Cura pelas Palavras
Em novo livro, a poeta Rupi Kaur, uma das autoras mais populares do gênero nos últimos anos, propõe exercícios para fazer aflorar a criatividade
Numa passagem recente pelo Brasil para divulgar seu novo livro, “Cura pelas Palavras” (Planeta, 2023), a poeta indiano-canadense Rupi Kaur aproveitou até para cair na folia num bloco de Carnaval do Rio de Janeiro. Mas foi durante sua apresentação no Memorial da América Latina, em São Paulo, que a autora – alvo constante de críticas por seu estilo de escrita e pela enorme popularidade – defendeu sua poesia, numa resposta à forma como são vistas as jovens leitoras que compõem boa parte de seu público. “Tudo o que meninas se juntam para ver é tratado como frívolo. Porque imagina se elas seriam capazes de ler alguma coisa de qualidade.”
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Kaur é hoje uma das autoras mais populares no mundo, com cada novo lançamento figurando nas primeiras posições em listas de best-sellers. Sua carreira na escrita começou no Instagram, onde até hoje passagens de seus poemas fazem grande sucesso. O primeiro livro, “Outros Jeitos de Usar a Boca” (Planeta, 2017), que aborda temas como abuso, amor e feminilidade, logo se tornou um dos maiores fenômenos do gênero nos EUA, vendendo mais de um milhão de cópias. Depois, vieram ainda as coletâneas “O que o Sol Faz com as Flores” e “Meu Corpo Minha Casa” (Planeta, 2017 e 2020), que tiveram destino semelhante.
Desta vez, em “Cura pelas Palavras”, Kaur se aprofunda em seu processo de escrita e em como usou os traumas e abusos que sofreu como pontos de partida para sua obra. Além disso, propõe uma série de exercícios para fazer aflorar a criatividade e a escrita do leitor a partir de feridas, amores e rupturas na vida pessoal. No livro, Kaur faz uma defesa da criatividade inerente a todos os seres humanos, muitas vezes esmagada sob o peso do envelhecimento e das responsabilidades. “Todas as pessoas têm uma criança interior que quer ser ouvida, amada e curada. Precisamos deixar que ela saia para brincar.”
Como comecei a escrever
Minha jornada na poesia começou no ensino médio, quando comecei a declamar poesias em recitais de spoken word em noites de open microphone — ou seja, noites em que qualquer tipo de lugar, como bares ou cafeterias, permite que clientes se apresentem no palco.
Estar no palco com um microfone era profundamente mágico. Pela primeira vez na vida, passei a me sentir viva e digna de ser ouvida. Eu escrevia poemas de quatro a cinco minutos de duração e os declamava em barzinhos escondidos, centros comunitários e qualquer lugar que me aceitasse.
Sempre digo que precisei de vinte e um anos para escrever meu primeiro livro, outros jeitos de usar a boca. O primeiro projeto artístico que você dá à luz é assim. É uma soma de todos os anos que você viveu antes dele. outros jeitos de usar a boca não foi algo que escrevi; foi algo que aconteceu comigo. Uma experiência sensorial completa. Até hoje, a escrita desse livro permanece como uma das experiências mais catárticas da minha vida. Às vezes, fecho meus olhos e penso nesses anos. 2010. 2011. 2012. 2013. 2014. Como eu era vulnerável a receber. A dar. A sentir. Como era despedaçada. Como era crua. Como sangrava. Como, pela primeira vez na vida, confrontei o abuso que meu corpo havia sofrido. Assumi minha posição com uma confiança que assustava os homens ao meu redor. Eles não gostavam de como eu falava abertamente, no palco, sobre abuso sexual. De qualquer forma, segui perseguindo essa arte, porque não era minha obrigação ajudar os homens a se sentirem confortáveis. Eu estava ali para mais. Por sorte, estava cercada por um grupo de mulheres poderosas, que me ergueram nos momentos mais difíceis. Sem elas, eu não estaria aqui. Elas me deram espaço para escrever e um lugar para compartilhar.
Precisei de vinte e um anos para escrever meu primeiro livro, outros jeitos de usar a boca. O primeiro projeto artístico que você dá à luz é assim. É uma soma de todos os anos que você viveu antes dele
Capítulo Um – Feridas
Foi a experiência de abuso sexual e físico que me fez começar a escrever. Essa violência em particular ia tão fundo que me silenciava. Eu me sentia sem voz e incapaz de contar a qualquer um sobre o que eu referia como “as coisas ruins”.
Então, por volta dos 18 anos, tive uma sessão com um novo terapeuta na escola. Em nosso primeiro encontro, ele me apresentou à palavra “trauma”. A palavra me atingiu como uma faca. Trauma. Foi assim que o terapeuta chamou as minhas “coisas ruins”. Eu me lembro de ficar sentada naquele sofá de couro duro em silêncio, sem saber o que dizer, porque gente normal como eu não passava por traumas. “Trauma” parecia uma palavra usada para descrever acidentes de carro quase fatais ou os horrores que soldados enfrentavam durante a guerra.
Em nossa segunda sessão, o terapeuta disse que eu talvez estivesse sofrendo de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Eu me lembro de fazer uma força imensa para não revirar os olhos. No final da sessão, fui embora e nunca mais o vi.
Anos mais tarde, eu me dei conta de que o terapeuta não tinha sido dramático. Abuso sexual, doméstico, mental e físico é trauma, e sobreviventes desse trauma também se encaixam entre as pessoas que podem sofrer de TEPT. Acho que, quando você passa por algo tão traumático quando ainda é jovem, e com tanta frequência, aquilo se normaliza. Na infância, suas referências do que é “normal” são enviesadas. Com essa informação nova, aceitei que precisava dar passos rumo à cura.
Muito rapidamente, escrever se tornou parte dessa jornada de cura. Era difícil falar abertamente do que eu havia vivido, então voltei-me para meu diário, porque escrever parecia seguro. Conforme encontrava as palavras para o que havia acontecido, fui começando a me sentir livre. Foi assim que as sementes de meu primeiro livro, outros jeitos de usar a boca, foram plantadas.
Os exercícios neste capítulo exploram diferentes temas ligados aos traumas. Lide com eles no seu próprio ritmo. Sua segurança e seu bem-estar vêm primeiro. Se sentir que não tem nenhum trauma para explorar, está tudo bem. Você não precisa de um trauma para conseguir mergulhar fundo. Você já é uma pessoa rica e infinita. Trauma não é o que nos define. Não é o que nos faz interessantes. Nossa voz e como a usamos é. Se você não tiver vivido alguma experiência mencionada nos exercícios, apenas pense em outra. Não importa o nível, todas nós temos experiências dolorosas, e todas elas são dignas de investigação. Deixe que sua artista interior saia para brincar. Se precisar alterar os exercícios para que funcionem para você, por favor, fique à vontade. Espero que as palavras que você vai escrever nas próximas páginas lhe mostrem a guerreira que você é.
Foi a experiência de abuso sexual e físico que me fez começar a escrever. Essa violência em particular ia tão fundo que me silenciava
Exercício 1 – A aparência do trauma
1) Feche os olhos e respire fundo dez vezes, tranquila e lentamente.
Depois da décima respiração, medite por alguns instantes a respeito da palavra “trauma”.
Então, desenhe a aparência do trauma no espaço abaixo. Quando seus olhos estavam fechados e você estava meditando a respeito da palavra, o que você via?
2) Observe seu desenho e rascunhe algumas palavras ou frases simples que lhe vêm à mente quando olha para ele:
3) Aleatoriamente, escolha quatro das palavras ou frases rabiscadas acima e liste-as a seguir:
1.
2.
3.
4.
Agora, escreva livremente quatro parágrafos ou estrofes usando as quatro palavras/frases escolhidas, em ordem cronológica. Cada parágrafo/ estrofe deve incluir uma palavra/frase da lista acima, na ordem numerada.
Trauma não é o que nos define. Não é o que nos faz interessantes. Nossa voz e como a usamos é
- Cura pelas Palavras
- Rupi Kaur
- Planeta
- 320 páginas
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