Na Trilha do Pop
Destaque na Flip, livro do crítico musical Kelefa Sanneh viaja por 50 anos de muitos sucessos e alguns fracassos na música pop
Durante sua participação na última Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, o crítico musical e escritor Kelefa Sanneh afirmou que não precisamos esperar um suposto julgamento da posteridade para descobrir quais músicas e artistas atuais são bons e devem estampar sua marca. Sem deixar que um fator solitário como a popularidade determine os rumos de seu “Na Trilha do Pop” (Todavia, 2023), livro onde revisita 50 anos da música pop, passando por diferentes estilos e culturas, ele aborda os grandes sucessos da época de olho também nos fracassos, que podem acabar se mostrando tão ou até mais interessantes.
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São sete o gêneros tratados na obra do crítico, que teve passagem marcante pelo The New York Times e hoje escreve para a revista New Yorker: rock, R&B, country, punk, hip-hop, dance music e pop. Apesar do viés claramente americanizado, há espaço para menções a ritmos e gêneros de outras partes do mundo, com destaque para o funk carioca nascidos nos anos 1980, que, para Sanneh, guarda o espírito do hip-hop. Além disso, ao dissecar os gêneros que definiram a música do século 20, o autor busca um equilíbrio entre o sucesso popular e comercial e o caráter vanguardista, o que torna a leitura algo muito além de uma simples viagem pelos grande hits do período.
Numa introdução ao mesmo tempo comovente e esclarecedora sobre o significado da música no mundo contemporâneo, o escritor une logo de início o caráter a um mesmo tempo agregador e limitador da arte à sua trajetória pessoal. Fã confesso de punk na adolescência, Sanneh narra uma passagem especialmente emocionante em que a família se despede do pai sem deixar de lado uma trilha sonora que o confortasse no leito de hospital. “Às vezes, quando alguém diz que ama música, é a isso que essa pessoa se refere. Você escuta alguma coisa que ecoa com algum fragmento da sua própria biografia e experimenta uma sensação de que não se importaria se esses fossem os últimos sons que ouvisse na vida.”
Usando fone de ouvido
Quando meu pai se encontrava numa cama de hospital em New Haven, Connecticut, acometido por uma doença repentina, e os médicos e enfermeiras procuravam por qualquer sinal de que ele ainda estivesse vivo, minha mãe deduziu que ele precisava de uma trilha sonora. Ela levou para o quarto seu fone de ouvido com cancelamento de ruído da Bose e nos revezamos tocando para ele suas músicas favoritas. Ao longo da semana seguinte, enquanto lhe fazíamos companhia e nos despedíamos, um dos álbuns que mais colocamos para tocar foi Clychau Dibon, de 2013, uma brilhante colaboração entre Catrin Finch, uma harpista galesa, e Seckou Keita, um tocador de corá da região de Casamansa, no Senegal, África Ocidental — não muito distante de onde meu pai havia crescido, na Gâmbia.
O corá, um instrumento similar a uma harpa, com 21 cordas esticadas entre um braço de madeira e um corpo feito de cabaça, era o instrumento favorito de meu pai — sem dúvida o fazia se lembrar da vida de aldeia que havia deixado para trás ainda adolescente. Ele me batizou em homenagem a um lendário guerreiro que inspirou duas das mais importantes composições na tradição do corá, “Kuruntu Kelefa” e “Kelefaba”. E certa vez passei um verão surreal na Gâmbia, estudando corá, tomando longas lições diárias de um professor com quem me comunicava sobretudo por meio de uma linguagem de sinais improvisada. Lembro-me de como meu pai ficou empolgado quando descobriu aquele disco de harpa e corá, uma atmosfera híbrida e acalentadora que lhe soou imediatamente familiar. Às vezes, quando alguém diz que ama música, é a isso que essa pessoa se refere. Você escuta alguma coisa que ecoa com algum fragmento da sua própria biografia e experimenta uma sensação de que não se importaria se esses fossem os últimos sons que ouvisse na vida.
