Só nascer. Só amar. Só morrer — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Só nascer. Só amar. Só morrer

Parecia que tudo existia de forma a acolher sua mãe. A dar alguma poesia pra sua morte

10 de Julho de 2024

Eu fiquei sabendo que a sua mãe tava morrendo e liguei pro Rafael. “Como faço pra ver o Felipe?”, eu falei. “Ele tá em casa com a Martha”, ele disse. “Ela segue sedada, e ele tá lá com ela”.

Então eu te escrevi. E você me disse mais ou menos a mesma coisa. Que era pra eu ir a hora que eu quisesse. Que você não tava saindo de casa. Que tava numa “espécie de vigília”.

Fui no dia seguinte. Cheguei na General Glicério e, já dentro do seu prédio, disse pro porteiro que tava indo pro seu apartamento. Disse o seu nome. Quer dizer, o seu primeiro nome (você tem dois).

“Só subir”, o porteiro falou. Como era no segundo andar, fui de escada (eu amo ir de escada). Logo nos primeiros degraus, eu comecei a sentir uma coisa que ainda não sei bem o que é, mas que me pareceu uma certa satisfação pela perspectiva de te ver, mesmo em um momento triste.

Depois, me ocorreu também perceber uma certa beleza na aparente simplicidade daquela despedida. Na ausência de hospital, de cadastros e interfones, a morte parecia menos dura. “Como seria bom se a vida fosse mais assim”, eu pensei. Só subir. Só nascer. Só amar. Só morrer.

Percebi certa beleza na aparente simplicidade daquela despedida. Na ausência de hospital, de cadastros e interfones, a morte parecia menos dura

Então eu cheguei no hall do apartamento que você alugou pra ser o último endereço da sua mãe, e reconheci a sua letra em uma das quatro portas que cercam o espaço que elas dividem. Nela, havia uma fita crepe onde lia-se “entre direto”.

Parecia que você tinha combinado com o porteiro, que por sua vez tinha combinado com a rua, e que tudo existia de forma a acolher sua mãe. A dar alguma poesia pra sua morte. Afinal, ela passou a vida com escritores, não seria justo as palavras irem embora agora (elas não foram).

“Entrei direto”, como você pedia. Abri a porta, sorri, te dei um livro e um caderno de desenho daquela loja portuguesa que eu adoro e nos abraçamos. “E o seu pai?”, eu perguntei. “Tá muito triste”, você respondeu. Só eu chorei – atrizes sempre choram – mas você teve falas muitos boas. Além de ter me perguntado se eu queria ver a sua mãe (claro que eu quis).

No dia seguinte ela iria embora, mas ali a gente não sabia. De modo que falamos das dificuldades que vocês três estavam passando nos últimos dias, mas também dos gatos recém-adotados, do nosso filme
e dos nossos planos. Em seguida, tomamos um café com a Clara e com a Lola, e eu fiquei tentando te convencer a fazer uma tatuagem.

Quando, menos de vinte e quatro horas depois, eu voltei pro velório, fui ver sua mãe de novo. Dessa vez, você não me chamou, mas eu fui assim mesmo. E ela estava tão linda! Tão linda que eu disse pro seu pai que queria morrer como ela. Vestida de Frida Kahlo, e cheia de objetos mexicanos à minha volta.

Objetos mexicanos, gatos sem nome, e gente com silencio.

(para Felipe e Eric Nepomuceno)

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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