Marilene Felinto
Aplicativo de relacionamento agita vida de mulher da roça
Elas avançam a passos largos rumo à liberdade e à descoberta de si mesmas, empoderadas pelas ferramentas e conquistas desta Era da Informação
Dominar o funcionamento de um smartphone e de um aplicativo de relacionamento vem transformando a conduta de mulheres de certa zona rural do estado de São Paulo. Mulheres casadas, mães, de todas as idades, inseridas num contexto de agricultura familiar de uma comunidade patriarcal e bastante católica, passaram a ter relações extraconjugais, a pedir divórcio, a deixar seus antigos lares e, algumas, até mesmo a abdicar da guarda dos filhos.
No outro extremo, maridos perplexos, alguns deles analfabetos, ou semianalfabetos, que se transportam ainda a cavalo porque carentes de letramento mínimo para adquirir habilitação de motoristas de automóvel ou motocicleta. São homens “traídos”, com ímpetos de feminicídio ou, surpreendentemente, de suicídio, como se verá em dois dos casos que narrarei aqui.
São homens pasmos diante do efeito disruptivo da comunicação digital no território da chamada “roça”, já que se rompeu ali a associação patriarcal entre saber e poder, a autoridade socialmente legitimada do macho e seu discurso dominante, bem como a consciência domesticada das mulheres, para usar termos de Sandra Harding, estudiosa da teoria feminista.
Demorou, mas começou a acontecer. Digamos que a liberação sexual feminina, a contar do movimento hippie, levou mais de 60 anos para chegar a essa comunidade fechada em si mesma, na zona rural de um município do Vale do Paraíba, muito devota de Nossa Senhora Aparecida, cuja tradicional Basílica, em Aparecida (SP), se encontra a pouco mais de 90 quilômetros da cidade em questão.
O município em que se deram as “traições” das mulheres – e cujo nome optei por não mencionar aqui –, a 200 quilômetros da capital paulista, tem pouco mais de 11 mil habitantes, é politicamente conservador, sexista, racista e homofóbico. Os casos ali ocorridos (cinco no total) formam uma pequena amostra que, por isso mesmo, não geram estatística. Nem a pretensão aqui é fazer desta narrativa um estudo de sociologia, uma vez que a observação é totalmente pessoal da minha parte, naquele lugar que frequento há mais de 20 anos.
O acesso à tecnologia modificou o padrão de comportamento social e sexual dessas mulheres brancas, de classe média baixa, proprietárias de pequenas unidades rurais, lavradoras, caseiras ou diaristas de fazendas e sítios de gente da cidade grande, algumas com Ensino Médio incompleto e outras com apenas o Fundamental.
As “traições” são acontecimentos recentes, quase um encadeamento de episódios semelhantes, que chamaram a atenção da comunidade na forma de escândalo. E me parecem significativos porque são direta ou indiretamente resultados do acesso das mulheres às tecnologias de comunicação. Geralmente mais escolarizadas do que seus maridos, elas viraram protagonistas, autoras de si mesmas, seres de desejo e sonhos possíveis de realização antes inimaginável.
O caso mais emblemático é o de Aparecida Maria (nome fictício), cerca de 50 anos de idade, três filhos, casada com um agricultor semianalfabeto, próximo dos 60 anos, majoritariamente dona de casa, mas que realiza serviços esporádicos de limpeza em fazendas e sítios.
Aparecida Maria é a típica esposa do lugar, meio invisível, calada, ou emudecida, meio tímida. Ninguém dava nada por esta mulher “do lar” e personagem comum na cena das festas comunitárias da cidade: já tarde da noite, fim de festa, homens seguem jogando truco aos berros, enquanto suas mulheres, cansadas, segurando no colo o peso de seus bebês adormecidos, são obrigadas a esperar a partida terminar para ir embora para casa.
Mas eis que, de súbito, e tendo aprendido com os filhos já jovens adultos a dominar o telefone móvel, ela ficou encarregada de efetuar ligações, receber e enviar mensagens via Whatsapp dos contatos e negócios do marido (venda de gado, leite etc.), uma vez que ele não domina a operação do aparelho.
Pois eis que, um belo dia, Aparecida Maria apaixonou-se por um homem arranjado em aplicativo de relacionamento e pediu o divórcio. Desolado, o marido dela quis se matar, mas acabou não efetuando o ato, convencido por familiares e amigos.
O segundo caso digno de nota é o de Joana Aparecida (também nome fictício), 30 anos mais nova do que Aparecida Maria. Como é comum às moças do lugar, Joana Aparecida engravidou aos 17 anos, largou o Ensino Médio no segundo ano e tem duas filhas pequenas.
Recentemente, passou por volta de 3 meses fazendo curso em uma autoescola da cidade mais próxima para tirar habilitação de motorista. Terminada essa longa etapa, não passou muito tempo até Joana declarar ao marido que estava apaixonada por outro homem.
No caso desse casal, o marido de 30 e poucos anos era exceção, pois tinha Ensino Médio completo, habilitação de motorista e familiaridade com as tecnologias digitais. O homem (Jonas, nome fictício), surpreendido pela notícia da “traição”, e muito abalado, teve também intenção de se matar, ameaçando beber um litro do venenoso defensivo agrícola “Roundup”, e só não o fez pela rápida intervenção dos patrões e da família. O casal trabalhava como caseiros em uma fazenda da região.
Nada causou tamanha transformação no modelo matrimonial e na conduta sexual das mulheres da roça quanto os aplicativos de relacionamento
É preciso dizer que o irmão de Jonas, um ou dois anos antes, também tinha sido traído pela mulher, no que foi o primeiro caso que chocou a comunidade. Mas a reação do irmão, ao contrário da de Jonas, foi o desejo de matar a mulher, feminicídio logo impedido pela família e amigos.
O advento da comunicação digital no universo feminino da zona rural só não é comparável à substituição do cavalo pela motocicleta – outro fenômeno mais ou menos recente e revolucionário no interior do país –, porque nada (nem mesmo a suposta influência das modernizadas novelas de TV) causou tamanha reviravolta no modelo matrimonial e na conduta sexual das mulheres quanto os aplicativos de relacionamento.
Embora a “roça” já nem seja tão roça assim, dado o contato atual mais próximo e facilitado com os grandes centros urbanos, tanto pelos meios de transporte quanto pelo acesso à internet, fato é que o homem do lugar aqui referido, principalmente da geração mais velha, ainda é o caipira típico, que Antonio Candido, autor do clássico “Os Parceiros do Rio Bonito”, estudo sobre a cultura caipira paulista, descreve no artigo “Caipiradas” como um ser rústico, de evolução muito lenta, para quem o tempo correu tão devagar que frequentemente não entra como critério de conhecimento, e que ainda pode viver, em parte, como um homem do século XVIII.
Enquanto os homens aqui referidos ainda podem ser definidos assim, as mulheres, pelo contrário, avançam a passos largos rumo à liberdade e à descoberta de si mesmas, empoderadas pelas ferramentas e conquistas desta Era da Informação.
Caiu por terra, nesta pequena amostra de zona rural, o sexismo institucionalizado, aquele em que “trair” era coisa natural de macho – fez-se ali, no pequeno município católico, a demonstração de que é somente via conhecimento, contestação e insurreição radical que as mulheres podem melhorar a vida delas e, finalmente, aparecer, Aparecidas, mas não santas.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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