Geralmente, entretanto, apaixonar-se por música é um processo muito mais complicado e controverso. Quando mais novo, eu pensava nas amadas fitas cassete de corá do meu pai como música de cortar os pulsos, por causa das vozes lamuriosas dos griôs, que, para mim, soavam como se estivessem uivando. Eu não tinha nenhum interesse naquilo, assim como não tinha nenhum interesse nos compositores clássicos que eram escutados com muita frequência em casa, e cujas criações aprendi a tocar no violino, a partir dos cinco anos. Como a maioria dos jovens, sempre gostei da ideia de que a música poderia me transportar para fora da minha casa, me levar para as ruas, para dentro da cidade e além. Dei o primeiro passo pedindo a minha mãe que me comprasse uma fita de Thriller, de Michael Jackson, porque todo mundo na escola estava falando disso. Em pouco tempo eu estava ouvindo as primeiras manifestações do hip-hop, rock ‘n’ roll antigo e moderno e, por fim, punk rock, que transformou meu interesse moderado por música numa paixão desmedida. O punk me ensinou que a música não precisava expressar consenso; não era necessário cantar com o que quer que estivesse tocando no aparelho de som da família, ou o que quer que estivesse passando na televisão, ou o que quer que os garotos na escola estivessem curtindo. Você podia usar a música como uma maneira de se apartar do mundo, ou pelo menos de uma parte do mundo. Podia encontrar nela uma coisa para amar e uma coisa — talvez diversas coisas — para rejeitar. Podia ter uma opinião e uma identidade.
Como a maioria dos jovens, sempre gostei da ideia de que a música poderia me transportar para fora da minha casa, me levar para as ruas
Isso soa detestável? Provavelmente sim, e provavelmente soaria ainda mais detestável se você tivesse me pedido que explicasse isso quando eu era um adolescente recém-convertido ao evangelho do punk. Acho, porém, que os fãs de música tendem a ser pelo menos um pouquinho detestáveis ou constrangedores, e é por isso que é tão fácil ridicularizar os ouvintes compulsivos, sejam eles puristas esnobes e pretensiosos ou seguidores histéricos de divas pop, colecionadores de discos sorumbáticos em porões ou stans agressivos nas redes sociais. (O termo “stan” vem de uma música de Eminem sobre um fã com uma fixação mórbida e romântica nele; tanto a canção quanto a palavra refletem uma crença bastante difundida de que existe algo de vergonhoso, assustador e efeminado na obsessão dos fãs pelos seus ídolos.) Nós até poderíamos, por pura cordialidade, concordar em discordar e não zombar do gosto musical de outras pessoas. Entretanto, mesmo aqueles entre nós considerados oficialmente adultos talvez descubram que nunca abandonamos de fato a ideia de que existe algo intrinsecamente bom sobre a música que gostamos, algo intrinsecamente ruim sobre a que não gostamos e algo intrinsecamente errado com todos que não concordam com isso. Levamos a música para o lado pessoal, em parte porque a decoramos; canções, mais do que filmes ou livros, são criadas para ser experienciadas repetidas vezes, feitas para ser memorizadas. Também a levamos para o lado pessoal porque geralmente a ouvimos socialmente: com outras pessoas, ou pelo menos pensando em outras pessoas. Sobretudo no final do século XX, a música popular norte-americana foi se tornando cada vez mais tribal, com estilos diferentes ligados a modos diferentes de se vestir e de ver o mundo. Na década de 1970, gêneros diversos já representavam culturas diversas; na de 1990, havia subgêneros e subsubgêneros, todos com seus próprios valores e expectativas.
