tanto no apartamento quanto na barraca onde ele geralmente fazia suas refeições. Tomou uma cerveja: garantiu, sem que ninguém perguntasse, que estava se cuidando, e que uma gelada inocente era melhor que a cachaça. Eu tomei um copo com ele, que falou dos planos de sair do prédio e ir morar em Recife. Um grupo de amigos o ajudaria com o aluguel. Mas, tempos depois, meados de 2015, o poeta passou muito mal e quase morreu. Foi levado para o Hospital Oswaldo Cruz, Recife. O médico e poeta Wilson Freire, que sempre cuidou da humanidade de Miró, o socorreu (ele dirigiu em 2008 um documentário sobre o poeta, aqui).

Miró não voltaria mais para Muribeca.

*

Era 30 de abril de 2016 e naquele dia seria lançado o livro “João Flávio Cordeiro da Silva – ‘Tô Miró'”. Uma brincadeira que ele fazia com “tô melhor” e também uma relação com o bom estado de saúde do poeta depois de cerca de dois meses internado.

Mas, quatro meses depois de deixar o Oswaldo, a dependência química passou de novo uma perna no leão.

Flavão encontrou Miró desacordado em um quarto de pensão, no centro da cidade. Um leão em fiapos.

“João Flávio Cordeiro da Silva – ‘Tô Miró'” reúne 30 textos do poeta, todos desenhados por ilustradores, entre eles o próprio Flavão. Meu amigo tinha como missão levar o poeta até Olinda, onde aconteceria o lançamento. Foi até o Mercado da Boa Vista, onde o artista nascido em seis de agosto de 1960 costumava beber, comer e declamar. Disseram que Miró estava em casa e Flavão foi até lá. No meio do caminho, encontrou uma amiga, a jornalista e produtora Lenne Ferreira.

Ambos encontraram o leão desacordado e o levaram até o Capes, serviço de saúde voltado para pessoas com dependência química. Mas Miró não foi atendido (faltava vaga) e assim seguiu com Flavão até Olinda. Enquanto amigos e fãs celebravam seu livro e sua fortuna poética lá fora, ele permanecia em um quarto reservado: não tinha condições de ficar em pé. Não tinha, também, condições de ficar sozinho. Depois de dois dias no apartamento de Flavão, ele seguiria para minha casa.

*
Foi quando me falou sobre como se sentia usado.
Foi quando me falou como estava dolorido.
Foi quando mostrou a juba em curtos e poucos fiapos.

Sabia que havia na cidade uma competição na qual apostavam quem seria o próximo poeta a morrer. Seu nome estava na lista.

Sua óbvia tristeza frente à sua desumanização recorrente me exasperou profundamente

A exotificação e a transformação de Miró em simplesmente um poeta “marginal”, em algo como um bêbado folclórico, não era novidade para mim. Mas ver sua óbvia tristeza frente à sua desumanização recorrente me exasperou profundamente. Escrevi um post meio irado no Facebook. Reproduzo um trecho (aqui, o texto completo):

“Não terás um centavo da minha alma”
Miró é leonino, sabe. Orgulhoso. Sabe que é um cara que é uma galáxia. Sabe a diferença entre vampirismo e respeito. Esse troço abstrato que no fim agrada a todo signo.
Todo mundo gosta de Miró, né? “Porra, o cara é uma figura.” É. Miró. Uma figura. A vida dele (“graaaaaaande poeta!”, é comum ouvir) é compartilhada entre muitos, muitas. Às vezes me parece um incômodo reality show. Miró está bebendo, Miró não está bebendo. Miró está bem, Miró não está bem. Miró está em Muribeca, Miró está no centro. Vamos comer Miró.

Há quase dois anos, depois de um longo afastamento, o reencontrei e vi, desmontando, que faziam uma espécie de aposta: será o próximo poeta a morrer. “Vai ser do mesmo jeito que os outros.” Álcool. Vai morrer. Quer apostar?
(…)
Miró voltou a beber em um 25 de dezembro. Estava sozinho em uma pensão. Não segurou a onda. Você seguraria? Não é preciso pena, comiseração, infantilização. Ele não precisa disso. Ele precisa de cuidado real. De gente ao redor que entenda que ele está no corre, mesmo, para se recuperar de anos de corpo castigado. Não é brincadeira. Não é engraçado. Não é folclore. Importante dizer: Miró, apesar de hoje enfraquecido, está produzindo. Mostrou novos poemas hoje. Me disse um título que me emocionou. Depois falou de outro que sintetiza tudo isso que eu não consigo dizer, pois não chego perto do talento dele: “Não terás um centavo da minha alma.”

