Marilene Felinto
Um detalhe jurídico autoritário e obsoleto
Uma vergonha ter vigorado por tanto tempo a tese da “legítima defesa da honra” para justificar feminicídios em casos de traição e outros
Como explicar que gerações e mais gerações de mulheres no Brasil tenham convivido até duas semanas atrás, por décadas, com a aberração da “legítima defesa da honra”? Da honra dos homens, está claro.
No dia 1º deste mês de agosto, deste século 21, em resposta a pedido apresentado pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a figura jurídica que servia de estímulo ao assassinato de mulheres e deixava seus agressores impunes.
Como é possível que até hoje, nestes tempos de novas identidades de gênero e de feminismos plurais – feminismos decoloniais, favelados, futebolísticos etc., – tenha persistido tal violência atestada em código de lei contra mulheres?
Face a tanta vergonha, a esperança é Dora…
Chama atenção um significado específico, quando o termo se refere à mulher: ‘Castidade (da mulher); pureza’
Lembrar que “honra”, segundo o dicionário Caldas Aulete online, por exemplo, é um “princípio de conduta pessoal fundamentado na ética, honestidade, coragem, e em outros traços de comportamento socialmente considerados virtuosos”. E que também significa “lugar de importância, de mérito”.
Mas chama atenção um significado específico, quando o termo se refere à mulher: “Castidade (da mulher); pureza”. Exatamente assim – com a palavra “mulher” entre parênteses – consta no mesmo dicionário essa definição suplementar.
O sentido positivo da honra (ética, honestidade, coragem, mérito, virtude) está implicitamente atribuído aos homens. Enquanto o sentido negativo, porque de conotação controladora, repressora e subalternizante (castidade, pureza) é qualificativo de mulher.
Como explicar para as meninas que estão nascendo agora, ou que nasceram há pouco, tanto atraso não combatido por nossas gerações (das mais velhas às mais jovens de nós, dos 30 aos 80 anos de idade)? Minha esperança é Dora…
Incrível que num país supostamente moderno como o Brasil tenhamos convivido com essa letra da lei meio escondida ali, como parágrafo ou artigo sinistro num manual de direito penal por décadas, e protegendo homens canalhas feminicidas todos os dias.
Claro que numa sociedade patriarcal sexista, machista e misógina como a nossa, que “mata mulheres apenas porque elas querem ser o que elas são: mulheres donas de suas vidas”, como afirmou a ministra do STF Cármen Lúcia, modernidade (ou democracia e igualdade) é uma ilusão.
É de se pensar por que o dispositivo arcaico não foi abolido do Código Penal brasileiro muito antes. Por que não veio à tona o debate sobre essa matéria em nenhum momento dos movimentos de resistência no país? Talvez porque o juridiquês intrincado tenha como propósito camuflar o obscurantismo da matéria, esconder mesmo das cidadãs comuns o que elas deveriam saber. Ou talvez porque nas décadas em que irromperam por aqui o movimento hippie, por exemplo, ou variadas ondas feministas, a nossa juventude esclarecida estava lutando contra uma ditadura sangrenta. Talvez.
Nenhum ativismo nem movimento social atentou antes para o detalhe jurídico autoritário e obsoleto
Nenhum ativismo nem movimento social atentou antes para o detalhe jurídico autoritário e obsoleto: nem o movimento feminista como prática política e luta por liberdade e igualdade para as mulheres, nem o movimento hippie nem a Tropicália, que confrontaram, na vida, na cultura e na arte, os valores tradicionais da classe média, que defenderam o amor livre e a não violência.
Claro que a tese da “legítima defesa da honra” só perdurou também no Brasil porque a reboque da moral cristã, do conservadorismo comportamental que condena como “traição” a emancipação sexual das mulheres, a quebra da lealdade amorosa por parte delas, e que transforma em questão de ordem moral a livre circulação dos afetos.
Minha aposta é em Dora… Dora, 7 anos de idade, entrou pela primeira vez no estádio do Maracanã há pouco tempo, levada pelos pais a um jogo de futebol entre Fluminense e Bahia. O pai, amigo meu, mandou logo depois esta mensagem: “Dora ficou decepcionada quando soube que o jogo não era de futebol feminino! Sinal dos tempos… Como explicar o mundo que estava contido nessa surpresa, o mundo da história inteira do futebol que ela desconhecia, que era brutalmente relativizado [por ela], e cuja importância talvez não fosse tão grande como achávamos, e um outro mundo que a surpresa promete, pavimenta?”.
A mãe de Dora disse que a menina ficou arrasada com “aquele monte de homem jogando bola” (em palavras da garota). Dora genial surpresa, promessa, feminista futebolística, já rebelada contra os espaços sociais estereotipados, contra os lugares esperados e definidos como de homens ou de mulheres. A verdadeira revolução de gênero Dora já pavimenta. Enfim!
Como diz a pesquisadora Andreza Jorge em seu importante livro “Feminismos Favelados – Uma experiência no Complexo da Maré” (Bazar do Tempo, 2023), é preciso nunca perder de vista a “interseccionalidade das opressões e a ausência estrutural de opções” no que diz respeito a nós, mulheres, sempre atravessadas, segundo ela, por marcadores sociais de todo tipo, inclusive pelo “marcador da subalternidade cultural, de inferioridade, de apagamento… Somos muitas e estamos aqui”. Salve, enfim!
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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