Marilene Felinto
Odeio meu plano de saúde
Só se fala ultimamente da “crise” do setor de saúde privada, uma falácia que abre ainda mais caminho para benesses lucrativas às corporações empresariais e aumenta os prejuízos aos usuários
Que as empresas de planos, convênios ou seguros de saúde agem como cartéis mafiosos é a percepção de muitos, senão da maioria, de seus usuários – máfias prontas para extorquir e punir clientes segundo critérios de seleção e justiçamento próprios desse setor privado de saúde.
Não se trata aqui da clientela de alta renda, que paga seus seguros sem se afetar em nada por isso. Também não estou falando das classes D e E, que morrem nas filas de espera do SUS por falta de atendimento a especialidades, demora nos tratamentos, recusa de internações por falta de leitos. Falo das classes intermediárias, as médias, que se desdobram até o osso para suportar o custo desse serviço em condições injustas e antiéticas.
A tendência mais recente nas práticas das chamadas “operadoras” de saúde é imoral, disseminou-se de forma alarmante e, ao que parece, a vistas grossas da autoridade pública: para fugir do controle de reajustes do governo, esses conglomerados de “saúde complementar”, ou “suplementar”, não ofertam mais planos individuais ou familiares, e somente aceitam firmar contratos com pessoas jurídicas, empresas de qualquer porte, de MEIs (Microempreendedores Individuais) e microempresas às grandes.
Seja que nome tenham – “plano de saúde coletivo empresarial”, “coletivo por adesão”, “coletivo empresarial contratado por empresário individual” etc. – são imorais porque denegam a concepção de saúde como direito social, enquadrando de vez a assistência médica na classificação econômica de bem de consumo, de bem privado, como um automóvel, uma geladeira ou um carnê das Casas Bahia.
Uma vez estabelecida a relação comercial entre empresas – sempre mediada por uma “Administradora de Benefícios”, tipo Qualicorp ou Rede D’Or – fica esse mercado livre, com interferência mínima do Estado, para estabelecer suas próprias regras de selvageria neoliberal contra a parte fraca da relação, o consumidor.
Nesse formato comercial, o setor passou a exacerbar o que já era prática abusiva desde a implantação desse subsistema de saúde no país: aumentos extorsivos em reajustes, vinculação dos preços às condições de idade e saúde, exclusões arbitrárias de procedimentos e rede de prestadores de serviços como hospitais e laboratórios, recusa de coberturas, negação de atendimento, desumanização do acesso à informação e ao contrato, estabelecendo a informatização de seus sistemas como único meio de contato do cliente com a empresa.
Os contratos, aliás, são verdadeiras arapucas, de regras unilaterais que favorecem apenas as operadoras e em condições absolutamente restritivas aos clientes ou às “vidas”, como são chamados pelo mercado.
Esses cartéis de abutres da saúde privada estão à espreita há tempos, calculando quanto lucram com a doença alheia
No tratamento que dão aos idosos, especificamente, a conduta não é apenas antiética, é ilegal, afrontando de várias formas o Estatuto do Idoso. No capítulo IV desse Estatuo, que trata do “direito à saúde”, artigo 15, parágrafo 3º, determina-se que: “É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade”.
Ora, mas se é exatamente isso, a discriminação por idade, que fazem as operadoras de saúde! A partir dos 59 anos, a pessoa recebe um aumento de quase 100% na mensalidade. Para ingressar em um plano a partir dos 60, os valores são absurdamente majorados. E a partir dos 66 anos, ainda mais ultrajante o que se paga para ingressar. No caso de seguradoras, é cobrado um “agravo” por idade, ou seja, uma taxa a mais, um acréscimo na mensalidade, e que varia conforme a avaliação unilateral e arbitrária da seguradora.
Em tabela recente de valores de planos de uma dessas seguradoras constava a seguinte informação: “Promoção para empresas de 03 a 09 vidas – válida até 30/06/2023: Serão aceitos titulares, cônjuge, filhos, pai, mãe, sogro e sogra até 67 anos 11 meses e 29 dias”.
Está explícita aí, portanto, a ilegalidade, a seleção por idade, o justiçamento, a punição, o tratamento que expõe os mais velhos ao vexame e ao constrangimento. No Estatuto, entre os direitos fundamentais do idoso está o zelo por sua dignidade, “colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano (…) vexatório ou constrangedor”.
Ilegal, imoral e desumana a prática do mercado de saúde privada para com os velhos: no processo acelerado de digitalização e “aplicativização” dos acessos a tudo, não há mais humanos (atendentes, gerentes etc.) a quem se possa fazer uma única pergunta. É tudo digital, via aplicativos e mensagens de redes sociais. O idoso é de novo o mais prejudicado e vulnerabilizado, porque, frente à dificuldade dele na lida com ferramentas de tecnologia da informação, tiram-lhe a autonomia, outro direito a ser preservado, segundo o Estatuto.
Na mídia noticiosa só se fala ultimamente da “crise” do setor de saúde privada, uma falácia que abre ainda mais caminho para benesses lucrativas às corporações empresariais e aumenta os prejuízos e o desrespeito aos usuários. Afinal, alguém certamente lucra muito explorando uma fatia de mercado de quase 50,8 milhões de pessoas – esse é o número de beneficiários em planos de assistência médica no país referente a junho de 2023, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
A ANS afirma ter como missão legal promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais – inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores – e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país. Tudo muito bonito no papel.
Na vida real, é preciso não esquecer, por exemplo, o caso da falência da Unimed Paulistana, anos atrás, quando a ANS aprovou um acordo vergonhosamente desfavorável aos antigos clientes, um tal TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), em arranjo espúrio com o Procon e não sei quem mais, retirando direitos e serviços adquiridos de mais de um milhão de usuários e oferecendo um novo plano de qualidade muito inferior.
Estudos apontam como uma das razões para o desgoverno do mercado de saúde suplementar no Brasil o fato de o país ter implementado seu sistema de saúde pública e universal tardiamente, numa conjuntura econômica adversa, que não dá conta, até hoje, de entregar à população o atendimento que o SUS promete.
Levanta-se ainda como causa o fato de o país ter cedido excessivamente à liberalização do setor privado de saúde. Já na época da criação do SUS (1990), observa um desses estudos, houve articulações do empresariado da medicina para ofertar planos simplificados ao Estado.
Esses cartéis de abutres da saúde privada – odeio meu plano de saúde, e todos os que já tive – já estavam à espreita há tempos, calculando quanto lucrariam com a desgraça da doença alheia. Em vez de contar os consumidores de seus produtos em número de “vidas”, mais certo seria contabilizar em número de “existências precarizadas” por eles, em número de mortes: mínimo de duas mortes, ou de três mortes etc.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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