Diferentes
Do patriarcado aos papéis na sociedade, novo livro do primatologista Frans de Waal investiga relação entre sexo e gênero em humanos e macacos
Como primatas machos e fêmeas lidam com a própria sexualidade? De que forma seu gênero se manifesta desde o momento em que nascem? Existem coisas como machismo e patriarcado em comunidades símias? E certas espécies também costumam copular com animais do mesmo sexo? Com o intuito de responder essas e uma infinidade de outras perguntas relacionadas a sexo, gênero e macacos, o primatologista, etólogo e escritor holandês Frans de Waal lança seu mais novo livro, “Diferentes: O que os primatas nos ensinam sobre gênero” (Zahar, 2023), com tradução de Laura Teixeira Motta.
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De Waal é autor de outros 16 livros, entre eles “Eu Primata” (Companhia das Letras, 2007) e “Somos Inteligentes o Bastante para Saber Quão Inteligentes São os Animais?” (Zahar, 2022), em que explora as diversas facetas de macacos e outras espécies animais, assim como sua relação com os seres humanos. “Você encontra machos que não são competitivos, ficam fora de tudo e não querem ser dominantes. No livro, eu descrevo uma chimpanzé fêmea que parece um macho, age como macho, mas tem genitais femininos. Então encontramos esses tipos de variações”, disse o primatólogo em entrevista a Gama.
Com seu tradicional humor, clareza e empatia, o autor pretende com a obra lançar uma nova perspectiva sobre as relações entre sexo e gênero, abraçando as diferenças tanto em primatas quanto humanos, em vez de negá-las. Baseado em décadas de estudos do comportamento de grandes primatas, de Waal mostra que a biologia nem sempre sustenta os papéis tradicionais de gênero nas sociedades humanas. Assim, vai desafiando nossas crenças sobre masculinidade e feminilidade, passando pelo comportamento materno e paterno, orientação sexual, identidade de gênero e as limitações do binarismo, sempre partindo de personalidades e ações de animais que acompanhou de muito perto.
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O que poderia dar errado?
O que poderia dar errado se você soltasse uma centena de macacos em um vasto recinto murado com pedras? Especialmente se eles pertencessem a uma espécie entusiasta dos haréns e se, em vez de libertar várias fêmeas por macho, você soltasse uma maioria esmagadora de machos e só um punhado de fêmeas?
Esse experimento foi feito cem anos atrás em Monkey Hill, a ala dos macacos do Zoológico de Regent’s Park em Londres. Não correu nada bem. O tumulto e o banho de sangue resultantes tornaram-se a base de como o público leigo imagina as relações intersexuais dos primatas desde então. Foi duplamente lamentável. Não só a espécie de macaco em questão era bem distante de nós, mas também seu comportamento no zoológico era manifestamente patológico. O babuíno-sagrado — um macaco grande adorado no Egito Antigo, com feições que lembram as do cão — é uma espécie em que os machos alcançam até o dobro do tamanho das fêmeas e possuem caninos longos e afiados. Além disso, os machos têm uma pelagem espessa branco-prateada, enquanto as fêmeas são pardas no corpo todo — por isso, os machos sobressaem mais ainda.
Cada macho se empenha em formar uma pequena família polígina. Em Monkey Hill, eles lutaram ferozmente pelas poucas fêmeas, sem dar às potenciais parceiras tempo para descansar ou nem sequer para comer. Arrastaram seus troféus por toda parte, matando algumas delas no caminho, e copularam com seus cadáveres. O zoológico adicionou outras fêmeas, mas isso não pôs fim à carnificina. Cerca de dois terços dos babuínos morreram, deixando para trás uma comunidade masculina relativamente calma depois que as batalhas se abrandaram.
Portanto, as comparações de gênero entre nós e outros primatas começaram com o pé errado. Também não ajudou o fato de esse pé pertencer a um arrogante lorde britânico que gostava de se impor e criticar os outros. Solly Zuckerman, o anatomista do zoológico, “babuinizou” sozinho o debate sobre gênero. Afirmou que os machos são naturalmente superiores e violentos e as fêmeas praticamente não têm voz, existindo apenas para os machos. Em seu livro The Social Life of Monkeys and Apes [A vida social dos macacos e grandes primatas não humanos], de 1932, apresenta os acontecimentos em Monkey Hill como emblemáticos da sociedade símia e, por extensão, da nossa.
O que poderia dar errado se você soltasse uma centena de macacos em um vasto recinto murado? Especialmente se (…) soltasse uma maioria esmagadora de machos
Aparentemente desconhecendo que o comportamento de arrebanhar e controlar as fêmeas é atípico entre os machos primatas, e desconsiderando o fato de que os babuínos-sagrados têm uma disparidade de tamanho excepcional entre os sexos, Zuckerman adotou livremente esses animais como avatares que retratavam a origem da civilização humana, incluindo nosso “compromisso” com a monogamia. Exagerando a importância das relações sexuais, ele escreveu: “O vínculo sexual é mais forte do que a relação social, e um macho adulto, em contraste com uma fêmea, não é propriedade de nenhum indivíduo específico”.
