Trecho de Livro - Ruy Ohtake, Arquiteto -- Gama Revista

Trecho de livro

Ruy Ohtake, Arquiteto

Responsável por edifícios como o Instituto Tomie Ohtake e o Hotel Unique, em São Paulo, o arquiteto Ruy Ohtake tem sua obra e arte exploradas em novo livro

Leonardo Neiva 30 de Julho de 2021

POR QUE LER?

Sabe dizer o que o Instituto Tomie Ohtake, os hotéis Unique e Renaissance e o Parque Ecológico do Tietê têm em comum? Além de serem marcos arquitetônicos hoje praticamente inseparáveis da paisagem urbana da cidade de São Paulo, todos eles saíram da mente — e da caneta — de uma única pessoa: o arquiteto Ruy Ohtake.

Filho da renomada artista plástica Tomie Ohtake (1913-2015), responsável por uma considerável cota de esculturas que hoje fazem parte da paisagem urbana brasileira, o arquiteto paulistano agora tem sua vida e, principalmente, sua obra esmiuçadas em “Ruy Ohtake, Arquiteto” (Romano Guerra Editora, 2021).

Através de uma extensa pesquisa, que contou com a participação e auxílio do próprio Ruy, a obra é uma das mais completas centradas no arquiteto e traz centenas de desenhos e esboços inéditos para o grande público, saídos direto de seu acervo pessoal. O livro se divide em três eixos principais, que se desdobram a partir de ensaios desenvolvidos por especialistas em arquitetura. O primeiro, da professora da Universidade Mackenzie Ruth Verde Zein, abarca os prédios em pequena escala desenvolvidos por Ruy. Luis Antonio Jorge, da FAU USP, fala dos grandes edifícios e do uso de cor pelo arquiteto. Finalmente, o arquiteto especialista em ecologia José Tabacow trata dos projetos em escala urbana, com preocupações urbanísticas, paisagísticas e ecológicas.

Cada um desses capítulos vem acompanhado de um ensaio fotográfico vasto e recente, que ajuda a expandir os horizontes e compreender a arte de Ohtake em sua quase totalidade. Um convite irrecusável à leitura e contemplação da obra de um dos principais arquitetos do país.


O Desenho, a Cor e a Cidade segundo Ruy Ohtake

Luis Antônio Jorge

A história da arquitetura moderna brasileira carece de um capítulo especial dedicado àqueles arquitetos cujos desenhos são capazes de conter a síntese sobre tudo que um projeto pretende realizar. São desenhos-conceito que, mais do que expressar uma verossimilhança com a obra arquitetônica, apresentam o sumo da ideia motriz da criação, os mais essenciais valores estéticos em foco, a encarnação de uma poética arquitetônica e, fundamentalmente, a compreensão, no plano sensível, do arquiteto sobre o problema posto.

Nesse âmbito do projeto de arquitetura, o desenho procura uma redução explicativa, um retrato concentrado da ideia arquitetônica, um registro-chave da forma no espaço, sem distrair-se com outros elementos de retórica gráfica. Não há referências à escala urbana, nem humana; não há definições tecnológicas, nem acenos para a materialidade construtiva. É formado por poucas, mas essenciais linhas. Uma depuração de um conceito que se faz representar como uma única e bela palavra: o signo mais puro, escandido, lapidado de um desejo de arquitetura. Um devir e uma presença, simultâneos, num percurso pendular entre a arquitetura imaginada e o desenho presente.

Nesta tradição da arquitetura moderna brasileira o desenho é reconhecido como a operação mais próxima da expressão artística. Motor de uma sensibilidade intangível, esse desenho é gestual, é um rastro da linha em movimento na superfície de papel, escassos riscos a reivindicar a melhor representação da ideia em gestação. O valor artístico de um desenho é atribuído social e historicamente por uma comunidade cultural. Este valor tende a enublar a função de mediação entre a ideia e o próprio objeto arquitetônico que o desenho procura anunciar, para ser, ele mesmo, alvo da atenção estética e dos significados a ele atribuídos. E os arquitetos brasileiros cultivaram um apreço por desenhos sintonizados com esta tradição dos croquis capazes de apresentar, com o mínimo de linhas, o conceito-chave de uma obra. O que indica, ainda, que a representação mais abstrata ou menos figurativa possível da arquitetura é recebida como produto de um percurso de natureza eidética, como a expressão das substâncias dos fundamentos epistemológicos ou da razão de um projeto.

Nesta tradição da arquitetura moderna brasileira o desenho é reconhecido como a operação mais próxima da expressão artística

A relevância cultural deste tipo de desenho reside na sua capacidade de ferir as expectativas figurativas dos leitores familiarizados com a linguagem da arquitetura, pautada pela identificação dos volumes primários, ocultos ou explícitos, e pela instrução do código da perspectiva e da geometria euclidiana para a cognição do espaço representado. Isso é o que justifica o referido capítulo especial dedicado a esses autores: o jeito de nos arrebatar com linhas livres, percorrendo em curvas o espaço imaginado, esquivando da implacabilidade dos ângulos retos, quebrando arestas em contornos suaves. Surpresa e liberdade são os valores cultivados por estes arquitetos reconhecidos como brasileiros e que gravaram suas marcas no imaginário da arquitetura moderna no mundo.

