Quem quer sentimento? — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Quem quer sentimento?

Vazio já se vive, afinal, o desencanto resultante dos dilemas reais de uma vida cheia de burocracia, extorsão e falta de poesia

28 de Abril de 2023

Quem quer consciência? Que a Inteligência Artificial (IA) assuma logo tudo, faça tudo, acabe com tudo e deixe a pessoa em paz! Nenhuma perplexidade, nem espanto, incerteza ou insegurança com relação ao insólito que será (que já é?) o mundo dominado por outra inteligência, ainda que possa vir a significar o vazio e o caos.

Este é o sentimento de alguns – mas quem quer sentimento? –, daqueles que já se acham ex-homens ou ex-mulheres, para usar uma expressão do escritor Lima Barreto, dada a ruína de si mesmos, dado o nada de si mesmos, dado que não sabem mais o que fazer para viver ou morrer. Nem querem. Nem uma coisa nem outra.

Vazio já se vive, afinal, o desencanto resultante dos dilemas reais de uma vida de classe média cheia de burocracia, extorsão e falta de poesia – um desejo não se sabe de quê, e uma saudade não se sabe de quem.

Não se trata da classe média conservadora e reacionária, que teme o proletariado e quer ascender à classe mais alta. Não é isso. É outro estrato social, outro espírito. Não têm nenhuma expectativa de melhoria de suas condições sociais. Nem querem. Nem uma coisa nem outra. Olham para os ricos e veem estátuas petrificadas, indiferentes, inumanas – e burras. Não querem isso.

Em parte, já se trata da nova classe de pessoas que vai surgir até 2050: a dos inúteis, segundo especialistas atuais como o historiador Yuval Harari, ou como os gênios da intuição mais antigos como os escritores H. G. Wells, Júlio Verne ou Aldous Huxley. Nenhuma novidade.

Os inúteis – ex-homens, ex-mulheres – “são pessoas que não serão apenas desempregadas, mas que não serão empregáveis”, afirma Harari. São os desalojados, tornados supérfluos na competição com a superinteligência dos algoritmos não conscientes, os chatbots, eles que resolverão tudo muito melhor do que os humanoides sentimentais.

Nenhuma novidade, se já somos inúteis faz tempo. Esse jornalismo contrário e efêmero, por exemplo, como também dizia Lima Barreto, não é, pois, inútil desde sempre? Ora, há tempos este marasmo frente ao movimento do mundo, ao devir, à mudança, já que deu errado a revolução operária (saudade de que tivesse dado certo, e de que o mundo fosse relativamente comunista). Talvez isso, saudade do que nunca houve.

Não é que essa estranha classe de deslocados leve uma vida de privacidades e necessidades prementes. Não é isso. São dilemas reais de vidas urbanas, ou menos urbanas, que não são nem a fome nem a falta de moradia ou a falta de terra. Nem tampouco é a falta de esgoto nem a inundação da casa como consequência da ira dos rios represados pela estupidez e a ganância humanas. Não.

Morrer com ginástica, com exercício físico, ou sem ginástica, nós que já não caminhamos mais?

Aliás, é esperar que a IA projete rede de esgoto para todos, acabe com a segregação socioespacial, resolva a violência da relações étnico-raciais! Não será este o futuro?

Trata-se aqui, já hoje, dos ex-homens e ex-mulheres do futuro de agora, da submissão à ineficiência de sistemas eletrônicos, digitais, da interlocução impessoal com simulações de seres humanos, com a irritante gente virtual, tão comum e atual.

Trata-se dos ódios ordinários desses ex-seres, num cotidiano opressivo: odiar o plano de saúde, a extorsão descarada e sem controle. Morrer com o terrorismo do plano ou sem ele? Com ele, ou numa maca de corredor do SUS, não dá no mesmo? O plano de saúde- empresa-máquina faz o que quer, limita, proíbe, dificulta tudo, altera, extorque, sem perguntar a ninguém, cancela a pessoa como se agiota fosse ela.

Trata-se das revoltas sufocadas: odiar a operadora de telefonia, de internet, de TV, o assédio indecente das corporações de streaming por assinaturas, por pacotes do lixo cultural que produzem. Cancelar, não assinar nada, apagar-se de vez das redes sociais antissociais.

Entregar tudo aos robôs de conversação (eles que escrevam!)? Ou incorporar o espírito de séculos passados, impregnar-se da acidez e descrença de um Marramaque, personagem de Lima Barreto no romance Clara dos Anjos: “Tendo vivido em rodas de gente fina (…) não pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo sonhado outro destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto o seu aleijamento – Marramaque era naturalmente azedo e oposicionista”.

Azedo e oposicionista. E nas disputas tão imorais pela glória e pela fama, escolherdesde logo sua lápide: “morreu na maior miséria, e nunca teve seu quarto de hora de celebridade”, por escolha própria, por recusar este mundo sórdido!

Que o programa de computador resolva o que vai fazer com a hipocrisia dos valores da moral vigente, do aleijamento ético das sociedades violentas e desiguais de ontem e de hoje – liberdade, felicidade, racionalidade, respeito à subjetividade e à humanidade de cada um! Mas quem, em 2050, vai querer valores, ética, felicidade, humanidade? Quem vai ser “cada um”? Ora, que se vire sozinha a inteligência artificial – e deixe a pessoa em paz!

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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