Marilene Felinto
Um espetáculo macabro
Chamar uma pessoa negra de “macaco”, para além da violência da desumanização, é restituí-la ao status de escravo marcado a ferro quente, em público, hábito do colonizador branco, e que resiste
O circo do racismo apresenta ao “respeitável público branco” mais um de seus espetáculos macabros. Que uma turba europeia branca chame uma pessoa negra de “macaco”, expondo-a à humilhação mundial numa partida de futebol, como fez a torcida espanhola com o jogador Vini Jr., nem é novidade nem vai deixar de se repetir. Chamar uma pessoa negra de “macaco”, para além da violência da desumanização, é restituí-la ao status de escravo marcado a ferro quente, em castigo público, hábito do colonizador branco, e que resiste.
O “respeitável público branco”, parte do qual talvez sinceramente se comova com fatos como esse, não tem noção, porém, de como isso afeta uma pessoa negra. Não faz ideia do sangue que ferve nas veias, da cicatriz que volta a arder como se ainda jogassem sal na pele ferida, do legítimo e ancestral desejo de vingança contra a permanente caçada que segue selando a condição dos negros mundo afora.
Vidas negras não importam para a turba europeia, nunca importaram, eles que são os históricos exterminadores de índios e negros. A Espanha é racista como de resto são Portugal (principalmente com mulheres negras brasileiras, tratadas como putas em seus aeroportos e alfândegas), França, Inglaterra, Alemanha, a geografia toda.
A turba europeia racista não é diferente da legião branca racista, fascista e neonazista do sul do Brasil, para lembrar um exemplo bem nosso
Mas a turba europeia racista não é diferente, afinal, da legião branca racista, fascista e neonazista da região sul do Brasil, para lembrar um exemplo bem nosso. Uma turba deu na outra. O massacre, a perseguição, são idênticos. É o caso do vereador Renato Freitas (PT-PR), cassado por ser negro pela Câmara de vereadores de Curitiba, afrontosamente racista, e depois reempossado ao cargo pela justiça. O mesmo Freitas foi recentemente discriminado pelo racismo institucional bem brasileiro, da Polícia Federal, retirado de um voo e revistado como o único suspeito no avião.
Enquanto o poder político e econômico (o banco, a mídia, o latifúndio) se mantiver essencialmente branco, seguirá quebrando as pernas dos negros, em especial no Brasil. O parlamento brasileiro continua acintosamente branco, inclusive o de esquerda, passadas décadas de falsas e pífias tentativas de inclusão de negros nos poderes da República.
Verdade que, no Brasil, é época de fazer descer goela abaixo da classe dominante branca a onda de reparação histórica, de políticas de inserção de negros no tecido social brasileiro injusto e criminoso. Mas todo negro sabe até onde a branquitude brasileira vai, até onde vai o limite que ela traça e permite. E ai do negro que ameaçar ultrapassar a linha dessa hipocrisia: terá sua cabeça posta a leilão, sua reputação rebaixada ao epíteto de “maldito”.
Com Vini Jr. se deu coisa parecida. Mais revoltante do que a demonstração pública de racismo que o jogador sofreu foi a manifestação do diretor da “La Liga”, a confederação espanhola de futebol, Javier Tebas, nome da extrema-direita espanhola, que, de início, desqualificou a revolta e a queixa do brasileiro, tentando transformar a vítima em culpado, querendo atribuir ao jogador, escorraçado nos estádios fascistas da Espanha, a aura de maldito.
A branquitude é mestra em instaurar esses processos de inversão (no Brasil, criaram a fantasia fascista do “racismo reverso”, por exemplo). E o que dizer sobre o perverso, grotesco e criminoso comentário do senador Magno Malta (PL-ES) sobre o caso Vini? O detestável senador reivindicou em plenário a defesa do animal macaco (em vez do ser humano Vini) e recomendou que atletas negros é que devem mostrar que “não têm nada contra branco”! Até onde vai a inaceitável estupidez de um parlamentar?
Sei bem o que é ser vítima da inversão, ter a cabeça a prêmio. Enquanto escrevi na Folha de S. Paulo, pediram minha cabeça mais de uma vez: políticos, banqueiros, editores de livros e várias excrescências da direita pseudointelectual e midiática branca. Mulher, negra e esquerdista, apontaram que meu texto cruzava a fronteira delimitada pela branquitude.
Não posso afirmar que minha recente demissão do jornal – quando igualaram meu papel ali ao do extrema-direita branco e racista Leandro Narloch, também demitido na ocasião – se deveu ao pedido de algum ou mais de um desses tubarões do poder econômico (o motivo real nunca dizem, e fica você jogado às traças, “mané”, bobo da corte, revoltado com tanto desdém e desrespeito).
O primeiro pedido pela minha cabeça, do político baiano Antônio Carlos Magalhães, foi rejeitado, porém, na época, anos 1990, quando o jornal tinha inteligência no comando, um diretor (Otavio Frias Filho) e dono imbuído de juventude, erudição e alguma ousadia. Cheio de indignação contra o coronel Magalhães, o diretor vetou o pedido, que lhe soou como afronta a uma escolha pessoal sua, um convite seu, para a minha entrada no jornal. Afronta, também, a um texto que o diretor, em última instância, prezava porque dizia, muitas vezes, o que ele mesmo queria dizer, mas não podia.
Já hoje, desconfio que me tiraram da publicação – navio mercante vazio e sem rumo –, também para dar lugar (ou mesmo manter) ali um ou outro negro ou negra comportados, subservientes, de texto mais ou menos medíocre, que preservem a fachada de inclusão. Sobre essa fachada, que o diga a filósofa e ativista da causa negra Sueli Carneiro, ela que, mal entrou, já caiu fora do conselho editorial do jornal, ao perceber a farsa conciliatória.
Não bastaram um Pelé, um Ronaldo, um Ronaldinho e tantos craques negros brasileiros para a Europa criar respeito pela pele preta nacional
Será tempo de cair na ilusão de que a primeira novela com maioria de atores negros – da retardatária boa vontade da Rede Globo para com a gente preta! – vai mudar a realidade sobre a qual escrevo aqui? Ou de que a Europa, a Espanha, vai punir a torcida escravagista do futebol daquele continente? Verdade é que não bastaram ao mundo um Pelé, um Ronaldo, um Ronaldinho e companhia ilimitada de craques negros brasileiros para a Europa criar respeito pela pele preta nacional. Não serviu de nada! Nem lá nem aqui.
Receba a conceituação que receber o racismo brasileiro – “estrutural” ou “forma social” –, essas teorias, quiçá importantes para a formação das novas gerações, soam, todavia, discussão inócua para quem, por ter pele preta, já foi e continua sendo barrado na portaria do prédio, do hotel, do hospital, da empresa, do restaurante, do aeroporto ou do avião.
Receba o nome que receber, o processo de reparação ao racismo – decolonialismo, aquilombamento etc. – não altera o processo da violência racista em curso. Por isso, “respeitável público branco”, o espetáculo vai recomeçar! Aguarde a próxima atração macabra, do palhaço preto contorcendo-se em pleno picadeiro, desviando-se da chibata e das correntes por meio de acrobacias quase suicidas, para deboche e regozijo da vossa plateia racista.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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