*
Dias depois desse post, eu estava em Caruaru, na universidade. Uma colega me ligou dizendo que encontrou Miró desacordado no Pátio de Santa Cruz, perto de onde morava. Conseguiu despertá-lo e o levou até uma lanchonete. No outro dia, quando voltei para casa, ele não estava. Chegou à noite e contou, animado, que havia conseguido tratamento para os dentes. Jantamos juntos. Falei da ligação, se ele lembrava onde estava, se tinha perdido o celular. Sabia que ele às vezes, sem grana, trocava ou vendia seus pertences. Notei que ele não gostou. Provavelmente, se sentiu vigiado. Disse que estava bem e que logo alugaria um quarto melhor para ele. Naquele momento, diversos amigos se reuniram para tentar encontrar um apartamento ou quarto, de preferência longe do Mercado da Boa Vista.

Viajei novamente e, na volta, Miró tinha ido embora. Cerca de uma semana depois, foi socorrido e internado em um centro de recuperação de referência no estado, o Instituto Raid. Começaria, pela primeira vez na vida, uma terapia. Voltaria para o Raid diversas vezes.

*
Os médicos permitiram que Miró, dois meses depois de sua chegada, saísse durante o dia e retornasse no fim da tarde. Não podia beber álcool, era o pacto. Em agosto (continuamos em 2016), fiz uma pequena reunião na minha casa: comemoramos os aniversários dele, de Flavão e Alcione Ferreira, fotógrafa e também nossa amiga da época de Muribeca (ela dirigiu um belo filme sobre o conjunto). Foi incrível: o poeta tinha ganhado peso, vestia uma túnica amarela e ostentava novamente um de seus colares de contas gordas. Estava lindo, como sempre foi. Eu pedi para fotografá-lo com as flores que comprei para aquele dia:

 Arquivo pessoal

Em dezembro de 2016, após cinco meses de sobriedade, Miró lançou um livro. Seis meses depois, em 2017, lançava outro. Sua poesia tinha voltado com enorme força: naquele ano, Miró seguiu comigo para o campus da UFPE em Caruaru, onde deu uma aula inesquecível e se apresentou. Em 2018, o festival literário A Letra e a Voz prestou homenagem ao leão.

“Já vivi muita coisa, já vendi nove livros enquanto atravessava uma ponte”, disse ele na coletiva de imprensa.

 Arquivo pessoal

*
Naquele mesmo 2018, em abril, fui para o Sul do país a trabalho. Passaria uma semana perto de Florianópolis. Uma colega, a professora Raquel Wandelli, sabia que eu estava em Santa Catarina. Aproveitou a ocasião e me chamou para palestrar em uma universidade, a Unisul, na cidade vizinha, Palhoça. Nunca esqueci: o clima político estava terrível e um ônibus da caravana promovida por Lula pelo país havia sido baleado.

Na universidade, a turma havia trabalhado o livro “O Nascimento de Joicy”. No fim da conversa, Raquel me ofereceu uma carona de volta para o hotel, pedindo apenas uma parada rápida em sua casa. Queria um autógrafo em seu exemplar. Fiquei aguardando no carro. Quando ela voltou, disse, meio constrangida, que havia comprado o livro em um sebo e que já havia uma dedicatória escrita nele. Eu ri e disse que não seria um problema. Até que abri o livro e vi a minha letra:

 Arquivo pessoal

Ter de volta em minhas mãos, a 3.358 quilômetros de distância de Recife, o livro que eu dedicara a Miró três anos antes, me comoveu profundamente. O caminho que ele fez até ali permanece um mistério que eu quero manter.

Pedi a Raquel para ficar com o livro e lhe ofereci um novo.

Guardo o exemplar comigo e não o empresto a ninguém. É a materialização de nosso encontro, cheio de abraços e afastamentos

Miró morreu de câncer no dia 31 de julho de 2022, uma semana antes de seu aniversário de 62 anos. Eu e meu companheiro, Moacir, o visitamos um dia antes em seu quarto no Hotel Central, onde morou nos últimos anos de sua vida. Eu não sabia que ele estava tão perto de partir. Wilson, que sempre o mantinha no radar, me avisou.

Sempre penso em como ele teria adorado essa história do livro vendido ou abandonado que voltou casa – mas somente se ele não fosse seu personagem central.

Decidi que nunca iria contar, para não constrangê-lo. Guardo o exemplar comigo e não o empresto a ninguém. É a materialização de nosso encontro, cheio de abraços e afastamentos. É a materialização de uma Muribeca que um dia guardou duas pessoas que sonhavam viver à base da escrita, de uma Muribeca que não existe mais.

Eu fui muito feliz ali, descobrindo a dança, o rock, a poesia.

Agora, tem uma peça de teatro (linda) com o nome dele.
Agora, tem uma estátua do poeta no caminho.
Uma estátua tua, Miró.

Do meu parceiro solitário nesse itinerário da leveza pelo ar.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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