Coluna da Maria Ribeiro: Até quando a culpa será sempre da mulher? — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Até quando a culpa será sempre da mulher?

Documentário “Roadrunner” faz da morte de Anthony Bourdain uma infeliz e desnecessária contribuição ao patriarcado, ao repetir o bom e velho esquema do silenciamento de sexo feminino

17 de Janeiro de 2024

Sempre fui apaixonada pelo Anthony Bourdain. Seu estilo, seu humor e sua visão de mundo me atingiram em cheio desde o início da sua trajetória como apresentador de TV. Bourdain era uma espécie rara e sui generis: um cara provocador e ao mesmo tempo emocionado, um pop star acessível e sentimental, um galã acidental, um falso bad boy.

Da cozinha do Les Halles, restaurante em Nova Iorque onde comi o melhor filé com fritas da minha vida, até sua estreia na literatura, passando por episódios memoráveis de seu programa na CNN, o chef americano deu check com categoria em todas as versões de si que apresentou ao grande público. Parecia um caso cada vez menos possível: um sujeito aparentemente imune ao canto da sereia do reconhecimento em massa, capaz de preservar a todo custo o carisma e a espontaneidade que o tornaram tão querido e especial.

Anthony Bourdain juntava, também no showbusiness, franqueza, vulnerabilidade e ousadia. Era um gauche que havia dado certo

Seu sucesso era também uma espécie de ode a autenticidade. Era possível ter audiência e ainda assim produzir entretenimento de qualidade, uma combinação cada vez menos frequente diante da demanda por cortes frenéticos e discursos sem contradição — uma consequência cada vez mais grave da dispersão promovida pelas redes sociais. Assim como havia acontecido em “Cozinha Confidencial”, seu best-seller sobre o lado B dos restaurantes, Anthony Bourdain juntava, também no showbusiness, franqueza, vulnerabilidade e ousadia. Era um gauche que havia dado certo.

Um dia, o escritor cometeu suicídio. Estava na França, fazendo mais uma temporada do já premiado “Parts Unknown”, quando foi encontrado sem vida por parte da equipe que o acompanhava em suas viagens pelo mundo.

Sua rotina, aliás, já há alguns anos girava em torno dos carimbos no passaporte. Bourdain percorria os continentes atrás de pessoas, comidas e culturas e deixou uma obra importante, consistente e humanista. Seus vídeos são poéticos, divertidos e engajados e, de quebra, falam de política de modo direto e palpável, expondo seu incômodo com a desigualdade de renda e de gênero e as contas a serem pagas por sua cidadania americana.

No documentário “Roadrunner” (2021), de Morgan Neville, disponível para aluguel na Amazon Prime, há trechos de sua passagem pelo Congo e pelo Vietnã e é bonito ver alguém desfazer-se em frente às câmeras. Bourdain tem curiosidade e escuta, uma dupla magnética e transformadora.

Colocar a conta de morte de Anthony Bourdain em seu par amoroso é cruel e injusto, algo que não honra sua personalidade transgressora e revolucionária

O filme, no entanto, faz de sua morte uma infeliz e desnecessária contribuição ao patriarcado. Bourdain namorava Asia Argento, atriz e diretora italiana, e suicidou-se depois de uma briga com ela por mensagens de WhatsApp. O diretor, então, opta por fazer um registro em que simplesmente abre mão de ouvir Asia, repetindo o bom e velho esquema do silenciamento de sexo feminino. Isso sem falar no bullying. Além de não ser entrevistada, a atriz é nitidamente apontada — por vários personagens, incluindo mulheres — como responsável pela morte do apresentador.

Terminei o documentário decidida a nunca mais ver um filme da artista. Não fosse meu namorado apontar um machismo que demorei a enxergar — e minha amiga Cristina Fibe, que me ensina todos os dias sobre o feminismo — eu teria caído no conto mais óbvio que existe. Afinal, a culpa é sempre da mulher. Mas até quando?

Anthony Bourdain era inesquecível. Sua vida e sua obra valem toda e qualquer visita e estão muito acima da sua morte. Colocar essa conta em seu par amoroso é cruel e injusto, algo que não honra sua personalidade transgressora e revolucionária.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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