Como os punks nos ensinam o 'faça você mesmo' — Gama Revista
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Isabela Durão / Fotos: Cornell University Library, Getty Images

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Repertório

Faça como os punks

Campanhas de apoio a causas humanitárias e ambientais, desenvolvimento de uma mídia própria, e a vontade de ter seus espaços é o legado da geração que adotou o Do It Yourself como modo de vida

Thales de Menezes 03 de Outubro de 2021
Isabela Durão / Fotos: Cornell University Library, Getty Images

Faça como os punks

Campanhas de apoio a causas humanitárias e ambientais, desenvolvimento de uma mídia própria, e a vontade de ter seus espaços é o legado da geração que adotou o Do It Yourself como modo de vida

Thales de Menezes 03 de Outubro de 2021

O artista cria e produz. E ele mesmo vende, publica, põe no mundo. Para isso pode até contar com o apoio de um financiamento coletivo, mas quem está no comando é ele, sem editor, produtor, chefe. Se isso soa tão anos 2000, quando a produção artística e cultural ganhou um empurrãozão de novas tecnologias e de práticas como o crowdfunding, já era algo comum pelo menos 30 anos antes, quando os punks lideravam a contracultura.

Foi o movimento punk que se apropriou melhor e mais intensamente da prática Do It Yourself: a ideia do “faça você mesmo” ganhou campo em décadas anteriores, mas as bandas da segunda metade dos anos 1970, notadamente em Londres e Los Angeles, tomaram a expressão como palavra de ordem. O imperativo virou lema e foi usado na cena punk como nome de festival, de fanzine e de uma banda britânica de curtíssima atuação, apenas dois shows em 1978. E ganhou perenidade como título do álbum de estreia do grupo Ian Dury and The Blockheads, lançado em 1979.

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O surgimento dos Sex Pistols em Londres, em 1975, é visto como a pedra fundamental do movimento. Para muitos, uma mudança visceral na música. Para alguns, jogada comercial do empresário Malcolm McLaren (1946-2010), que formou o grupo com garotos que frequentavam a Sex, sua loja de roupas nada usuais. De qualquer forma, a moda proposta por Vivienne Westwood, lenda entre estilistas e sócia da loja, estava carregada de Do It Yourself.

Mesmo no país de imenso histórico de modernidade comportamental, a ponto de ser o berço da minissaia, a moda desconstruída de Westwood (e põe desconstruída nisso) não seria recebida pelo mercado estabelecido. Assim como a música dos Sex Pistols, de letras ofensivas à monarquia e à política britânica emolduradas por rock mal tocado.

PYMCA/Getty Images

A ocasião faz o punk

O punk foi levado ao Faça Você Mesmo por necessidade. Sem gravadoras nem casas de show dispostas a receber pessoas usando calças remendadas com alfinete de fralda, as bandas formadas por influência dos Pistols passaram a ocupar, quase sempre ilegalmente, lugares vazios para tocar. Na porta, colocavam à venda em uma mesinha fitas cassete do repertório, gravadas com qualidade de som capaz de enfurecer um fã do Pink Floyd.

Os esforços coletivos do punk, de lançar álbuns a partir de vaquinhas, são os antepassados das atuais campanhas de crowdfunding

As bandas passaram a lançar compactos e até mesmo LPs por conta própria. O dinheiro para prensar o vinil vinha de uma vaquinha entre amigos e fãs. Apenas esse processo é suficiente para afirmar como o Do It Yourself punk se estende até a cena de hoje. Esses esforços coletivos nada mais são do que antepassados das atuais campanhas de crowdfunding. O escritor Fabio Massari, conhecido como VJ especializado em rock alternativo na MTV, enxerga a herança do Do It Yourself punk no Brasil e no mundo, espalhada em outros gêneros musicais, e cita o crowdfunding como ferramenta.

“Hoje o Do It Yourself conta muito com o crowdfunding. Você transforma o público em parceiro, chama o fã para um faça você mesmo coletivo. Falando de novos sons, você pode destacar algumas cenas, como o metal extremo ou o noise eletrônico. Esses caras estão fazendo muita fita cassete, como era a estratégia punk no começo.”

