CV: Renato Cymbalista — Gama Revista
Bianca Antunes

CV: Renato Cymbalista

Diretor de projeto premiado pela ONU, o professor de arquitetura da USP trabalha na oferta de moradia a preços acessíveis

Leonardo Neiva 30 de Agosto de 2023

Na lista de cinco projetos selecionados recentemente pelo UN-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos) como destaques na promoção de uma urbanização sustentável e de melhorias na qualidade de vida das cidades, havia um nome brasileiro. Contemplado pela primeira vez com o Scroll of Honour Award, premiação entregue todos os anos pela entidade a organizações do mundo todo, o Fundo FICA trabalha para oferecer moradias de qualidade a preços acessíveis na região central de São Paulo.

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Para alcançar esse resultado ousado, ainda mais num mercado imobiliário bastante aquecido, o projeto angaria doações, investimentos sociais e até empréstimos de imóveis no estilo comodato para garantir que famílias em situação de vulnerabilidade tenham um teto sobre suas cabeças. E, numa parceria com o Padre Júlio Lancelotti, promove inclusive o acesso à habitação para a população em situação de rua, por meio do programa Morar Primeiro.

Entre as muitas cabeças por trás da iniciativa, se encontra a do professor de história urbana da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU USP), Renato Cymbalista. Apesar da formação na área, o cofundador e hoje diretor do Fundo FICA nunca teve a intenção de abrir seu próprio escritório de arquitetura. Pelo contrário, seus interesses residiam em questões na intersecção entre a profissão e memória, violação de direitos e justiça social.

“Se tem uma coisa que me define como profissional, professor, pesquisador e ativista, é a busca por direitos, por justiça”, declara Cymbalista em entrevista a Gama. Apesar de ter escolhido cursar arquitetura, ele não o fez devido a alguma vocação avassaladora na área. “Não me vejo uma pessoa vocacionada para a profissão, mas alguém que, aos 18 anos, tinha um conjunto de crenças, desejos e expectativas”, afirma. O fascínio, na verdade, vinha da visão de que o curso iria escancarar janelas artísticas e criativas.

Mas foi durante uma entrevista com a também arquiteta Raquel Rolnik que o jovem universitário abriu os olhos para o potencial histórico e social da arquitetura e do urbanismo, caminho que imediatamente lhe interessou percorrer. Pouco depois, foi chamado para estagiar com a própria Rolnik no Instituto Pólis, organização da sociedade civil (OSC) que defende o direito à cidade em suas variadas formas. Por lá, Cymbalista chegou a presidente, cargo que ocupou por quase uma década. Hoje, permanece como conselheiro.

Do mestrado e doutorado voltados para a arquitetura de cemitérios até uma viagem marcante para Robben Island, ilha onde Nelson Mandela ficou preso por 27 anos, vários elementos ao longo da trajetória do profissional já indicavam um caminho ligado à história de lugares marcados por sofrimentos e injustiças. Um dos resultados desse trabalho com memória e direitos foi o cargo de diretor na Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (Prip) da USP, criada em 2022, em que o arquiteto e professor assumiu o desafio de lidar com assédio e violações de direito na universidade, além de capacitar a comunidade sobre o tema e comandar ações de reparação.

Hoje, além de estudar o tema a fundo como professor da USP, ele trabalha para reduzir essas injustiças na questão da moradia. “Sou muito mais de trabalhar em avanços incrementais para uma ideia pronta, de dar uma pequena contribuição para um processo maior do que eu”, declara o arquiteto. Na entrevista a Gama, Cymbalista aborda a necessidade de devolver à sociedade parte daquilo que ela lhe oferece, fala de sua vocação maior para reparar do que denunciar e também do importância de não se deixar levar por grandes teorias.

Perfeição a gente tem na teoria. Na prática, é a dificuldade de implementar suas ideias, os limites dados pela realidade

  • G |De onde vem o seu interesse pela arquitetura e urbanismo? Você sempre quis trabalhar na área?

    Renato Cymbalista |

    Prestei vestibular muito jovem, com 18 anos. Tentei o curso de arquitetura porque achei que era amplo, artístico, criativo o suficiente para as minhas expectativas. Eu queria estudar não só arquitetura, mas arquitetura na FAU-USP, isso era muito importante. Nem prestei outro vestibular, porque lá eu entendia que ia ter uma formação em parte para o mercado, mas também mais humanista e artística. Eu me virei na arquitetura e urbanismo, mas acho que teria sido muito feliz também no direito, na economia ou se tivesse escolhido outras trajetórias. Não me vejo uma pessoa vocacionada para a profissão, mas alguém que, aos 18 anos, tinha um conjunto de crenças, desejos e expectativas. O curso cumpriu essas expectativas naquele momento. Não sei dizer se foi a escolha certa ou não.

  • G |O que te moveu a trilhar esse caminho?