De muitas maneiras, essa é uma história familiar. Muita gente tem a mesma ideia difusa de que no passado a música popular era mesmo popular e que, de algum modo, ela foi se tornando cada vez mais fragmentada e obscura. Colocamos nosso fone de ouvido e fugimos do mundo usando as trilhas sonoras que nós mesmos escolhemos. Ao mesmo tempo, porém, muitos fãs seguem fiéis à ideia de que a música aproxima as pessoas, reunindo plateias que transcendem barreiras. A verdade, é claro, é que esses dois conceitos são importantes e verdadeiros. Canções, intérpretes ou estilos populares podem destruir determinadas barreiras, mas também podem criar outras. As primeiras composições de hip-hop, por exemplo, deram origem a um movimento que atraiu fãs de todo o planeta. Mas o movimento também ajudou a aprofundar um abismo geracional, dando aos jovens ouvintes negros um caminho para renunciar ao R&B que seus pais tanto amavam. E, nos anos 1990, a música country se tornou mais suburbana e mais acessível. Entretanto, mesmo assim ela permaneceu sendo um mundo à parte do mainstream da música pop. (A música country ganhou mais ouvintes, na verdade, apresentando-se como uma alternativa mais suave e melodiosa às sonoridades progressivamente mais truculentas do rock e do
hip-hop daquela década.) Com grande frequência, o mercado da indústria musical ajudou a reforçar essas divisões. Estações de rádio incentivavam seus ouvintes a verem a si próprios como seguidores, leais às suas emissoras favoritas. Lojas de discos separavam sua mercadoria por gêneros, na expectativa de otimizar a experiência de compra e proporcionar descobertas casuais. E as gravadoras se esforçavam para identificar públicos e tendências, procurando maneiras de reduzir, pelo menos um pouco, a imprevisibilidade dos ouvintes.
Os fãs de música tendem a ser pelo menos um pouquinho detestáveis ou constrangedores
Reconhecer a evidente diversidade da música popular é fácil. Contudo, “diversidade” é um termo deveras inconveniente, que remete a um mundo polido e estático, onde as pessoas possuem a serenidade de aceitar as diferenças umas das outras. Com maior frequência, a música popular não vem sendo apenas diversa, mas também divisiva, destroçada por crossovers de sucesso e expurgações cruéis, rivalidades entre fãs e rixas carregadas de sarcasmo; repleta de músicos e ouvintes que continuam desco-
brindo novas maneiras de se apartarem uns dos outros. Esse é o espírito divisivo que detectei pela primeira vez no punk, e por intermédio do punk aprendi a escutá-lo em todos os lugares, até na música de corá do meu pai, que ele amava, em parte, porque ela representava o mundo do qual ele havia se apartado. Ao contrário de praticamente todos os seus muitos irmãos e meios-irmãos, meu pai deixou para trás sua família e seu país para construir uma vida muito diferente nos Estados Unidos, onde se tornou um acadêmico bastante respeitado na área do cristianismo e do islamismo globais. Ele nunca sequer fingiu compartilhar da minha paixão pela música popular, mas também não deve ter ficado muito surpreso pelo meu interesse nas pessoas teimosas e incansáveis que a produziam e a amavam, e pelas turbulentas comunidades que elas criavam.
O fone de ouvido da Bose que meu pai usou no hospital estava novinho em folha. Uma semana antes, eu o tinha dado a ele de presente de Natal; uma semana depois, nós o trouxemos de volta para casa e o aparelho passou a ser meu novamente. Estou usando-o agora, enquanto escrevo, escutando
sets de techno e house sem vocais na plataforma de compartilhamento de músicas SoundCloud. Para mim, isso é música de fundo, talvez até música de conforto; é ao que em geral recorro quando tenho de ler ou escrever. Entretanto, mesmo um set sereno de um DJ que progride suavemente é, em alguma medida, um argumento: ele reescreve a história indefinida da disco music; prioriza um punhado de faixas em detrimento de incontáveis outras; endossa uma visão particular sobre como elas deveriam ser combinadas. A música eletrônica para dançar é famosa por suas infinitas categorias, que podem parecer absurdas a qualquer um que não se dedique a investigar a diferença básica entre house music e techno, sem falar nas distinções mais sutis que separam, digamos, o progressive house do deep house. Essas diferenças, porém, importam muito para um DJ, principalmente porque ajudam a determinar quem vai à festa e quem fica nela. A dance music, assim como a música country e o hip-hop, aproxima as pessoas ao afastar outras. Essas tribos musicais atraem e repelem, aproximando alguns de nós enquanto afastam alguns outros. E, às vezes, elas acabam se tornando nossa casa.
Tribos musicais atraem e repelem, aproximando alguns de nós enquanto afastam alguns outros. E, às vezes, elas acabam se tornando nossa casa
- Na Trilha do Pop
- Kelefa Sanneh
- Todavia
- 512 páginas
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