Nos anos 1970, os artistas cuidavam da gravação das músicas, do desenho de capas e encartes dos discos, das roupas de palco e também da divulgação, em fanzines ou cartazes anunciando shows, até no trabalho de colocação deles em muros e postes. Certa vez, os integrantes do Clash penduraram esses pôsteres pelas ruas usando cola caseira, feita com arroz. Depois, sem dinheiro e famintos, decidiram esquentar a cola e tomar como uma sopa. Todos passaram muito mal.

Enquanto em Londres o punk era oferecido em porões, na Califórnia as bandas preferiam shows em espaços abertos. Uma vantagem da ensolarada costa oeste americana sobre a chuvosa capital inglesa. Na proliferação de grupos, futuros nomes influentes como Bad Brains, Fugazi, X e Blag Flag.

Entre 1979 e 1980, surgiram nos EUA cooperativas punk. Já que as gravadoras estavam mais interessadas no Supertramp, os punks uniam esforços nesses coletivos sem estrutura hierárquica. O lema era “cada um por si e todos por todos”, nessa colaboração hoje abundante em coletivos artísticos, em mais uma herança do DIY punk.

Aaron Cometbus Punk and Underground Press Collection, #8107. Division of Rare and Manuscript Collections, Cornell University Library/Reprodução

Versão tropical

Na mesma época, o gênero começou a gerar as primeiras bandas brasileiras, na periferia paulistana. O movimento passou a ter alguma coordenação na pessoa de um jornalista mais velho. O também dramaturgo Antônio Bivar (1939-2020) voltou a São Paulo depois de longo período na Inglaterra, onde teve contato com o gênesis punk. E passou a articular ações com garotos de subúrbio que tinham idade para serem seus filhos.

Foi Bivar que organizou, nos dias 27 e 28 de novembro de 1982, o festival O Começo do Fim do Mundo, no Sesc Pompeia. Vinte bandas da incipiente cena tocaram ali, entre elas algumas ainda em atividade, como Inocentes e Ratos de Porão. Este jornalista presenciou os dois dias de shows. O público era muito jovem, com garotos de 12 ou 13 anos usando coturnos. A venda de fitas, camisetas e fanzines estava lá, tímida. Nas rodas de conversa, quem sabia mais sobre o punk ia passando informações aos outros. E, claro, havia uma roda permanente perto do sempre sorridente Bivar.

Garotos reclamam hoje de dificuldade para entrar no mercado. A gente não tinha mercado, não tinha cena

O visual da garotada chocou o bairro. Foi chamado reforço policial, desnecessário diante da calma reinante. Os músicos faziam questão de ser plateia das outras bandas, em total apoio. “Eu era um dos poucos que tinha um bom baixo, então emprestei para várias bandas”, conta Clemente Tadeu Nascimento, ainda hoje à frente dos Inocentes e também guitarrista da Plebe Rude, criada na cena do rock de Brasília que se desenvolvia na mesma época.

Philippe Seabra, fundador da Plebe, recorda desventuras em Brasília. As primeiras bandas punk, como o Aborto Elétrico, de Renato Russo, davam shows na calçada. Seu único recurso tecnológico era uma extensão para plugar um mísero amplificador na tomada de um boteco. “Garotos reclamam hoje de dificuldade para entrar no mercado. A gente não tinha mercado, não tinha cena nenhuma! Tivemos que fazer tudo nós mesmos, sozinhos.”

O legado da geração de cabelo espetado

Claro que todo esse empreendedorismo requer muita disposição. Essa atitude seria protagonizada sempre pelos jovens? George McKay, músico experiente e hoje baixista no grupo folk The Punch House Band, tem muito a dizer sobre Do It Yourself. Suas afirmações ganham mais relevância quando é conhecida sua condição de professor de estudos de mídia nas universidades britânicas de Salford e East Anglia.

Com livros de grande repercussão sobre festivais de música, jazz, pop russo e outros temas, ele publicou em 1997 “DiY Culture: Party & Protest in Nineties Britain” (A cultura do Faça Você Mesmo: festa e protesto na Inglaterra dos anos noventa). Reconhece ser seu livro mais influente, onde refaz o caminho do Do It Yourself desde o jazz dos anos 1950 até chegar à cena independente nos anos1990.