Se Oscar Niemeyer (1907-2012) é o mais ilustre arquiteto brasileiro desta tradição do desenho, Ruy Ohtake (1938) ocupa posição destacada com sua grafia persistentemente manufaturada em tempos de desenhos digitais, para manter acesa a busca pela surpresa e pela liberdade expressiva que caracterizam uma distintiva vertente da arquitetura brasileira. A concisão do seu desenho estava sintonizada com um sentido de brasilidade da nossa arquitetura moderna, mas também com o Zeitgeist da cultura brasileira em geral na segunda metade da década de 1950, período em que ele estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP, curso concluído em 1960. Segundo Ruy Ohtake, a concisão é uma das características da cultura brasileira daquele período que ele reconhecia em Brasília, nos edifícios do Oscar, na bossa nova com João Gilberto e Tom Jobim, na literatura com a poesia seca de João Cabral de Melo Neto e com a poesia verbo-voco-visual dos concretos, no cinema novo com Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, na dramaturgia com o Teatro de Arena e o Oficina. O concurso para o Plano Piloto de Brasília foi um acontecimento do seu primeiro ano de estudante na FAU USP, momento de afirmação de uma (quase) unanimidade nacional chamada Lúcio Costa. Já no seu quinto ano de curso de arquitetura e urbanismo, inaugurava-se Brasília e Oscar Niemeyer era tido como a concreção do amadurecimento da arquitetura contemporânea brasileira.

A concisão do seu desenho estava sintonizada com um sentido de brasilidade da nossa arquitetura moderna, mas também com o Zeitgeist da cultura brasileira

Os croquis de Ruy Ohtake oferecem as lentes para leitura das suas motivações estéticas ou daquilo que Lúcio Costa denominou de “intenção plástica” ao legitimá-la como pressuposto de uma obra de arquitetura. Um croqui do Hotel Renaissance (1993-1997) mostra uma visão tomada da rua Haddock Lobo, na cidade de São Paulo, entre as diferentes cotas das suas duas esquinas: a mais alta, na alameda Santos, e a mais baixa, na alameda Jaú. O conceito-chave presente neste desenho é a integração visual entre as torres interligadas e o embasamento, duas entidades separadas por definição. A sucessão de linhas ondulantes busca uma continuidade visual no plano de representação, como um eco ou frequência emitida no espaço bidimensional, em movimento ascendente, para reconstituir uma nova totalidade, uma nova abordagem do clássico problema de composição entre as partes e o todo, ou ainda, uma nova forma de conquista do sentido de unidade. Neste caso, uma unidade construída pelas linhas curvas que encerram os andares do embasamento, acomodando-os à topografia, e as linhas ziguezagueantes que insinuam o ritmo regular dos pisos das torres. As linhas verticais comparecem transmitindo o movimento rápido e vertical do transporte de pessoas e de cargas. A contraposição entre linhas que se desenvolvem horizontalmente e linhas que correm verticalmente encerra o problema de composição e o sentido de unidade: as verticais, ao se aproximarem da maior horizontal (a cobertura do embasamento), ajustam a disposição ligeiramente assimétrica das torres, definindo o lugar de onde se irradiam todas as relações espaciais e se estabelecem as devidas distâncias e proporções. Le Corbusier denominou o encontro da vertical com o horizonte, como a fixação do lugar, o lugar onde o homem se detém: “O vertical fixa o sentido do horizontal. Um vive por causa do outro. Aqui estão as potências da síntese.”

Em um segundo croqui, o hotel aparece em uma curiosa perspectiva tomada à distância , sobreposta ao embasamento do que aparece em corte, demonstrando os diferentes pés-direitos que se pode obter com o desnível do terreno, favorecendo a acomodação do programa complexo. Entre a visada em perspectiva e as linhas do corte, outras linhas perambulam livremente, indicando a massa de vegetação dos jardins suspensos. Nesta versão os prismas das torres são mais altos e as suas arestas, arredondadas, de modo a instruir a composição com outras curvas, só perceptíveis na representação tridimensional.

Em depoimento do autor, o arquiteto Ruy Ohtake, ao exaltar a liberdade criativa na fatura do projeto, distinguiu o papel da linha curva do da linha reta

Em depoimento do autor, o arquiteto Ruy Ohtake, ao exaltar a liberdade criativa na fatura do projeto, distinguiu o papel da linha curva do da linha reta, sublinhando a necessidade e a presença de ambas na arquitetura brasileira: a primeira oferece a fantasia, enquanto a segunda, a racionalidade. A distinção feita pelo arquiteto resume, de forma simples e direta, toda a complexidade da atividade projetual: como combiná-las, como dispô-las, como medi-las?

Nada melhor, portanto, do que o desenho, construção feita por linhas, para fixar o diálogo imaginado entre a fantasia e a razão.

Produto

  • Ruy Ohtake, Arquiteto
  • org. Abilio Guerra e Silvana Romano
  • Romano Guerra Editora
  • 360 páginas

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