Marilene Felinto
Quando morrem as mulheres extraordinárias
Quando elas sumirem de vez, que eu já esteja bem longe deste mundo raso, de retrocesso criminoso, de mediocridade viral
As grandes mulheres são as que pensaram como eu gostaria de ter pensado, disseram coisas que eu queria ter dito, fizeram coisas que eu queria ter feito, escreveram coisas que eu queria ter escrito.
Quando morrem as mulheres importantes — e tantas já se foram, a exemplo da recente perda da extraordinária Maria da Conceição Tavares, a economista defensora das finanças públicas em favor dos pobres, a professora espetacular, quando a palavra “espetáculo” era sinônimo de solidez de pensamento, de originalidade subversiva —, quando elas morrem, amplifica-se o deserto de personalidades interessantes, nestes tempos de estrelismo cabotino.
Nesta era da aparência, em que ser significa aparecer até a náusea, autopromover-se, atingir padrões de mercado, tornar-se “marca” que “viralize” — termo detestável, este “viral”, de “vírus”, sintomático da doença devastadora desta contemporaneidade de epidemias globais —, marca que “brilhe” na vitrine das redes sociais abarrotadas de egos inflados por uma mídia inócua e despolitizada, nesta era da caricatura de pessoas, faltarão mulheres que importem.
As grandes mulheres que conheço e formaram mulheres como eu — seria exagero falar em “geração” —, resistiram praticamente sozinhas, enfrentaram a misoginia, o machismo, o racismo, a homofobia e a desigualdade social e de gênero quando esses conceitos atuavam na escuridão, ou ocultados à força pela brutalidade das ditaduras brasileiras.
Nesta era da aparência, em que ser significa aparecer até a náusea, autopromover-se, atingir padrões de mercado, nesta era da caricatura de pessoas, faltarão mulheres que importem
As mulheres que me interessam são aquelas que se rebelaram, as revolucionárias, algumas já quase centenárias ou nonagenárias, como Elizabeth Teixeira (99 anos), a líder das Ligas Camponesas de Sapé, na Paraíba, nos anos de 1950, combatente pelos direitos dos camponeses à terra e à dignidade (a quem tive a rara oportunidade de conhecer e entrevistar na década de 1990). Ou como Luiza Erundina (90 anos), outra paraibana que ainda persevera na militância contra a injustiça social e em defesa dos direitos humanos neste país da desigualdade vergonhosa.
De Conceição a Elizabeth e Erundina, essas mulheres são militantes ferrenhas contra a sanha do capital financeiro predador, a truculência da oligarquia latifundiária, a violência da política preconceituosa, que segue discriminando, inferiorizando e assediando mulheres que ousam e ousaram peitar parlamentares opressores, covardes.
As mulheres que me interessam superaram a prisão política, a clandestinidade, a deportação e a tortura. Da moçambicana Graça Machel Mandela (que também conheci e entrevistei no início dos anos 2000) à americana Angela Davis e à brasileira Dilma Rousseff, essas mulheres se sobressaíram, venceram, desafiando regimes totalitários, racistas e necropolíticos. São mulheres que não se deixaram subjugar, que atuaram em guerras anticolonialistas, que lutaram por libertação e independência de nações, que tiveram a coragem de presidir países, de defender sistemas socialistas pelo bem das maiorias, a despeito da hostilidade aberta contra elas.
Olhemos agora para o triste cenário atual: cadê o movimento feminista, a mulherada das novas gerações deste Brasil bizarro, que neste exato momento deixa livres homens sem moral se meterem a legislar contra a mínima autonomia e o mínimo direito de as brasileiras governarem seus próprios corpos e seus destinos? Cadê essas mulheres de 20, 30, 40 anos de idade, que deveriam marchar até Brasília, protestar contra a barbárie do projeto de lei 1904/2024, exigir respeito e garantia de direitos de um Congresso Nacional de machos retrógados, incivilizados, encarceradores, dispostos a livrar a cara de estupradores e criminalizar de meninas a mulheres adultas em decisões sobre aborto?
Cadê o movimento feminista, a mulherada das novas gerações deste Brasil bizarro, que deixa livres homens sem moral se meterem a legislar seus corpos e seus destinos?
Onde está este mulheril jovem que não fala, que não se mobiliza, que não se mostra, que não luta? Está inerte, acomodado nas redes virtuais, produzindo “vidiotas” (vídeos idiotas, tiktokers), em que expõem suas caras risonhas e suas falas apelativas e oportunistas para se tornarem fenômenos da internet, celebridades ocas, vulgaridades constrangedoras. Cadê a Marcha das Vadias?
Quando morrem as mulheres extraordinárias, nesta era de cabotinismo performático, em que ser é sinônimo de “publicizar”, de virar negócio de marketing, de ter “penetração” no mercado e de operar “comunicação de impacto”, faltará consistência, solidez de pensamento, crítica e autocrítica às atuais gerações de mulheres infláveis, mulheres-produtos midiatizadas.
Quando morrerem as mulheres grandiosas, dessas que não é vergonha dizer que me “influenciaram”com sua sabedoria — e já perdi algumas, como Clarice Lispector, como minha própria mãe e outras anônimas —, que me formaram e me politizaram, como uma Marilena Chaui, quando elas sumirem de vez, que eu já esteja bem longe deste mundo raso, de retrocesso criminoso, de mediocridade viral.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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