Coluna da Fabiana Moraes: E aquele garoto que ia mudar o mundo agora vive à base de clonazepam — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

E aquele garoto que ia mudar o mundo agora vive à base de clonazepam

Pessoas nascidas entre 1980 e 1995 (millennials) e 1995 a 2010 (geração Z) fazem parte do que se convencionou a chamar, no singular, de “geração deprimida”

22 de Novembro de 2023

No regime neoliberal de autoexploração, a agressão é dirigida contra nós mesmos. Ela não transforma os explorados em revolucionários, mas sim em depressivos” (Byung-Chul Han, Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder)

Há alguns meses, marquei uma reunião online para orientar quatro estudantes em trabalhos acadêmicos. Seria uma pessoa por vez, cerca de 30 minutos com cada. Faltando meia hora para o início dos trabalhos, uma delas enviou uma mensagem avisando que não conseguiria estar na conversa: teve uma crise forte de ansiedade. Abri o aplicativo que usamos desde a pandemia e no qual organizo boa parte da vida acadêmica. Antes que reajustasse os horários ali, me deparei com mais duas mensagens parecidas na caixa postal. Em ambas, estava a palavra ansiedade. Naquele dia, apenas uma reunião aconteceu.

Fiquei muito impressionada: sabia que eram estudantes de bom grau de comprometimento com as pesquisas e que dificilmente estariam inventando, em conjunto, uma dor. Aquilo não era uma mera coincidência.

Como professora e pesquisadora, tenho a sorte de estar em contato direto, quase diariamente, com grupos variados de jovens, seja em Pernambuco ou em outros estados. Há tempos, as/os escuto, converso, observo. Posso afirmar: é imenso o mar de gente na casa dos 20 anos com a saúde mental comprometida em variados graus, pessoas cujo fôlego começa a rarear muito cedo. Medo de errar, medo de não “chegar lá”, medo de estar aqui. Medo. Quando penso nisso, uma frase da música “Ideologia”, de Cazuza, me volta à cabeça: “e aquele garoto que ia mudar o mundo/agora assiste a tudo em cima do muro”.

No caldo de um mundo organizado por sofrimento e selfies, fiz a minha versão: aquele garoto que ia mudar o mundo agora vive à base de clonazepam.

Não é fácil lidar quase diariamente com uma massa de pessoas que parece ser mais intolerante à decepção e às derrotas comuns do cotidiano: diversas vezes, é você quem precisa ser uma espécie de gasolina, ou melhor, de sangue, para manter o outro funcionando, existindo, querendo, desejando. É impossível também não cruzar as histórias alheias com a sua própria história, até porque frequentemente elas são muito parecidas e têm lastro nas formas com as quais se tratam pobres no Brasil: lembro-me bem dos ônibus superlotados que me levavam da periferia distante até o centro de Recife para estudar; dos assédios sexuais naquelas latas de transportar gente muito mal paga; do medo da catraca recém-instalada na porta da escola (a catraca que barrava, na frente de todo mundo, quem ainda não tinha pago a mensalidade). Sua autoestima vai sendo destruída pouco a pouco, e a vergonha e a raiva passam a disputar cada vez mais espaço dentro de você.

Nos tornamos CNPJs vigiados. Todos os dias, queremos entregar perfeição ou ‘bater a meta’

Mas seria sociologicamente trágico e absolutamente leviano simplesmente comparar trajetórias: o Brasil que me fez sofrer nos anos 1980 e 1990 não é exatamente o Brasil que morde agora os calcanhares das pessoas que desmarcam reuniões por conta de crises de ansiedade. Posso dizer que, em diversos aspectos, antes era pior: uma sociedade muito mais tolerante ao racismo, ao machismo e à transfobia; a inexistência de políticas públicas de reparação para populações vulneráveis; a menor oferta de serviços de saúde pública; o maior número de analfabetismo no país, etc.

Mas também posso dizer que, agora, o estado das coisas é ainda mais perverso e tentacular: nos tornamos todas e todos, por exemplo, CNPJs vigiados. Todos os dias, queremos entregar perfeição ou “bater a meta”, expressão que não me sai da cabeça desde que vi o vídeo da ex-funcionária da Riachuelo após a repercussão de outro vídeo feito pela mãe de uma criança autista.

Entre essas duas capturas público-privadas de sofrimento, a espantosa ausência de um debate sobre o que as relações trabalhistas estão fazendo conosco, agora também expostas ao escrutínio público quando alguém saca um celular. De como os planos de saúde cada vez mais burocráticos e tantas vezes avessos à vida, dificultam atendimentos e estressam uma população que precisa conviver com transtornos de diversas ordens.

Pessoas nascidas entre 1980 e 1995 (millennials) e 1995 a 2010 (geração Z) fazem parte do que se convencionou a chamar, no singular, de “geração deprimida” como lemos neste artigo escrito pela psicóloga Begoña Albalat Peraita. Sintomas como insônia ou hipersonia, perda de energia, culpabilidade excessiva, perda ou aumento de peso, desinteresse pelo mundo, agitação ou retardo psicomotor são alguns dos problemas observados por ela. Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou este ano que o Brasil lidera o ranking de ansiosos no planeta, e que um terço da população entre 18 e 24 anos tem o transtorno.