    RC |

    Num momento de quase epifania, entrevistei para um trabalho a professora Raquel Rolnik, que me mostrou como a cidade é resultante de lutas e disputas sociais. Aquilo me abriu um desejo gigantesco de trabalhar com essas questões. Não queria ter um escritório de arquitetura que desenha projetos para clientes. Enquanto me formava, estava em construção o Plano Diretor de São Paulo da gestão Erundina, que virou de ponta-cabeça a ideia de urbanismo. De uma disciplina técnica, ele passava a incorporar aspectos políticos e de gestão democrática. Aquilo me abriu horizontes enormes de possibilidades e desejos. Mas eu não escolhi essa trajetória. Pouco antes de me formar, recebi um convite para estagiar com a Rolnik no Instituto Pólis. Isso foi em 1996, e continuo ligado ao instituto desde então. Primeiro como estagiário, depois técnico, coordenador, conselheiro e, após quase dez anos como presidente, voltei a ser conselheiro. O trabalho se tornou voluntário, porque passei no concurso para professor na USP e não podia ter outras remunerações.

  • G |E você já tinha desde antes uma vontade de ser professor e pesquisador?

    RC |

    Por conta das possibilidades que o trabalho no Pólis me deu, eu participei de projetos de pesquisa, viajei, integrei seminários internacionais e publiquei. Estava com um currículo bom e, quando acabei o doutorado em 2006, avaliei que tinha condições de pleitear vaga numa universidade pública. Não que ser professor fosse minha vocação, mas porque enxergava esse como um lugar onde conseguiria exercer minhas habilidades, olhar problemas de diversos ângulos. Estava preocupado com a questão do direito, da história, dos lugares da morte, e na universidade achava que ia conseguir compatibilizar isso tudo. De 2008 a 2010, prestei uma série de concursos, até que passei na FAU, no departamento onde fiz meu mestrado e doutorado. Uma trajetória que talvez tenha mais a ver com meus privilégios do que com qualidades. E estou lá desde 2011, quando virei professor em tempo integral.

  • G |Você tem um interesse bastante forte na conexão da arquitetura e urbanismo com a memória, consciência coletiva e inclusão. Como isso surgiu?

    RC |

    Quando me tornei professor, precisava construir um grupo de pesquisa numa área específica. Olhando todas as perspectivas, criei o “Lugares de memória e consciência”, com a ideia de que existem alguns pontos nas nossas cidades que permitem que a gente olhe para violações de direitos históricas. Um lugar em que tive uma grande revelação foi Robben Island, onde o Mandela ficou preso. Participei no começo do século 21 de uma visita por lá guiada por um ex-presidiário. Você pega um barco e fica o dia inteiro na ilha. Aquilo não saiu da minha cabeça. Desde então, vivo coletando lugares como se fossem portais para debatermos direitos. Um exemplo é o DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna], que está passando por escavações arqueológicas. Estou participando de um grupo de trabalho, como representante da USP, para transformá-lo em memorial. Enquanto as escavações acontecem, há um monte de visitas guiadas e artigos na mídia em que problematizamos a história das violações de direitos na ditadura a partir desse lugar.

  • G |Você é um dos fundadores e hoje diretor do Fundo Fica, um programa de democratização da habitação no Centro de São Paulo. Como se envolveu com esse projeto?

    RC |

    Ontem usei a calculadora de salários do Nexo para ver quanto ganha um professor doutor em início de carreira na USP: mais de R$ 14 mil. Mais do que 99% dos brasileiros e 98% dos moradores do estado de São Paulo. Esses números não saem da minha cabeça. Acho impressionante esse dado porque, na universidade pública, a sociedade mais pobre paga meu salário. Acordo todo dia devendo para a sociedade. Então sempre aproveitei as oportunidades de construir pontes entre sociedade e universidade. Discuti muito com alguns amigos arquitetos os despejos, a gentrificação nas áreas centrais. Já estava se anunciando em 2015, quando criamos a organização, uma virada conservadora. Como grupo, começamos a olhar para o que poderíamos fazer que não dependesse de políticas públicas. Não que a gente não deseje apoio do Estado, mas não queríamos ficar esperando o governo. Estávamos construindo uma associação para moradia sem fins lucrativos. Existem outras experiências assim, como as ocupações, muito mais radicais que a nossa. Nossa ideia era sermos uma OSC com a missão de comprar ou acessar propriedades das mais diversas formas e disponibilizá-las a valores não especulativos. Isso era muito novo no Brasil em 2015, mas não no mundo. Uma cidade como Zurique tinha 20% dos seus imóveis nas mãos de cooperativas e associações. Foi muito bacana participar dessa construção passo a passo, bastante intuitiva. Oito anos depois, a gente consegue ver que foi muito sólida.

Gosto de trabalhar na chave da reparação, e não da denúncia

  • G |Você diria que tem uma missão na sua profissão? Qual?

