CV: Chica Andrade — Gama Revista
Divulgação

CV: Chica Andrade

Diretora brasileira vai a Hollywood finalizar o roteiro de um longa sobre a vida de Erika Hilton

Flávia Mantovani 02 de Abril de 2024

Travesti, negra e de origem periférica, a roteirista e diretora cinematográfica Chica Andrade, 41, desafiou o script traçado por uma sociedade transfóbica para pessoas como ela. Aos 18 anos, saiu da favela onde cresceu, na Baixada Santista, e “se exilou” na capital paulista. “Nos anos 1990, uma travesti não estava autorizada a sair à luz do dia. Mas eu não dava conta de levar uma vida marginal, como minhas amigas. Não tinha nenhum talento para a prostituição, queria fazer arte”, conta.

Chica, que nem cogitava a possibilidade de uma travesti trabalhar com direção de cinema, entrou para os sets de gravação como maquiadora e cabeleireira. Ávida por contar suas próprias histórias, buscou qualificação —formou-se em direção teatral e em direção cinematográfica— e aprendeu a produzir e a dirigir.

O ponto de virada de sua carreira foi “Estamos Todos Aqui”, curta-metragem ficcional sobre uma mulher trans expulsa de casa, premiado em 42 festivais e elegível ao Oscar em 2018. De lá para cá, a batalha para ocupar um lugar na indústria do cinema ainda é diária, mas está gerando frutos: Chica acaba de ser selecionada para participar do American Film Showcase International Workshop, um programa da Universidade do Sul da Califórnia (USC) que oferece consultoria de carreira e de projeto para diretores emergentes. Junto com outros 12 cineastas de diferentes países, ela vai para Hollywood, onde poderá finalizar o roteiro de um longa-metragem sobre a vida da deputada federal Erika Hilton, que vem gravando por conta própria há dois anos. Ela também foi aprovada para desenvolver projetos autorais em dois laboratórios de aprimoramento para cineastas negros, o Diaspora Lab, na Bahia, e o Filma Afro, em Cartagena (Colômbia).

Com filmes e séries de grandes estúdios no currículo, Chica está acostumada a não ver ninguém como ela nos sets de filmagem, mas não se conforma com isso. Nos projetos desenvolvidos por sua produtora, a Bodoque, ela prioriza contratar pessoas trans, especialmente para cargos de liderança, mesmo que precise oferecer cursos complementares de formação profissional. “Para que a demanda por profissionais trans no audiovisual possa ser atendida, eles precisam ter direito à qualificação”, afirma a diretora de “Segura essa Pose”, disponível no Globoplay.

Em conversa com a Gama, a diretora conta como superou uma trajetória de traumas e discriminação e dá dicas para quem quiser seguir seus passos.

Quis lançar um filme sobre meu trauma, sobre a dor de ter perdido minha família trans

  • G |O que te trouxe até aqui?

    Chica Andrade |

    Cresci em uma favela do litoral sul de São Paulo. Eram os anos 1990 e uma travesti não estava autorizada a sair à luz do dia, mas eu não dava conta de levar uma vida marginal, como minhas amigas. Não tinha nenhum talento para a prostituição, queria fazer arte. Tenho um tio gay que me protegeu muito, foi como um pai para mim. Em algum momento da minha infância, ele teve uma videolocadora. Todos os dias eu assistia a filmes junto com esse tio, filmes clássicos, todo tipo de filme. Isso me moldou, moldou minha visão de mundo. E eu entendi muito facilmente a potência que o cinema tinha.
    Por causa das violências e da transfobia, acabei me exilando na capital paulista. Eu queria trabalhar com cinema, mas não conseguia imaginar uma travesti diretora, então o que eu fiz foi entrar como maquiadora, cabeleireira. Depois comecei a atuar, até que, por volta de 2011, decidi abrir uma pequena produtora e vender documentários para canais de TV.
    Eu não tinha nada, só uma câmera emprestada e algumas ideias, mas tinha um enorme interesse por contar histórias. Mesmo que nessa época eu não me apresentasse como mulher trans, por medo da violência, se eu batesse na porta de uma produtora, eu não seria contratada porque não tinha formação. Eu era da favela, tinha sido expulsa da escola aos 12 anos, aprendi a ler e a escrever em grupos de Teatro do Oprimido, lendo as peças.
    A única saída foi abrir meu CNPJ. Me tornei diretora, produtora e roteirista executando as coisas por conta própria. Comecei produzindo para um canal educativo e nunca mais parei.
    Quando ganhei o primeiro edital para fazer meu curta-metragem, “Estamos Todos Aqui”, voltei para minha cidade e todas as minhas amigas tinham sido mortas. Fiquei sem chão. Quis lançar um filme sobre meu trauma, sobre a dor de ter perdido minha família trans.

  • G |Você sofre transfobia no ambiente de trabalho?

    CA |

    Não sofro aquela transfobia direta, de ameaça, violência, como quando eu era jovenzinha, mas sinto isso todos os dias, mesmo em sets grandes. O que eu enfrento hoje é o despreparo das pessoas por eu ser a única ali. Mesmo quando há conversas e cursos de formação sobre esse assunto, elas não são para o trabalhador do chão de fábrica. Já participei de produções com 120 pessoas na qual só os chefes de equipe me tratavam no feminino —e eu não tenho nada de não binária: uso salto alto, maquiagem, tenho peito. Mas o funcionário do catering falava: “O senhor quer comer o quê?” Aquela pessoa não teve preparo, eu era a primeira travesti em uma posição de liderança que ela via na vida. Mas não posso reclamar e deixar sobrar para aquele sujeito que depende daquele emprego para comer. É o nível de contradição que a gente vive.

  • G |Qual é sua missão na profissão?

    CA |

    Meu compromisso, inevitavelmente, é com a população trans. Minha missão é contribuir para que a última geração que apanhou seja a minha. E o que eu puder fazer com meu instrumento de trabalho, vou fazer: contar as histórias da melhor forma possível, alcançar um maior número de pessoas. Não quero ficar limitada a nichos, quero falar com as massas.

Por ser uma mulher negra, travesti, periférica, tenho o triplo de trabalho para poder ocupar uma posição mínima que seja no audiovisual

  • G |O que diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido?

    CA |

    Se uma pessoa trans tiver objetivos parecidos com os meus, de ir para a indústria do cinema, disputando narrativas em espaços complexos e difíceis, recomendo que se associe, se junte, participe de coletivos. Porque sozinha não dá. Só vamos conseguir coletivamente.

  • G |Já pensou em desistir?

    CA |

    Penso em desistir todos os dias. Faço jornadas de 12 a 16 horas diárias, já passei três meses trabalhando direto, sem folga, fico exausta. Por estar nessa condição de mulher negra, travesti, periférica, que não teve direitos básicos na infância, tenho o triplo de trabalho para poder ocupar uma posição mínima que seja no audiovisual. Tenho que estudar inglês, francês, espanhol por conta própria, tenho que dar conta de tocar uma empresa e os meus projetos como produtora e diretora. Pelo tamanho das minhas ambições, sei que não vou conseguir suprir meu desejo de mudança de mundo aos pouquinhos. Então quero estar em todos os lugares, quero participar de tudo, só que fico exausta. Tem dia que eu acordo com vontade de desistir. Mas aí eu me lembro por que estou fazendo isso e me dá um tesão enorme. E falo para mim mesma: bora lá.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação