Maria Ribeiro
Qual a graça de odiar um robô?
O ChatGPT só faz textos genéricos, bradam. Hummmm, sei não… Só tem uma coisa que me faz não entrar em pânico e acreditar que não sou assim tão descartável
Quando eu comecei a escrever, ali pelos cinco, seis anos de idade, tudo o que eu queria era mandar bilhetes. Dizer coisas por meio de palavras exclusivamente escolhidas por mim. Misturadas do jeito que eu bem entendesse. E melhor: sem obrigação nenhuma de fazer companhia à mensagem.
Escrever era falar sem ser com a boca; existir com o benefício luxuoso de não estar presente. Papéis, canetas e, no topo da montanha, a máquina Olivetti da minha mãe. Pronto, “Essa era a vida que eu quis” – o próximo passo era pedir cidadania e morar (e viva Cazuza que teria feito 65 em 4 de abril!).
Aos oito, comecei a produzir cartas de amor; aos dez, a falsificar a letra da minha mãe; e aos 12, a elaborar protestos. Paixão, transgressão e política (o que, na prática, significa que mudei muito pouco da sexta série pra cá e o que talvez seja meio preocupante). Adendo: agora não é mais sexta série, é quinto ano, e o cientifico virou ensino médio, que ia mudar, mas parece que não vai mais, ou vai, já não sei. Opa, isso é outro assunto – isso que dá ficar no Instagram.
Foco. Que a questão dessas linhas é absolutamente pessoal. Eu até gostaria de fingir que estou preocupada com as implicações éticas da tecnologia do século 21, mas, infelizmente, não há mundo algum no meu protesto. O lance é autorreferente. E diz respeito a esse impostor, que pode ser, inclusive, que um dia eu o use, e que atende pelo nome de ChatGPT.
Sim, Inteligência Artificial, com letra maiúscula e tudo. Como naquele filme do Spike Jonze, “Her” (2013). Que parecia surreal, e de repente é realidade. Acontece que a pessoa aqui já se acostumou com o esporte das orações subordinadas. A ter a ilusão de que suas mensagens de WhatsApp são impossíveis de serem plagiadas. Sabe de nada, inocente…
Naturalmente já fiz muita besteira, e troquei directs do tipo “textão” que poderiam perfeitamente ter sido substituídos por emojis
Não que minha inteligência natural seja lá essas coisas. Naturalmente já fiz muita besteira, e troquei directs do tipo “textão” que poderiam perfeitamente ter sido substituídos por emojis. No entanto – e mesmo assim –, fiz da mistura de palavras uma possibilidade de estar no mundo, de respirar, existir, de me identificar.
Reclamar é dos grandes prazeres da raça humana, pelo menos é assim que funciona o meu HD. No caso do ChatGPT, isso perde o sentido
Ah, mas não dá pra confiar nas máquinas a esse ponto, dizem alguns. O ChatGPT só faz textos genéricos, bradam outros. Hummmm, sei não… Pode ser que a gente esteja mesmo diante um impasse e que a vida, a partir de 2023, seja dividida entre antes e depois da ferramenta. Só tem uma coisa que me faz não entrar em pânico e acreditar que não sou assim tão descartável: reclamar é dos grandes prazeres da raça humana, pelo menos é assim que funciona o meu HD. No caso do chat, isso perde o sentido. Qual a graça de odiar um robô?
Reclamações, por favor, no site da Gama.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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