DIY é uma combinação de ação inspiradora, narcisismo, arrogância juvenil, princípios, idealismo, indulgência, criatividade e plágio

Para McKay, a atitude Do It Yourself “é predominantemente exercida por gente jovem, incorpora discussões e ações em radicalismo verde, ações políticas diretas e, sim, novos sons e novas experiências”.

O livro comenta como a contracultura dos anos 1950 e 1960, de beatniks e hippies, teve desdobramentos que remetem repetidamente à atitude das pessoas fazerem as coisas da maneira que quiserem. “Do It Yourself é uma combinação de ação inspiradora, narcisismo, arrogância juvenil, princípios, idealismo, indulgência, criatividade e plágio, assim como a rejeição ou a aceitação de novas tecnologias.”

Para ele, o que liga um show punk dos anos 1970 aos acampamentos de ativismo de hoje são as mesmas áreas de ação, relacionadas ao Faça Você Mesmo. “São as campanhas de apoio a causas humanitárias e ambientais, o desenvolvimento de sua própria mídia, e a vontade de ter seus espaços para protesto, diversão ou apenas para viver do seu jeito”, afirma McKay.

Uma característica de qualquer “célula de DIY”, usando um termo do início do punk, é incentivar o nascimento de outras. A ética vigente é lançar mais pessoas na onda. O influente jornalista Jon Savage forneceu o mandamento definitivo para o processo na quinta edição do fanzine “Sniffin’ Glue”, bíblia para punks ingleses em 1979. “Vocês, garotos que estão lendo o SG e não ficam satisfeitos, partam para a ação e façam seus próprios fanzines”, disparou.

Estate Of Keith Morris/Getty Images

Do It Yourself expandido

Massari vê a internet como ambiente atual dos fanzines e aponta um fortalecimento do Do It Yourself na pandemia, inclusive no Brasil. “O músico fica em casa, cria um ambiente de trabalho e continua produzindo. Pelas redes você vende direto ao fã, sem intermediário, que a gente sabe que só atrapalha. Existem cenas musicais, no Brasil e no mundo, funcionando apenas com a venda de fitas cassete”, diz o escritor.

Supla talvez seja o artista famoso mais Do It Yourself da cena brasileira. Ele é seu próprio empresário. Lança discos por conta própria, sempre em formato físico, embora trabalhe bem no digital. Monta banda, paga ensaio, faz roteiro de seus clipes, vende shows, reserva hotel e voos, e é seu próprio divulgador na mídia. “Isso pode causar brain damage”, diz. “Sua cabeça pode explodir com tudo isso. Além da arte, você tem que fazer a parte burocrática da coisa, mas assumo o trabalho porque sei exatamente o que está acontecendo.”

O filósofo e jornalista Renan Marchesini de Quadros Souza, pesquisador musical, acha que o ideal Do It Yourself segue forte no punk e no metal. “São dois movimentos que enfatizam muito ter o disco físico, principalmente do lado do metal. Há um discurso forte entre os fãs do gênero sobre valorizar a cena, então os fãs querem o CD físico, uma camiseta ou um patch para colocar na jaqueta. É preciso ter a banquinha vendendo nos shows, bandas dependem desse apoio.”

A moçada do hip hop adotou a atitude, com artista vendendo CD em galerias comerciais, abordando as pessoas em trens

Mas ele enxerga diferença entre os gêneros. “O metal preza muito o virtuosismo dos músicos. O punk não tem isso. O Do It Yourself continua hoje até na forma de tocar, o músico punk aprende uns três acordes e sai tocando do jeito que der.”

Como Massari, Marchesini ressalta a opção do faça você mesmo adotada em outras cenas. “A moçada do hip hop adotou a atitude, fazendo divulgação em muita intervenção urbana, com artista de hip hop vendendo CD pelas galerias comerciais do centro de São Paulo, abordando as pessoas em trens e metrô. O Emicida chegou a fazer isso.” Para o estudioso do punk, o legado do Do It Yourself está hoje disseminado e muito facilitado pela tecnologia digital. Ou seja, deve continuar ainda durante muito tempo por aí.