Por que as bandas deram lugar a artistas solo? — Gama Revista
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Michael Putland

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Cultura

Para onde foram as bandas?

Com poucos representantes nas paradas do Brasil e do mundo, grupos do rock ao funk dão lugar a artistas solo na música

Leonardo Neiva 26 de Setembro de 2021

Para onde foram as bandas?

Leonardo Neiva 26 de Setembro de 2021
Michael Putland

Com poucos representantes nas paradas do Brasil e do mundo, grupos do rock ao funk dão lugar a artistas solo na música

Qual é a grande banda de sucesso do momento? E o último grupo musical a surgir e tomar de assalto o topo das listas de mais tocadas? Pode parecer estranho que um nome não surja logo de cara e que a pergunta acabe exigindo que você puxe mais pela memória do que esperava. Mas, na verdade, não é.

Em março, o vocalista do grupo de pop Maroon 5, Adam Levine, causou polêmica ao dizer em uma entrevista que “não existem mais bandas“. “Sinto que elas são uma espécie em extinção”, declarou. Ainda que a fala tenha gerado controvérsia entre os grupos que estão na estrada, também fez com que o jornal britânico The Guardian saísse em defesa do músico, numa reportagem que argumenta que o sentimento de Levine não está tão errado, e artistas solo estão mesmo dominando a música.

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Ao olhar o top 100 da Billboard na penúltima semana de setembro, o cenário soa desolador para as bandas. A primeira a dar as caras é a boy band sul-coreana BTS. Entre as primeiras 50 canções da lista, apenas cinco têm a presença de grupos musicais. Da lista completa de cem, é possível destacar somente oito.

E, se lá fora os números parecem dar razão a Levine, a tendência no Brasil é ainda mais forte. Das cem músicas mais escutadas do Spotify na quarta-feira (22), só cinco são tocadas por grupos, um deles de rock — a faixa “Beggin”, da banda italiana de rock alternativo Måneskin. As outras quatro aparições, curiosamente, pertencem todas a um mesmo grupo: os reis do forró eletrônico e do tecnobrega d’Os Barões da Pisadinha.

Para muitos, ao falar em banda musical, o que vem à mente são os grupos de rock. E, se o gênero vem sofrendo uma crise de popularidade na comparação com ritmos como o funk, o sertanejo, o rap e até o pop, pode soar natural que bandas não tenham mais tanta visibilidade quanto no passado.

O jornalista e crítico musical Ricardo Alexandre, porém, aponta que a tendência vem atingindo também outros gêneros. “No hip hop e no rap, por exemplo, os artistas solo predominam. Não há mais tantos grupos como os Racionais”, afirma o autor de livros como “Dias de Luta: o Rock e o Brasil dos Anos 80” (Arquipélago, 2017) e “Tudo É Música” (Arquipélago, 2018).

Sucesso por dez anos à frente do Exaltasamba, Thiaguinho hoje segue carreira solo, fazendo sucesso com projetos como “Tardezinha” e também como empresário — em 2020, em plena pandemia, ele surpreendeu o público ao faturar R$ 2 bilhões. Se, no início do milênio, o funk ainda bombava com grupos como Gaiola das Popozudas — do qual saiu a cantora Valesca — e o Bonde do Tigrão, hoje quem domina as paradas são nomes como Dennis DJ, Ludmilla, Kevin o Chris, MC Kevinho e, é claro, a superstar Anitta. E o sertanejo, ritmo que figura entre os favoritos dos brasileiros há um bom tempo, segue sua tradição de duplas.

Mas será que não só “o rock acabou”, como previa a música da extinta banda nacional Moptop, conhecida no início dos anos 2000 como o “Strokes brasileiro”, mas também os grupos musicais estão em risco de extinção?

Uma breve história dos grupos musicais

Os primeiros grupos musicais de que se tem notícia no Brasil foram os chamados “ternos de barbeiros”, formados por instrumentistas de sopro, cordas e percusão. Segundo o professor de história da USP Marcos Napolitano, eles foram pioneiros em oferecer música como forma de entretenimento no contexto urbano ainda em formação no país no final do século 18.

“Depois vieram as bandas civis e militares, que foram importantes até o início do século 20”, diz Marcos, autor do livro “História & Música” (Autêntica, 2005), sobre a trajetória da música popular no Brasil. Nessas bandas, o repertório era composto por alguns dos ritmos em voga na época, como valsas, choros, marchas, maxixes, mazurcas, polcas e dobrados.

Mais tarde, nos anos 1920, foi a vez das jazz bands, como o lendário conjunto carioca Oito Batutas, que tinha entre os integrantes a ilustre presença de Pixinguinha. Eles passaram a imprimir novos timbres e andamentos ao repertório nacional, num diálogo com o ainda jovem jazz norte-americano.

Para o crítico e escritor Ricardo Alexandre, a música acontece em ciclos. Quando lá fora bandas como Beatles e Rolling Stones explodiam, na década de 1960, por aqui a Jovem Guarda ainda era largamente composta por artistas solo, como Roberto Carlos, Wanderléa e Erasmo Carlos. Foi só lá para os anos 1980 que começaram a surgir mais grupos de rock coletivos, que acabaram tomando a frente do gênero no Brasil.

O professor Marcos Napolitano destaca que, embora seja uma prática quase sempre coletiva na performance, o star system do mercado de entretenimento tradicionalmente favorece ídolos individuais. “De todo modo, ambas as tendências sempre coexistiram, e mesmo as grandes bandas tinham seus líderes”, aponta. Isso porque, em uma banda, obviamente nem todos os membros recebem o mesmo grau de atenção do público e da mídia — e esse destaque geralmente, mas não exclusivamente, recai na figura do vocalista.

H. Armstrong Roberts/ClassicStock/Getty Images

As vantagens de ser um lobo solitário

Mesmo na maioria dos grupos, há hierarquias claras, e a celebridade individual é importante. Bandas que foram coletivos criativos são um acontecimento raro na história, como lembra Ricardo. Ao falar sobre isso, evoca nomes como Pink Floyd, Led Zeppelin e, é claro, os Beatles, talvez o mais famoso deles, com pelo menos três grandes artistas nas figuras de John Lennon, Paul McCartney e George Harrison.

“Na maioria dos casos, porém, o que acontecia era que uma pessoa criativa se cercava de amigos que não necessariamente entendiam de composição. A história da música está cheia de tipos assim”, diz o crítico.

Dá para apontar vários fatores que podem levar a uma maior produção individual hoje no mundo da música, desde a tecnologia, que permite alcançar resultados quase profissionais sem sair do quarto — a exemplo de Billie Eilish —, até o culto às personalidades individuais, elevado por plataformas como Instagram e TikTok.

Hoje a música não junta mais, ela separa. É inclusive usada pela publicidade para direcionar produtos a determinados grupos

Existe também um forte fator de comodidade. O artista solo não precisa submeter suas ideias a um processo de decisão coletiva, lembra Ricardo. Hoje, sem a necessidade de passar por um circuito de shows para gravar o primeiro disco, o artista consegue formar um público logo de início, para só depois contratar outros músicos, que se integram a seu projeto já formado.

E a geração atual é mais solitária do que as anteriores, na visão de Ricardo. Isso desde as relações, que se tornaram mais virtuais, até o próprio exercício de escutar música. “Quando eu era adolescente, costumava ouvir discos com meus amigos. Hoje a música não junta mais, ela separa. É inclusive usada pela mídia e a publicidade para direcionar produtos a determinados grupos, como um traço de individualidade.”

As bandas e a pandemia

No momento em que completa 40 anos de carreira, o guitarrista Edgard Scandurra, da banda Ira!, considerado um dos maiores instrumentistas da música brasileira, se viu impedido de fazer shows pela pandemia. Com a turnê para divulgar “IRA”, o novo disco da banda, cancelada, precisou se reinventar para segurar as pontas. Além de vender algumas de suas preciosas guitarras, trocou o instrumento pelo violão e o teclado para gravar, em 2020, o álbum “Jogo das Semelhanças”, totalmente feito durante a pandemia e registrado pelo celular.

Em março deste ano, lançou uma série de lives relembrando sua icônica trajetória na música. Em entrevista a Gama, Scandurra destaca o desespero do setor, assim como a necessidade de o artista se reinventar para continuar sobrevivendo da música num momento como esse.

Segundo ele, o rock vem perdendo espaço para outros gêneros que hoje conseguem representar melhor a juventude. “O rap, o funk, a música eletrônica… Aquele conceito da banda, com baixo, guitarra, bateria, foi se diluindo com outros movimentos”, afirma. Apesar da situação difícil que o setor cultural vive no país, ele ainda bota fé no momento de retomada que vem após o fim da pandemia, quando as pessoas voltarão a se reunir, escutar discos juntas e ir a shows.

A pandemia também barrou a turnê que a banda de heavy metal Sepultura ia fazer de seu álbum “Quadra”, que foi lançado em 2020 e chegou às paradas musicais de 17 países pelo mundo, ainda que rapidamente e não nas primeiras posições (exceto no Brasil).

No período, o grupo acabou investindo na série de lives musicais SepulQuarta, em que recebiam amigos e grandes nomes do gênero para bater papo e fazer um som, sempre às quartas-feiras. O projeto acabou gerando um álbum com o mesmo nome, lançado em agosto e que inclui parcerias musicais com pessoas como Rafael Bittencourt, do Angra, e Scott Ian, do Anthrax.

“Tivemos que inventar uma forma de continuar o contato até entre nós mesmos como banda, porque o Derrick [vocalista] voltou para os Estados Unidos”, explica o guitarrista Andreas Kisser. “Fomos fazendo de quarta em quarta-feira sem pensar adiante, porque dependíamos das notícias. No início, não planejávamos fazer um disco, de forma nenhuma. Eu estava anexando os áudios no meu estúdio caseiro, fizemos tudo nós mesmos.”

No programa que apresenta há nove anos ao lado do filho na rádio 89, “Pegadas de Andreas Kisser”, o músico vem dando espaço para bandas novas, entre elas o quarteto de death metal Crypta. “Vejo uma diversidade fantástica no heavy metal hoje, principalmente com mais participação feminina”, afirma.