Poucos primatólogos concordaram, e na época em que iniciei meus estudos Zuckerman já quase caíra no esquecimento. No entanto, seu texto teve impacto duradouro sobre o público leigo. As afirmações desse homem belicoso, que anos mais tarde assessorou as Forças Armadas britânicas em bombardeios-surpresa, infiltraram-se indelevelmente na cultura popular. Sua interpretação era eloquente demais. Ou talvez se alinhasse demais com o que as pessoas queriam ver, ou estavam acostumadas a ver. Dizemos que a natureza atua como um espelho, mas raramente a usamos para ver qualquer coisa nova. Após os horrores da Segunda Guerra Mundial, as pessoas tornaram-se propensas a acreditar em sua própria perversidade. Monkey Hill reforçou sua lúgubre autoavaliação e se tornou matéria-prima para uma porção de autores que consideravam os humanos malignos “macacos assassinos”, empenhados em uma luta hobbesiana de todos contra todos.
O etólogo austríaco Konrad Lorenz nos disse que não temos controle sobre nossos instintos agressivos. Não muito tempo depois, o biólogo britânico Richard Dawkins declarou que nosso principal propósito na Terra é obedecer aos nossos “genes egoístas”. Até as nossas características positivas tiveram de ser descritas como se fossem suspeitas. Assim, se animais e humanos amavam suas famílias, os biólogos preferiam chamar isso de “nepotismo”. O drama dos babuínos no zoológico foi comparado ao motim do Bounty, uma rebelião de marinheiros no século XVIII na qual trinta homens em uma ilha acabaram por matar uns aos outros. Ele encontrou eco no livro de William Golding Senhor das Moscas, de 1954, no qual meninos britânicos em idade de colégio descambam para uma orgia de violência quase canibalesca. Esses e outros livros apresentaram alegremente a nossa espécie como vil, cruel e moralmente falida. É assim que somos, afirmaram os autores, como quem diz “Fazer o quê?” — e quem tentasse oferecer um quadro mais otimista corria o risco de ser ridicularizado como romântico, ingênuo ou mal informado. Antropólogos que salientavam uma coexistência pacífica entre tribos, por exemplo, eram logo descartados como “peaceniks”, algo como pacifistas bocós, e “Polianas”. Já que Monkey Hill revelara a besta dentro de nós, o melhor era aceitar as ideias que daí brotavam.
Monkey Hill (…) se tornou matéria-prima para uma porção de autores que consideravam os humanos malignos ‘macacos assassinos’, empenhados em uma luta de todos contra todos
É impressionante o quanto as comparações com primatas podem ser poderosas. Não satisfeitos com análises do comportamento humano em si, gostamos de inseri-las em um contexto mais amplo que inclui os tipos de animais com os quais nossos ancestrais devem ter se parecido. Mas não paramos por aí: vamos além e nos deleitamos com alegorias que eliminam o papel da civilização e nos conectam com grandes primatas não humanos em um nível emocional e até erótico. Entre os exemplos temos King Kong, Tarzan, Planeta dos macacos, A mulher e o macaco (de Peter Høeg), e uma infinidade de outras fantasias. Somos incapazes de desviar os olhos dos paralelos. Foi por isso que Monkey Hill repercutiu tanto fora da primatologia, apesar da avaliação atual de que se tratou de um caso de péssima administração e de interpretação forçada.
O próprio Zuckerman nunca se esquivou das brigas acadêmicas. Desancava qualquer colega que ousasse argumentar que os primatas não têm o hábito de matar uns aos outros, ou que machos e fêmeas tipicamente se dão bem. Ele também criticava quem dizia que os primatas possuem inteligência e habilidades sociais notáveis. Considerava-se o único cientista de verdade, o único que não dourava a pílula quando o assunto era a natureza humana. Todos os demais eram “antropomórficos” — o palavrão preferido quando se trata de comportamento animal.
Apesar disso, Zuckerman não conseguiu impedir o advento de uma nova geração de primatólogos. Em 1962, na Sociedade Zoológica de Londres, uma inglesa de vinte e poucos anos ousou questionar Man the Toolmaker [Homem, o fabricante de ferramentas], o aclamado livro do antropólogo Kenneth Oakley que nos dera a suprema característica diferenciadora da espécie humana: não o uso de ferramentas, e sim nossa capacidade de fabricá-las. Mas Jane Goodall era uma observadora perspicaz que vira chimpanzés selvagens removerem folhas e ramificações de galhos finos de árvore a fim de adequá-los à captura de cupins.
Nos deleitamos com alegorias que nos conectam com grandes primatas em um nível até erótico. Entre os exemplos temos King Kong, Tarzan, Planeta dos macacos
Sua palestra foi bem recebida, exceto por Zuckerman, o secretário da sociedade, que ficou roxo de indignação. Meu professor holandês, Jan van Hooff, estava presente e se lembra de que Zuckerman teve um faniquito e interpelou os organizadores: “Quem convidou essa garota desconhecida e ridícula para um encontro científico?”. Mais tarde, em um artigo presunçoso na New York Review of Books, sob o humilde nome de Lord Zuckerman, ele vituperou contra as “mocinhas atraentes” que estavam se apossando da área. Acusou-as de recorrer a relatos de casos individuais e a “palavras vazias” para descrever os tipos de sociedade primata bem-ordenada que o lorde em si nunca tinha visto.
Ele não viveu para ver Jane Goodall receber da Coroa britânica o título de dama.
- Diferentes
- Frans de Waal
- Zahar
- 576 páginas
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