Como pensar o futuro em um planeta que se sacode em calor e tempestades e anuncia seu esgotamento?

Vivenciar o medo frente a um cenário de incerteza é completamente natural, assim como sentir tristeza quando o roteiro da real não acompanha nosso desejo: levar um pé na bunda, distanciar-se de uma amiga, enfrentar problemas financeiros, etc. Mas aquilo que também nos caracteriza como humanos, demasiadamente humanos, tem um peso especial nesse mundo vasto mundo de agora. Afinal, como pensar o futuro em um planeta que se sacode em calor e tempestades e anuncia seu esgotamento? Como escapar da financeirização da vida e de si? O que pensar de uma sociedade que topa votar em um candidato que diz “não te estrupro porque você é feia”?

Há poucos dias, conversei com um ex-aluno e percebi seu estado frágil: vem sofrendo uma série de assédios no trabalho e dando conta de jornadas de até 14 horas. Fui ver, no Instagram, o perfil do escritório para o qual ele trabalha: lá, tem uma fotinha de um coração em neon rosa. Na descrição, expressões como “afeto”.

Eu já acreditei em corações rosas perfeitos e iluminados em neon. Hoje eu fico com os corações às vezes lindos, às vezes vacilantes, que carregamos por aí em nosso peito. Corações que erram, sem obrigação de serem guardados por “fadas sensatas”.

No Brasil ansioso pós-pandemia, a multidão de pessoas que iria mudar o mundo e fazer suas revoluções está fortemente medicada e com um celular na mão, tentando entender muitas vezes porque a vida dos outros parece ser tão melhor. Sim, as redes sociais surgem com enorme brilho nesse ambiente, e esse brilho é sobretudo ambíguo: elas são importantes na socialização e podem ajudar a diminuir o impacto da solidão, é certo. Mas também atuam como vitrine de modos de vida inalcançáveis para a maioria de nós.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica estima um aumento de 177% no número de procedimentos estéticos e reparadores realizados no país entre 2008 e 2018. Entre adolescentes de até 18 anos, são feitas cerca de 115 mil cirurgias plásticas por ano (já escrevi sobre o assunto aqui, no Intercept Brasil). Gente que chega com o telefone na mão, desejando parecer com um rosto repleto de camadas de filtros. Com alguém que não existe. A pesquisa de Vitor Maurílio Freire da Silva, da Universidade de Brasília, mostrou que mais da metade dos participantes passavam de 1 a 3 horas por dia apenas na rede social. “A maioria dos respondentes (82%) seguem influenciadores digitais dentro do aplicativo e (36%) concordam totalmente que já se sentiram mal após usar o Instagram”, escreve ele.

Há outro ponto que atua como gatilho para transtornos como ansiedade e depressão: o consumo constante da tragédia, dos casos de racismo, da destruição provocada pela exploração criminosa dos recursos naturais, das guerras. O gosto dos algoritmos pela desinformação e casos “polêmicos” é um verdadeiro ecossistema que nos rodeia no ambiente virtual e, claro, fora dele — as barreiras entre “lá” e “aqui” há muito se esfacelaram. Esse pouco admirável novo mundo forjado pelas big tech vem há tempos provocando mudanças estruturais em nossa política e ajudando a ascensão e glória de nomes nefastos para uma vida menos desigual, como Bolsonaro (Brasil), Trump (EUA) e o recém-eleito Milei (Argentina).

Frente ao desencanto e adoecimento mais profundo, muita gente comete violência auto-infligida. As mortes provocadas por suicídio aumentaram 43% do país segundo a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), do Ministério da Saúde (43% no Brasil em uma década, passando de 9.454, em 2010, para 13.523, em 2019). O número de casos entre adolescentes preocupa a Sociedade Brasileira de Pediatria: são cerca de mil por ano, mas é um ponto comum de que há muita subnotificação. Entre 2012 e 2021 foram 8.391 óbitos (84,29%) entre jovens de 15 a 19 anos; e 1.563 mortes (15,71%) na faixa etária de 10 a 14 anos. Também nas redes, pululam os conteúdos sobre violência auto-infligida.

Como já foi dito, viver dói, e a dor é uma condição coletiva que nos torna proprietárias de corações às vezes maravilhosos, às vezes vacilantes. Mas quando essa vida é invadida por uma série de demandas e expectativas que não são nossas, quando essa vida se torna um terreno a ser sitiado pelo novo consumo incrível da semana — ou pelo ódio da vez — simplesmente apagamos a luz.

Acho que, no fim, nossa grande triste descoberta é que não foi preciso construir um batalhão de robôs em nosso futuro. Os robôs, fazendo mão em forma de coração, rindo para as fotos e “batendo metas”, somos nós.

Para saber mais:

*A pesquisa As dificuldades enfrentadas no mercado de trabalho e o bem-estar da geração Z.

*O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece uma rede de apoio psicossocial que cobre todo o país.

** denominações do mercado

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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