Kisser, no entanto, prefere não fazer uma avaliação sobre o cenário musical. “Não fiz essa análise, para mim é uma informação irrelevante do ponto de vista artístico. Não vejo o que é popular e o que não é, procuro buscar influências musicais fora da música. Uma coisa mais de afastar os conceitos, para que possa ter liberdade de explorar sentimentos, em vez de ficar buscando coisas pré-determinadas.”

Rainha do funk

“Existe o homem, a mulher e o artista.” Segundo a empresária musical Kamilla Fialho, três tipos de seres humanos bem diversos. “Imagina ter quatro artistas no mesmo lugar, com opiniões diferentes. A tendência é acontecer o que acontece sempre: separar.”

Ela cita como exemplo grupos como O Rappa e Exaltasamba, que acabaram se dissolvendo. “No Rappa em especial, os quatro tinham um peso muito grande, e acredito que tenha sido esse o problema. Chegou uma hora em que cada um queria uma coisa, e o casamento tem que se desfazer de alguma forma. O Falcão hoje está em carreira solo.”

Imagina ter quatro artistas no mesmo lugar, com opiniões diferentes. A tendência é acontecer o que acontece sempre: separar

No caso do funk, gênero em que é especializada — ela revelou artistas do calibre de Anitta, Kevin O Chris e Lexa —, no entanto, a história não é necessariamente de divórcio. Um ritmo que já teve como grandes expoentes bondes como o do Tigrão e duplas como Claudinho & Buchecha, hoje tem entre seus representantes principalmente artistas solo a exemplo da própria Anitta.

E é possível que isso tenha acontecido porque funkeiros solitários, como MC Leozinho e Naldo, estiveram entre os primeiros de uma corrente que integrou o funk ao mainstream no país — e, segundo Kamilla, se tornaram referência para os que vieram depois. “É natural que as pessoas sigam isso como modelo e queiram levar carreiras solo.”

Apesar dos pesares, Kamilla hoje representa dois grupos: a banda de rock Fuze, formada pelos filhos e sobrinho do ator Marcelo Novaes, e o grupo de rap 3030, que existe desde 2008 e já está bem consolidado na cena musical. Sua missão com a Fuze é ajudar a banda a migrar do “rock raiz” para uma vertente mais próxima do pop, que, ela diz, é a prateleira à qual o rock pertence hoje em dia. “Continuo acreditando, apostando e incentivando bandas e grupos. A música é muito cíclica. Se eu insistir naquilo e acontecer, vou ser pioneira.”

Long live rock’n’roll

Para o jornalista Ricardo Alexandre, o rock está longe de passar por uma crise criativa no Brasil. Em vez disso, ele sofre ainda com uma visão musical “careta” sobre o estilo, já que algumas das maiores bandas nacionais nasceram de movimentos muito ricos, em que a guitarra fazia parte de uma proposta maior, passando inclusive por outros gêneros. “Embora não toque em casas nem rádios do gênero, o BaianaSystem [que engloba também em seu repertório ritmos como reggae, hip hop e frevo] é uma banda de rock, sem sombra de dúvida. E é completamente saudável em termos de público.”

O disco “Respiro”, da banda de rock brasiliense Scalene, lançado em 2019, representou — com perdão da repetição — um desses respiros apontados pelo crítico musical, ao abandonar o som pesado típico do grupo, com pouco mais de uma década de estrada, em direção a músicas mais calmas, com influências da bossa nova, samba e MPB. Após passar por um período difícil na pandemia, devido à ausência de shows, eles lançaram agora em setembro o single “FEBRIL”, novamente com um som mais pesado, inspirado na angústia e na raiva despertadas pelo isolamento.

Como todas as bandas que estão resistindo nessa realidade, estamos nos virando. Trabalhando o dobro para ganhar a metade

“Sempre tem algumas bandas de rock lá em cima, e também outros estilos , sejam aqueles do momento ou os clássicos, figurando nas paradas. Lógico que eu preferia que fossem cem bandas de rock no top da Billboard, mas, se tem três ou uma só, está ótimo, vamos continuar fazendo o nosso trabalho”, diz o baixista Lucas Furtado. “O funk já é fenômeno no Brasil há muitos anos, não me espanta ver os funkeiros nas paradas em vez do rock.”

Para ele, o momento atual ainda deve atingir em cheio as pequenas bandas, com muitas precisando fechar as portas para garantir o sustento. “Algumas bandas de Brasília com quem a gente tem relação de amizade, como Dona Cislene e O Tarot, encerraram as atividades”, conta. “Como todas as bandas que estão resistindo nessa realidade, estamos nos virando. Trabalhando o dobro para ganhar a metade.”

“Enquanto existirem ídolos e discos para a gente ouvir, vão surgir bandas e ideias novas”, destaca Scandurra. “Como diz uma música dos Originais do Samba, ‘ostra nasce do lodo gerando pérolas finas’. Desse lodo que estamos vivendo agora na pandemia, podem surgir muitas pérolas.”

Fin Costello/Redferns/Getty Images