    RC |

    Não acho que tenho uma missão, mas existem coisas que me fazem mais e menos feliz. O modo de denúncia, reivindicação e crítica ao governo não me deixa feliz. Propor uma coisa nova inclusive para o governo, uma outra forma de fazer as coisas, sim. Em vez de pedir dicas, a gente oferece uma política baseada em moradia sem fins lucrativos. Somos uma entidade transparente, com relatórios anuais publicados, auditada, com recursos e fundos. Tudo está prontinho, só precisa fazer. Isso me faz bem e me deixa muito feliz. Gosto de trabalhar na chave da reparação, e não da denúncia. Até porque, como homem branco de elite, coberto dos privilégios que tenho como professor da universidade pública, estou muito mais na missão de reparar do que no direito de denunciar. Uma consequência do trabalho com memória e direitos foi o convite para participar como um dos diretores na Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP. Sou o primeiro diretor que se dedica a situações de assédio e violações de direito na universidade, a qualificar e capacitar a comunidade e fazer as necessárias ações de reparação, reconhecendo que a USP também produziu muitos silenciamentos, muitas violações.

  • G |Recentemente, vocês foram premiados pela UN-Habitat, programa da ONU voltado para assentamentos humanos. Qual o impacto e a relevância de reconhecimentos como esse?

    RC |

    Qualquer legitimação externa é boa. Alguém não envolvido no projeto nos chancela, reconhece que estamos fazendo uma coisa boa. Um prêmio internacional da ONU é a chancela no nível máximo, um enorme legitimador do nosso trabalho. A gente continuaria sem ele, mas a legitimidade torna as coisas mais fáceis e rápidas.

  • G |Na sua trajetória, você já cometeu alguma falha que hoje não cometeria?

    RC |

    São tantas falhas que não sei dizer a maior. Precisei de maturidade, de um lugar na universidade mais prestigiada do Brasil para ter a segurança de não buscar a perfeição. O fato de que vou errar está incorporado nas minhas ações cotidianas. Por causa disso elas precisam ser checadas, validadas. Quando você faz coisas práticas, elas são muito mais arriscadas, precisam passar por mediações e saem imperfeitas. Perfeição a gente tem na teoria. Na prática, é a dificuldade de implementar suas ideias, os limites dados pela realidade. Sou muito mais de trabalhar em avanços incrementais para uma ideia pronta,  de dar uma pequena contribuição para um processo maior do que eu. Sou mais relevante se faço isso e consigo fazer interlocuções com agentes sociais muito diferentes da gente: o governo e o mercado imobiliários. A gente quer tirar propriedades do mercado, e eles, colocar mais. Mas existe uma compreensão recíproca da agenda do outro no Fica, concordando nas divergências. Gosto do debate que pode ser feito e de abrir espaço para ele, mesmo que isso signifique atritos, contradições, projetos imperfeitos e correções de rota. É isso que me faz feliz, mas não me vejo como um missionário.

  • G |Quais foram os principais aprendizados ao longo dessa história?

    RC |

    Descobri que não preciso ler um monte de livros para encontrar a teoria que vai resolver meu problema. Não preciso ser foucaultiano, marxista, existencialista ou pós-construtivista. Se existisse uma teoria melhor que as outras, já teríamos uma vencedora. Elas estão em disputa pois nossa realidade se apresenta de forma complexa. As pessoas se movem por teorias diferentes e podem fazer com que se tornem realidade. As discussões sobre direito ao aborto, por exemplo, vêm de teorias sobre onde começa a vida. Essas crenças constroem realidades muito potentes, que tensionam a nossa. Gosto de identificar quando diferentes referenciais estão sendo mobilizados e conseguir jogar com eles. Minha missão não é ganhar dos outros, senão vira uma aventura de extermínio. Às vezes sou mais marxista ou institucionalista, depende da ocasião e da conquista social possível. Deixando claro que sou a favor do aborto, não estou dizendo que isso é relativo. No mundo que conheço, prefiro ficar do lado das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo.

  • G |Qual conselho você daria a um jovem que queira trilhar um caminho parecido com o seu?

    RC |

    Não se renda às fronteiras disciplinares e institucionais. Esses quadros são ferramentas fantásticas, mas também resultado de correlações de força em disputas por poder. Quem pôde mais conseguiu desenhar nossa sociedade. Então é importante ler, interpretar e identificar identidades e oportunidades, assim como as opressões que todas essas estruturas institucionais exercem. Você também pode ter leveza, não comprar 100% de um discurso pronto. Em vez disso, construa o seu usando um pedaço deste, outro daquele, se tornando um curador de sua própria forma de estar na vida. Essa dica está colada à minha busca por felicidade. Sou feliz com minha independência. De vez em quando se paga um preço por isso, porque não estar mecanicamente vinculado a um grupo teórico na universidade pode dar problema. Mas, se não vamos exercer essa liberdade na universidade, não sei onde vai ser.

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